Chico Lopes apresenta livro sobre Fundação Casa Grande

“A educação formal tem muito o que aprender com a Casa Grande”. A afirmação é do professor Tancredo Lobo, da Universidade Regional do Cariri (URCA), que lança esta sexta-feira, 4/2, às 19h, no Auditório do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, o livro “Sonhos como Projeto de Vida”, resultado de seu trabalho de pesquisa na Fundação Casa Grande, ONG do município de Nova Olinda, na região do Cariri, para o doutorado em educação, na área de movimentos sociais.

Tancredo Lobo

Sintetizando a experiência de dois anos de pesquisa junto aos “meninos” da Casa Grande, o livro, que traz importantes reflexões sobre a prática educacional e a transformação humana, é dedicado pelo autor “às pessoas que não perderam a esperança, não sucumbiram ao fatalismo e ao desespero”. No lançamento, a obra contará com apresentação do professor e deputado federal Chico Lopes (PCdoB-CE).

A partir da convivência com os “meninos da Casa Grande” – crianças, adolescentes e jovens adultos que redimensionam suas possibilidades de vida a partir do convívio na ONG que é a um tempo museu, centro cultural e uma grande escola de comunicação -, Tancredo Lobo convida a debater o real potencial transformador da educação. “Essa é uma modesta contribuição à manutenção da esperança, ao exercício crítico e práxico da utopia, ao processo de produção de Sonhos, entendidos como projetos existenciais”, ressalta Tancredo, que, em entrevista ao site do Mandato Chico Lopes, detalha o trabalho de pesquisa e analisa o que os professores do ensino formal podem assimilar – e praticar – a partir da experiência da Casa Grande.

Graduado em Letras e Direito pela URCA, Tancredo Lobo é especialista em Literatura Brasileira e Administração Escolar, mestre em Educação (na área de currículo) e doutor em Educação (na área de movimentos sociais). Foi o principal palestrante do Fórum de Educação do Ceará, promovido pelo Mandato Chico Lopes nos últimos quatro anos, levando a todas as regiões do Estado o debate sobre qualidade de ensino.

“É uma honra apresentar o livro do professor Tancredo Lobo, uma contribuição tão importante às reflexões sobre educação, que não só os professores, mas todos os cidadãos devem fazer”, afirma o deputado Chico Lopes. “Convido todos a se fazerem presentes e a conhecerem o livro, um importante relato de pesquisa com os meninos da Casa Grande, uma experiência muito bem sucedida, em que a comunidade tomou pra si a tarefa e o prazer de educar”, acrescenta Lopes.

“Quero que o livro seja lido pelos educadores, por pais, pelos jovens… E que consiga despertar alguma reflexão, que saia daí alguma conversa sobre esse desespero que se está vivendo, no sentido de falta de esperança, e sobre como superar isso”, afirma Tancredo Lobo. Confira a entrevista:

No livro, o senhor aborda a possibilidade real de se manter uma educação que não se dissocie do sonho, como elemento de construção da vida e da emancipação. O senhor contrapõe o sonho, como projeto de realização pessoal e coletiva, à desesperança, ao desespero, ao desencanto e ao individualismo que muitas vezes parecem predominar nos nossos tempos. Essa inquietação com esse desencanto por parte dos nossos jovens foi o ponto de partida para esse trabalho?

Foi um dos pontos de partida, esse olhar pro que chamam de juventudes, especialmente adolescentes e adultos jovens, vendo cada vez mais os sonhos deles restritos a adquirir algum bem, alguma coisa. Por exemplo, No Interior, em Nova Olinda, muitos meninos sonham em adquirir uma moto. Isso é muito pequeno. Enquanto isso, os meninos da (ONG Fundação) Casa Grande, que tiveram acesso a essa fábrica de sonhos, pensam muito maior. Foram tocar em Berlim. Conheceram outras realidades. Um dos pontos de mutação desses meninos são exatamente as viagens. Viajar é tão importante! Olhar Nova Olinda de fora, e mesmo assim decidir continuar morando em Nova Olinda, é um grande diferencial desses meninos. Porque meninos como eles, como a competência que têm, dominando Internet, produção audiovisual, poderiam estar em qualquer lugar, no eixo Sudeste… Mas querem morar em Nova Olinda.


Esse olhar de fora não diminui o respeito pela própria realidade.

Não. Na verdade, eles têm muito forte um senso de gratidão a Nova Olinda e ao Allemberg (Quindins, mantenedor da Casa Grande), que eles têm como uma figura paterna. E à Casa Grande, onde chegaram como crianças muito pequenas, indo para brincar. Eles têm esse senso de gratidão, que acho que é tão ausente hoje! Um senso de pertença, de saber onde estão e pra onde querem ir. Eles têm Nova Olinda como uma âncora, após essas viagens que são como pontos de mutação. Eles vão e voltam. Como todo viajante, e isso é um arquétipo do mito do herói. Eles vão e trazem as histórias. E não são mais os mesmos, porque trazem s histórias desses lugares, mas continuam os mesmos, porque moram nos mesmos lugares, querem morar lá. Achei esse aspecto tão íntegro, tão bom. Tem um depoimento de um dos meninos, o Aureliano, que diz: “A máquina da minha família era, ao completar 18 anos, ir embora pra São Paulo”. E eles escaparam disso, contra toda uma cultura da comunidade. Eles conseguiram subverter essa lógica de êxodo.


