Walter Rodrigues escreve: “O azar da menina é não ser menino”
Em seu prestigiado blog, o jornalista Walter Rodrigues comenta o caso da menina de 9 anos que engravidou de gêmeos e fez aborto numa clínica de Recife.
Publicado 06/03/2009 16:15 | Editado 04/03/2020 16:48
Algumas considerações sobre o caso da menina de 9 anos que engravidou de gêmeos (do padrasto) e fez aborto legal numa clínica de Recife. Foi legal pelos dois motivos previstos na lei, o estupro (sexo com crianças é “estupro presumido”, mesmo que não haja violência no sentido estrito) e risco de morte da mãe. Mesmo assim o arcebispo de Recife denuncia os médicos por “homicídio” e anuncia que serão “excomungados”.
Excomungar (excluir da comunhão) é um direito de qualquer igreja, mesmo das que não usam tal palavra ou não tem esse costume. O excomungado, no caso da igreja Católica, não pode mais receber a hóstia, nem ser padrinho, nem casar etc. Quem se achar injustiçado que recorra ao Vaticano.
Até aí, nada demais. Ou quase nada. Parece um tanto presunçoso que o arcebispo não pergunte primeiro se os médicos são católicos, única hipótese em que poderia excomungá-los.
A posição radical contra o aborto, porém, de certo modo é mais coerente que a acolhida pela lei atual. Para condenar o aborto como ato criminoso, é necessário afirmar que o feto é um “ser humano” em qualquer etapa de seu desenvolvimento, e que abortá-lo equivale a infanticídio.
Ora, se é infanticídio, não deve ser praticado nem mesmo nos casos de estupro ou risco de vida. A criança — se se trata de uma criança — não poderia ser punida pelo crime do pai, nem seria justo matar uma pessoa inocente a pretexto de evitar a morte apenas provável de outra.
Maior incoerência, porém, é “excomungar” os médicos e não excomungar os deputados e senadores que fizeram a lei, os que se recusam a mudá-la e os que defendem a legalização do aborto. Ao tolerá-los, é como se a igreja dissesse implicitamente o contrário do que proclama em seu discurso oficial. É como se admitisse que, no final das contas, o feto não é uma criança.
Outra atitude contraditória, do ponto de vista das consequências práticas, é ser contra o aborto e ao mesmo tempo contra a camisinha. A equação é simples: menos camisinha, mais gravidez indesejada, mais aborto. Além de mais Aids, hepatite e outras doenças mais ou menos graves.
Os médicos, como coletividade, também não ajudam a resolver o problema. Há pouco tempo o Conselho Federal de Medicina aprovou resolução recomendando que esses profissionais só façam aborto de estupradas quando elas apresentarem o B.O (boletim de ocorrência) da delegacia. Para “evitar fraudes”.
Não se sabe por que eles meteram na cabeça que a mulher capaz de mentir ao médico jamais o faria ao escrivão de polícia. Deviam era estar fazendo campanha pela autorização do aborto também nos casos de anencefalia ou outros tipos graves de má formação congênita.
O resultado dessas incoerências e arbitrariedades é que a menina estuprada aos 9 anos (ou antes, segundo a Polícia pernambucana), além de carregar na alma essa violência e a respectiva publicidade, ainda lê na mídia a opinião arquiepiscopal de que seu “bebê” foi “assassinado”.
É bem possível que por isso tudo ela agora lamente não ter nascido menino. Sexo de adultos masculinos com meninos, como se sabe, além de não gerar gravidez nem aborto, provoca menos escândalo, não sujeita ninguém à excomunhão (nem sequer o estuprador), nem mesmo à perda das ordens. E a boa imagem de organizações respeitáveis até exige que se abafe o que for possível.