Vice-Governador lança hoje livro sobre história do povo cearense

Livro mostra como o povo cearense foi gestado a partir do século XVII. A disputa pela terra desenhou um traçado de violência, desigualdade, domínio e subserviência

Foi a terra batida do Ceará que moldou o cearense. A divisão e o uso o espaço fundiário para a pecuária e a agricultura estão na gênese da formação da vida social do Estado. Um olhar para os séculos XVII e XVIII revela que a violência, a desigualdade e um começo de Estado empenhado com os interesses dos proprietários de terra estabeleceram relações conflituosas, autoritárias, subservientes. O retrato do Ceará colonial foi feito pelo pesquisador e professor do departamento de História da UFC, Francisco José Pinheiro, que lança hoje à noite, no auditório da Reitoria da UFC, às 19 horas, Notas sobre a Formação Social do Ceará (1680 -1820).


 


“Esta pesquisa é o resultado de um trabalho que desenvolvo nos meus últimos 29 anos. Comecei estudando o século XIX, mas vi que precisava voltar aos séculos XVII e XVIII para compreender muitas coisas do século seguinte”, explica o pesquisador. Escolheu como foco a forma de como os cearenses começaram a se organizar socialmente. Para isso teve de lapidar as Cartas de Sesmarias, destrinchar os documentos do Conselho Ultramarinho, resgatados pela Biblioteca Nacional do Rio, e desafiar os inventários de época que estão no Arquivo Público do Ceará.


 


Aos poucos, o mapa social do Ceará foi sendo desenhado. Nos primeiros traços, a luta mortal entre índios e portugueses, que como em todo o País, resultou em mortandade e extermínio. Mas só quando a terra começou a ser dividida é que o espaço físico e seus habitantes foram ganhando os contornos de agrupamento social. Terra passou a ser sinônimo de poder no descampado da caatinga, no lugar de sol ardente e pouca água. A pecuária e a agricultura definiram o embate. Pelos inventários foi possível mostrar que tinha propriedade tinha o poder e o apoio irrestrito das leis que foram chegando. Em resumo eram os donos do Estado. Quem não tinha terra, virara morador, com o Estado e seus tratados jurídicos no encalço. Os documentos revelam ainda que uma meia dúzia de famílias mandava em quase todo o território.


 


A pesquisa do professor Francisco Pinheiro mostra também como o Estado foi criando mecanismos de dominação do pobre-livre, uma categoria social desenvolvida pelo pesquisador que era preenchida pelos não proprietários de terra, escravos forros e outros infelizes. Uma desses mecanismos foi a criação do passaporte. Pela lei, o morador teria de pedir autorização para sair de um lugar para outro, dizer o que ia fazer e quanto tempo ia ficar naquele lugar. Um sistema de controle e vigilância que estava a serviço dos proprietários de terra.


 


O que o Estado e proprietários queriam era combater o que eles chamavam de vadiagem. O livro Notas sobre a Formação Social do Ceará reforça a informação sobre o pequeno percentual de escravos que existiram no Estado; clareia a forte presença das mulheres como chefe de família no interior e enumera a predominância de famílias com grande poder de mando no Ceará colonial. A seguir os principais trechos da entrevista de Francisco Pinheiro sobre o livro:


 


O seu livro mostra como a violência e a desigualdade nortearam o princípio das relações sociais no Ceará. Você considera que essas duas matrizes ainda estão presentes no Estado se levarmos em conta o cangaço no século XX e a pistolagem que chegou ao século XXI?



Um elemento importante para minha pesquisa é como se dá o acesso a terra. Se você observa a estrutura fundiária no Ceará hoje é aquilo que foi constituído no período colonial. Essa estrutura foi fundamental numa região marcada pela pecuária e pela agricultura. Ou seja, essa estrutura fundiária se estabeleceu como um elemento fundamental de poder. Então, se você observar, poucos têm a posse da terra e muitos são moradores, agregados. Isso vai possibilitar que essa estrutura permaneça vigente até a década de 70 do século XX. Somente a partir da década de 70, com o processo de urbanização, é que começa a haver algumas mudanças.


 


Numa sociedade com baixos níveis de escravismo como a do Ceará não se torna uma incoerência que a formação social do Estado tenha primado pela expansão do que você chama de pobre-livre?



Isso se dá porque o sistema escravista tinha uma forma de dominação que não precisava ter o domínio da terra para ter domínio do escravo. No Ceará, a posse da terra é que foi o elemento fundamental para se dominar a população pobre-livre. A posse da terra é fundamental para se entender como parte da população era obrigada a se submeter às regras que foram sendo construídas pelos proprietários. Mas também eu mostro na minha pesquisa que o papel do Estado foi muito central para submeter essa população de pobres-livres, principalmente no começo do século XIX com a criação de todo um arcabouço jurídico. Com relação à população indígena, o Marquês de Pombal cria, no início do século XIX, um tratado jurídico para submeter às populações indígenas. Isso acontece quando ele transforma as aldeias em vilas indígenas. Uma vila de índio é dominada por um diretor branco e o índio vira um escravo. No contexto do algodão, como não havia um plantel de escravos para trabalhar ali, criavam-se mecanismos para obrigar o pobre-livre a se submeter às relações de trabalho.


 


Nos inventários que você usou na sua pesquisa, muitas mulheres proprietárias de terra e de escravos figuram no meio dos homens no século XVIII no interior do Ceará. Foi possível observar uma prática de relações de trabalho diferente das praticadas pelos homens?



