Limitação ideológica é entrave à solução para crise
A discussão sobre o que os EUA devem fazer para resolver a crise tem sua principal divergência em como restabelecer a oferta de crédito na economia americana, e, por consequência, no mercado internacional. A solução de o Estado americano capitalizar seus
Publicado 18/04/2009 16:48
Neste artigo, nosso objetivo é introduzir a discussão de como a ideologia vem se revelando um fator significativo na determinação política de uma solução para a crise.
Em nosso entender, nesta crise, o maior obstáculo à solução da capitalização dos bancos não é tanto a recusa em conceder aos bancos os volumosos recursos necessários para fazerem frente às pesadas perdas sofridas e por sofrer.
O problema de fundo é que tal capitalização redundaria na estatização da maior parte do sistema bancário, colocando o estado à frente dos principais instituições como o maior acionista. Isso desarmaria ideologicamente o capitalismo, implicando em concessões do grande capital ao poder político.
A dimensão dessas concessões pode ter grandeza semelhante ao que tiveram que fazer na crise de 1929, quando perderam o padrão-ouro e legitimaram a participação direta do estado na gestão da moeda e como provedor do bem-estar social. Foram essas concessões que, após a Grande Depressão dos anos trinta dirigiram a política econômica e financeira das principais economias capitalistas por um terço do século XX.
A ideologia na década de trinta e agora
O ponto de partida de nossa discussão é o interessante artigo publicado no jornal “O Estado de S. Paulo” em 31 de março último, sob o título “Raízes da nossa depressão”. Nele, Barry Eichengreen, respeitado economista da academia americana, especialista em sistema financeiro, debate a situação dos EUA, defendendo a existência, dentro do governo dos EUA, de um problema ideológico que vem agravando a crise atual, da mesma forma como também aconteceu na Grande Depressão da década de trinta. Em 1929, a resistência ideológica dos governantes era quanto ao abandono do regime do padrão-ouro.
Esse regime regulava a circulação monetária até então, fazendo com que a moeda circulante fosse conversível em ouro, sendo o volume de moeda em circulação proporcional à quantidade de ouro estocado por cada governo. Já o problema ideológico da atual crise – que faz o governo dos EUA recusar a capitalizar adequadamente seus bancos – deve-se à defesa das idéias da “desregulamentação” e também quanto ao volume de recursos envolvidos.
Na Depressão de 1929, segundo o autor, o rompimento com o obstáculo ideológico do padrão-ouro se deu tarde demais, ao final de 1931. Houve toda uma década de depressão ou estagnação nos EUA, só realmente superada em decorrência da II Guerra Mundial. O autor espera que a demora em capitalizar os bancos não repita, agora, o atraso catastrófico de 1929.
O artigo é interessante exatamente por localizar na limitação ideológica dos governantes (e, dizemos nós, dos capitalistas em geral) o principal entrave à adoção de solução adequada para as crises. Porém, no nosso entender, o autor erra na localização exata do “problema ideológico” para a solução da atual crise, como também não percebe que a questão ideológica de fundo permanece a mesma para as duas crises, envolvendo ainda um problema político de grande envergadura.
Em 1929, como agora, o principal problema ideológico é a limitação da intervenção do estado na economia. Naquela época, o liberalismo econômico do laissez-faire defendia que os mercados eram autorregulados e sustentáveis. A ação estatal na economia devia se restringir a garantir a propriedade; uma tributação “neutra” quanto à alocação de recursos; e a controlar o meio circulante mediante o regime do padrão-ouro, regime explicado pela teoria quantitativa da moeda.
Isso porque o padrão-ouro era um “mecanismo de mercado” para gerir a moeda, haja vista que o ouro é, por si só, uma mercadoria sujeita à lei do valor. O laissez-faire adotava a teoria quantitativa da moeda como forma de embasar e dar legitimidade científica aos interesses hegemônicos dos sistemas capitalista e interestatal da época.
