Cenas brasileiras de Murilo Carvalho
Jornalista, escritor, homem de marketing, de televisão e cinema, o mineiro Murilo Carvalho é um desses sujeitos de experiência múltipla que coloca seu talento a serviço dos trabalhadores e das causas avançadas e progressistas.
Por José Carlos Ruy
Publicado 04/02/2011 14:18
Na década de 1970 foi repórter no jornal Movimento e, com a Brasília azul que ele tinha, percorreu o Brasil inteiro – do Rio Grande do Sul à Amazônia, sempre atrás dos lugares onde a luta se manifestava, onde havia alguma atividade em defesa do país, dos trabalhadores e da democracia. Andou entre índios, lavradores sem terra ou com pouca terra, moradores ameaçados por barragens, trabalhadores que atuavam nas grandes obras de engenharia e infraestrutura que então eram construídas, etc, etc. Fez reportagens memoráveis publicadas, semanalmente, na seção “Cena brasileira”, uma das mais lidas daquele periódico que reunia as forças avançadas da oposição à ditadura militar.
Escreveu alguns livros importantes – A cara engraçada do medo, de onde foi extraído o conto aqui reproduzido; Estórias de trabalhadores (1978), Sangue da terra – a luta armada no campo (1980), entre outros. Seu último livro é o romance O rastro do jaguar, cujo tema é a saga da formação da nação brasileira e seu povo, premiado em Portugal (Prêmio Leya de 2008) e publicado no Brasil pela Leya.
“Craquenta, mão craquenta, craquenta, craquenta”, e as lágrimas arrebentavam, grossas e mornas, e ela enterrava os olhos na fronha e queria morrer e sofria todas as dores, porque ela tinha acabado de fazer quinze anos, amava e estava ali, no quarto frio do barraco, chorando, enquanto ele estava na festa e ela ali, com as mãos craquentas, chorando lágrimas que nasciam ardidas, fruto do fogo brotando dos olhos azuis, sem aguentar a ausência, arrebentando de raiva das mãos, craquentas, craquentas. Vontade de acabar com tudo, ser diferente, não ter que ir apanhar o café mal debruçava a madrugada, os braços rijos de frio, a boca abrindo de sono, o chacoalhar enjoado do caminhão, a comida velha, as costas doendo, o cheiro do melado do café escorrendo viscoso pelos dedos, entrando debaixo das unhas, pretejando a mão, ressecando a pele macia, transformando sua mão em coisa velha, antiga, enrugada como caroço de pêssego. Mas o trabalho era a vida. Dela, ali chorando, da mãe, do pai, dos irmãos. E tinha que chorar baixo, muito baixo para que ninguém escutasse, mas não encontrava o rumo do silêncio e o choro saia aos arrancos, como arrotos, e todos ouviam, deitados no escuro, a mãe, o pai, os irmãos, todos ouviam seu choro, mas todos estavam silenciosos, cansados demais para fazer ou dizer alguma coisa. Esperavam calados que ela dormisse, pesada das lágrimas e então a tudo ficasse em silêncio de novo, como todas as noites. Mas aquela era uma outra noite, mais fria, mais escura, em que ela chorava de ódio, de desespero, chorava pelas mãos craquentas que não tinha coragem de mostrar na festa, não tinha coragem de deixar que ele pegasse nelas, as acariciasse. Como poderia sentir-lhe a pele, o bigode macio, as ondas do cabelo, com aquelas mãos grossas do melado do café, aquelas mãos de unhas escuras, incapazes de alguma doçura, ríspida, rascante? Chorava porque ele estava na festa, esperando por ela, mas doía a vergonha das mãos escura e não tinha coragem de pegar na mão dele, na hora da dança, talvez ele preferisse outra, de mãos mais suaves, que não trabalhasse como ela, madrugada atrás de madrugada, gastando as mãos no melado do café maduro. As lágrimas vinham e era como se uma dor funda cortasse o silêncio em pedaços gelados e os fosse enfiando no coração de todos os que, deitados, escutavam o choro dela. Era escuro, muito escuro, e vinha o vento e dava o vento e dava o fino das montanhas, rinchando pelas frinchas, cavalo doido e negro a galopar entre as camas do quarto estreito , gelando as orelhas mal tapadas pelos cobertores encardidos. Todos estavam com muito frio, aquela noite. Ela chorava, pensando na festa, na alegria, nos olhos dele, na roupa azul que talvez estivesse usando, no vestido branco que a mãe tinha costurado nos pedaços de tempo sobrados do trabalho na roça, do cozinhar da comida, do lavar da roupa, do cuidar dos filhos. Pensava nele, na voz que apenas entreouvira, no cheiro que decerto recenderia de seus cabelos. Pensava nas amigas divertindo-se na festa, nos perfumes que elas estariam usando, no perfume que ela mesma usaria e sentia ódio e vergonha misturados ao desejo de levantar-se, vestir o vestido e ir, correndo ir, até o baile, e que as mãos fossem outras, macias, que ela não precisasse esconder, que pudesse usá-las sem medo, para acariciar de leve o rosto dele, sentir a textura da pele onde a barba nascia, e quem sabe correr com as pontas dos dedos as curvas do queixo, as curvas dos lábios e quem sabe… Mas ela estava ali, encolhida de frio e vergonha, as mãos craquentas agarrando o travesseiro e em volta o cheiro do su9or dos irmãos, da mãe, do pai, que esperavam em silêncio que ela dormisse. Mas aquela noite ela não ia dormir, porque aquela era uma noite grande demais para ela, que acabara de fazer quinze anos e estava apaixonada.
Do livro A cara engraçada do medo. São Paulo, Editora Hucitec, 1977.