Havia uma lógica da sociedade e os papéis sociais não diferenciavam gênero. Na literatura você tem Dona Guidinha do Poço (do escritor Oliveira Paiva) uma mulher que era um coronel. Para uma mulher proprietária de terra, a lógica das relações dela no conjunto da sociedade não era diferente da dos homens. Até porque havia uma marca extremamente machista de que quando a mulher virava chefe de família, ela assumia todas as atribuições do chefe de família. Tinha que assumir o papel de provedor, de homem. Mas essa é uma pesquisa que ainda precisa ser feita.


 


Algo que chama a atenção no seu livro é o papel que a família Feitosa tem na divisão da posse da terra no Estado e o poderio que emana dela. O que essa família representou?



Eu diria que a família Feitosa é um retrato da família colonial. A partir de 1725 com o conflito entre os Monte e os Feitosa, eles que eram os maiores proprietários de terra do Ceará, de alguma forma entraram em desgraça, mas continuaram a ser grandes e quando eles se unem com os Martins, ficam mais poderosos ainda. A família Feitosa no período colonial cearense é o mais poderoso agrupamento do Ceará.


 


Outro ponto importante que você aborda é o caráter subserviente do morador. No teu trabalho não está posto nenhum conflito entre o proprietário e esse trabalhador. No entanto, anos mais tarde vai surgir uma série de movimentos de resistência letrada e armada no Ceará. Como se explica isso?


 
Essa violência, esse conflito existia. Isso não foi o objeto da minha pesquisa, mas não se pode entender o Caldeirão sem entender todas essas raízes sociológicas que vêm dos séculos XVII e XVIII. O próprio Antônio Conselheiro que veio de Quixeramobim, mostra a contradição que há na própria religião. E a religião é fundamental como elemento ideológico, no entanto, essa mesma religião serve como inspiração para Canudos e Caldeirão. Ou seja, a religião é muito contraditória. Ela tanto pode ser usada como libertação para os oprimidos como era usada pelo status quo para submeter e reprimir.


 


Mas é possível dizer que havia conflito entre moradores e proprietários de terra?



Havia. Não consegui documentos que deixassem isso tão claro, mas havia conflitos entre pequenos proprietários, meeiros e grandes latifundiários.


 


Na sua pesquisa você mostra como o Estado subsidiou as desigualdades nas relações e criou um sistema de vigilância e controle sofisticado em pleno século XVIII. Como você analisa as relações entre o Estado e a população? Essa gênese ainda domina as práticas políticas no Ceará?



O que eu tento mostrar na minha pesquisa são as contradições do Estado. Você tem uma lei bem bonitinha, mas quando chega a hora de tratar os grupos sociais, ela é muito diferente. Obviamente, o Estado teve um papel muito importante para os interesses dos grupos dominantes. Ele (o Estado) não é um elemento neutro. Por exemplo, o Estado estabeleceu o passaporte que obrigava uma pessoa a dizer onde ela ia, quantos dias ia ficar naquele lugar. Quando você olha isso, observa que havia uma rede de controle nos distritos policiais e essa rede de controle era chefiada pelos grandes proprietários. Quando a ação é contra os grandes proprietários a lei é difícil de ser executada, mas quando é contra o pobre-livre, é tudo rápido e eficiente. É óbvio que o Estado no momento contemporâneo começa a ter outra feição. Se você pegar a perspectiva de segurança que estamos desenvolvendo hoje, ela é diversa do que havia. Você pensa numa polícia que tem inserção com a comunidade. Naquele momento, não, o corpo policial era um corpo de repressão, onde o principal papel era reprimir os que eram considerados vadios.


 


Mas e se você pensar, por exemplo, na polícia do Rio de Janeiro?



É claro que o Estado tem um papel. Óbvio que não se altera fundamentalmente, ele tem uma lógica, que é a capitalista, ou seja, organizar a sociedade para que o capital se reproduza. Se você pensa no Estado de um modo geral, ele continua sendo um Estado de classe.


 


O que o surpreendeu durante a sua pesquisa?



Um das coisas que mais me surpreenderam nos processos-crimes foi o papel dos escravos e os motivos pelos quais eles eram processados. Por exemplo, havia um escravo em Aracati que era considerado o Diabo pelos brancos, mas tudo faz crer que ele era uma liderança dos pobres. O fato de um escravo conseguir juntar gente em volta dele era considerado um mau exemplo porque a lógica era a do trabalho. Os processos são como uma montagem de um quebra-cabeça, você pega uma testemunha, ela fala uma coisa, a outra acrescenta um pouco mais, uma terceira, mais um pouco. Quando você soma esses dados, constrói um perfil. Eu examinei um processo de uma escrava do Icó que tentou matar o seu proprietário. As duas primeiras testemunhas deram alguns dados, mas a terceira desvendou o crime: ela tentou matá-lo porque ele a surrava. Como vingança, ela botava zabumba na comida dele e cabra ficava doidão, toda tarde ele ficava mal e não sabia o que era. Outra coisa que me surpreendeu muito diz respeito aos escravos. Muita gente pensa que eles viviam isolados, mas não era assim. Há um processo-crime em que o escravo planeja a fuga numa festa da padroeira da cidade, ou seja, eles tinha um espaço de convivência. Você tem escravos que estavam junto com o senhor se armando para matar outra pessoa, o que mostra que havia uma certa cumplicidade entre eles. Talvez o plantel de escravos muito menor tenha possibilitado uma relação mais aproximada, não digo que fosse mais abrandada, significa dizer que havia uma proximidade maior do senhor em relação aos seus escravos.


 


SERVIÇO
Notas sobre a Formação Social do Ceará (1680-1820). Livro de Francisco José Pinheiro será lançado hoje, às 19 horas, no auditório da Universidade Federal do Ceará.