Agora, o “problema ideológico” é o mesmo, só que a teoria que legitima a gestão monetária e financeira não é mais a quantitativista, e os interesses dos sistemas capitalista e interestatal atuais são também diferentes. O padrão-ouro, na sua “versão fraca” de “dólar-ouro”, foi abolido pelo próprio país hegemônico em 1971-73. A inconversibilidade e a flutuação do dólar evitaram a falência do Tesouro americano, impossibilitado de converter em ouro a montanha crescente de dólares no exterior como tinha se obrigado nos termos do acordo de Bretton Woods.
Só com essa ruptura foi possível reconstruir a confiança do mundo no dólar, alicerçando uma nova retomada da força financeira dos EUA. Assim, o problema ideológico se deslocou para a defesa da teoria das expectativas racionais dos agentes, capaz de dar sustentação ao capitalismo e, em particular, à gestão monetária de moedas sem lastro e com câmbio flutuante.
Vejamos como a teoria dos mercados se alterou, em especial, da década de setenta para cá, e como ela explica a relação estado/capital na gestão de moedas na sua nova condição de inconversibilidade e taxa de câmbio flutuante.
Expectativas racionais e um pouco de filosofia
O neoliberalismo, reedição revista do laissez-faire, mantém o paradigma dos mercados autorreguláveis e autossustentados, porém, admitindo não serem eles perfeitamente eficientes na alocação de recursos. Essas deficiências não decorrem de causas exteriores, são internas e próprias às leis de mercado, e que, em consequência, só podem ser corrigidas, ou minimizadas, “de fora”, pela ação deliberada do estado na formação de instituições que regulem seus agentes.
A primeira dessas deficiências é a existência de uma tendência ao monopólio, que, se permitida, prejudica a autorregulação pela concorrência. A segunda é que o “mercado” (o capital) não é capaz de disponibilizar, por si mesmo, todas as informações econômicas necessárias e para todos os seus “agentes” (os capitalistas).
Sem agentes adequadamente bem informados não é possível assegurar a condição necessária para o mercado se manter “racional”. Existindo “assimetria de informação”, o “mercado” pode agir irracionalmente: ser levado pela “euforia” especulativa ou, desconfiado de que haja informações desagradáveis ocultas para muitos, entre em pânico, ocasionando as paradas súbitas que caracterizam as crises.
A existência endógena dessa assimetria de informações era exatamente o fator que passou a explicar as crises capitalistas, contendo também a solução para elas: o estado (o banco central e agências reguladoras) deveria, então, adotar regras adequadas para evitar monopólios que prejudicassem a livre-concorrência e eliminar, ou minimizar, a “assimetria informacional”, garantindo que os agentes pudessem formar “expectativas racionais”, levando-os, em consequência, às “escolhas racionais”.
Desse modo, mesmo sem mais contar com o ouro como lastro monetário, o neoliberalismo manteve o paradigma de mercado autorregulável e autossustentado, desde que corrigidas suas deficiências endógenas.
A questão era como aplicar a nova teoria à gestão estatal da moeda; como regular o meio circulante, após o fim do regime monetário do padrão-ouro ou dólar-ouro. Não havendo mais uma mercadoria que servisse de padrão para a estabilização da moeda, como o estado poderia evitar instabilidades decorrentes da euforia ou do pânico? A solução foi adotar a taxa de juros da autoridade monetária para a dívida pública e uma regulação financeira que utilizasse os próprios mecanismos do mercado, incentivando os “bons” e desestimulando os mecanismos “ruins”.
O único problema com essa solução é que agora o estado estaria dentro da economia permanentemente. Sem um aparelho estatal, um Banco Central – dotado de supremacia – não seria possível ditar uma política monetária. Sendo tão subjetiva como qualquer outra política pública, a política monetária não mais teria uma regra objetiva, como o lastro do ouro, para determinar automaticamente o câmbio e a taxa de juros e se legitimar.
Como saber se a política tal ou qual era a correta? Medir sua legitimidade pelos resultados, ou seja, ex post, não seria eficiente nem desejável, poderia ser tarde demais. Esse foi um problema assaz incômodo para ser absorvido pela ideologia liberal, que garantia e garante serem as forças de mercado intrinsecamente objetivas e que, por isso, e só por isso, capazes de se regular e se autossustentar.
A solução foi admitir serem os agentes de tal modo racionais que estariam aptos a formar expectativas que, por antecedência, julgariam se uma política era boa ou ruim, certa ou errada, utilizando, para tanto, um modelo capaz de antecipar os resultados de qualquer política em questão. Bastaria, então, a resposta do mercado à ação do
Banco Central para julgar sua adequação e correção.
É certo que a tese, entre outros lapsos, contém uma falha que ameaça a consistência da própria teoria das expectativas racionais: como admitir que os agentes (capitalistas) obtêm informações de forma imperfeita, só erradicável, ou minimizada, pela ação do próprio banco central (ou outras agências estatais) e, ao mesmo tempo, conceder a esses agentes a capacidade de julgar o mérito daquela mesma ação? Tentando resolver essa inconsistência, tratou-se de limitar ainda mais a ação estatal, ditando-se que a política de um Banco Central seria tão boa quanto fosse boa sua reputação (ou seja, o que ele fez de certo no passado), máxima a sua transparência (ou seja, sem ambiguidades) e não causasse surpresa ao mercado (ou seja, não inventasse).
A solução, como se vê, sofre de circularidade e condena o banqueiro central a não inovar em matéria de regras e política, exceto, é claro, se “o mercado” fosse antecipadamente convencido da inovação. No entanto, essa era a teoria que se dispunha para assegurar a eficiência do mercado e a legitimidade dos bancos centrais, até iniciar-se a crise atual.
Como a teoria das expectativas racionais era inconsistente, ocorreu, na prática, que o Banco Central competente era apenas aquele que reagia às expectativas do mercado, eufóricas ou depressivas. Em contrapartida, como os agentes, de fato, não tinham a capacidade nem um modelo para processar dados cada vez mais complexos e fugidios, o melhor a ser feito era seguir o Banco Central competente.
Essa circularidade acabou transferindo a competência racional teórica do mercado para o Banco Central de boa reputação. Assim, Alan Greenspan, por exemplo, tornou-se capaz de conduzir o mercado, sendo ao mesmo tempo o oráculo e o construtor do futuro, agindo como dublê de capitalista e dirigente estatal. E deu no que deu.
Retomando a questão ideológica
Quando da crise de 1929, o problema central era o estado não intervir na economia; alegava-se que isso criaria ainda mais distorções, agravando os problemas já críticos da depressão que se iniciava. Quando resolveram intervir em 1931, como afirma B. Eichengreen, já era tarde demais. Era tarde e continuou tarde, pelo menos para a economia.
Perfilamo-nos entre os que entendem que a política do New Deal não resolveu o problema da crise, tendo o mérito, no entanto, de ajudar os trabalhadores a sobreviver, evitando que o governo viesse abaixo e, até, uma segunda guerra civil nos EUA, o e não é pouco. O que o New Deal resolveu mesmo foi o problema da estabilidade política e da unidade nacional americana.
O problema econômico da depressão só foi superado com a II Guerra. Não tanto porque houve um crescimento tremendo da demanda governamental, agora sem empecilho político-ideológico da direita liberal, mas porque o Estado americano implantou um regime amplo de planejamento da indústria e da agricultura com o esforço de guerra.
Foi esse planejamento estatal que relançou o capitalismo nos EUA e, depois, o europeu ocidental, no pós-guerra. A forma como esse planejamento foi sendo parcialmente abandonado dentro da nova ordem do pós-guerra acabou diferenciando e caracterizando os diversos capitalismos que sucederam a antiga ordem, na Europa Ocidental e no Japão, associando-se às diferenças culturais e às respectivas trajetórias históricas.
O risco de repetir as concessões feitas a partir da Grande Depressão, ou mesmo ser ideologicamente derrotado, faz com que os que defendem o capitalismo se entrincheirem agora contra a estatização da mesma foram como há algumas gerações se entrincheiraram pela manutenção do padrão-ouro; mesmo desconfiando que isso tornará a crise e a instabilidade econômica e política mais duradouras e penosas. Esse é o ponto: é quando o problema ideológico se transforma em um problema político de grande proporção e enormes consequências para os EUA e para todo o mundo.
*Lecio Morais é economista e mestre em Ciência Política, atua com assessor técnico na Câmara dos Deputados.