Qual é o diferencial da experiência da Casa Grande, em termos de início e concepção do projeto? Por que a Casa Grande aparece como uma exceção, uma experiência única?

Um diferencial é o aspecto cuidadoso do casal Allemberg e Roseane (mantenedores da Casa). Isso beira a paternidade, a maternidade. Eles cuidam dos meninos como se filhos fossem. Conversam, orientam muito. É uma educação em muitos aspectos, inclusive moral. Uma outra coisa importante é que eles têm essas conversas isoladas, mas eles decidem tudo em conselhos, coletivamente. Então muito cedo, aos oito anos, um menino já é introduzido nessa convivência do coletivo. Tem uma formação ética, que acho muito importante pra eles, da responsabilização. E funciona de um modo muito simples. Um menino de sete, oito anos, chega e alguém diz: “Você vai ficar responsável por varrer esta calçada”. Um menino que nunca teve essa responsabilidade de nada, porque a cultura infantiliza demais a infância, torna até uma imbecilidade. E o menino que recebe a tarefa se sente capaz, percebido, valorizado. Com o desenvolvimento, rapidamente ele recebe uma gerência de um dos setores da casa: o museu, a gibiteca, a DVDteca, a banda de lata, o estúdio de filmagem, o teatro… Aí é que essa responsabilidade desse menino cresce. Esse aspecto da formação ética pela responsabilização é um dos pontos mais fortes da formação educacional que eles recebem.


Isso depõe contra a preocupação com a proteção da criança, defendida em um certo momento da pedagogia? A pedagogia hoje revisa isso, faz essa autocrítica?

Eu sou da roça e ia pro grupo escolar, distante do sítio. E à tarde ia com meu pai pra roça. E ninguém nunca chamou aquilo de trabalho infantil, de exploração infantil, porque isso faz parte da formação dessas populações. Mas não vejo essa autocrítica da pedagogia. Vejo ainda muito cuidado, em relação a isso. Estudo desenvolvimento, sou professor de psicologia do desenvolvimento, e acho que ali pelos sete, oito anos, os educadores e pais poderiam ir introduzindo a criança em assumir algumas responsabilidades. Se não pelo trabalho, mas os trabalhos em casa, por exemplo. A casa é uma comunidade. O que vejo mais das vezes é um menino que tira a roupa e larga no chão, não cuida nem da própria roupa. Tem sempre muita gente fazendo as coisas por ele. Quando adulto, ele vai ter grande dificuldade de assumir responsabilidades, que é a tarefa do adulto. Se ele nunca vivenciou isso… Esse tipo de formação eu incluiria numa formação do ethos. Na Casa Grande são duas formações muito fortes. A educação escolar poderia aprender muito com isso: uma formação ética e uma formação estética.


Uma formação estética de impressionar, mesmo a muitos adultos. As crianças lidam com a maior naturalidade, por exemplo, tanto quanto com as lendas indígenas do Cariri quanto com os grandes nomes da história do cinema e do jazz…

Eles estão cercados por isso que chamam de forró, por mídia, como televisão e pelas lan-houses. Quando chegam na Casa Grande, têm acesso a filmes de arte, assistindo e discutindo os filmes. A shows de excelente qualidade, que passam por lá e às vezes não passam por Crato e Juazeiro, as maiores cidades da região. Então eles têm acesso a um conteúdo de qualidade, que promove essa formação estética, que é essencial. Essa capacidade de o indivíduo olhar e ver as coisas, olhar e ver beleza, ampliar esse olhar.


Como se deu o trabalho de pesquisa que acabaria resultando no livro? Qual foi a abordagem do universo da Casa Grande?

Foram dois anos de pesquisa. Comecei com entrevistas individuais. Um tipo de entrevista narrativa. A pesquisa é autobiográfica, minha e deles. Nossas histórias são muito parecidas. Esses sonhadores… Eu dava o mote da entrevista, e eles falam, falam, falam, até terminar. Aí é que eu peço pra esclarecer alguma coisa, complementar. Depois das entrevistas transcrevi todo esse material e fui selecionando núcleos de significado, temas recorrentes em todas as entrevistas, o que eles falavam com mais frequência e ênfase. Selecionei esses significados e fomos pra uma outra fase da pesquisa, os círculos reflexivos. Sentávamos no chão com essas anotações resumidamente no centro e fomos refletindo sobre cada uma delas. Uma reflexão coletiva. E aí partimos pra construção.


Que principais conclusões o senhor destacaria desse trabalho?

A convivência é transformadora. Como pesquisador, como pai, que eu tenho um filho de 16 anos. Eles dizem: “Meu sonho é ser uma pessoa de bem, um cidadão de bem”. Aprendi muito com eles. Isso me transformou como educador. Como contribuição à educação, acho que esse fazer educacional das ONGs, com todas as ressalvas que se têm a esse movimento de ONGS, essa proliferação de ONGs, muitas conduzidas sem ética, sem cuidado, mas no caso da Casa Grande a educação formal tem muito o que aprender com essa organização. Eles têm um currículo flexível, uma pedagogia pela experiência, e não impositiva, têm essa idéia de aprender fazendo… Uma pedagogia não discriminatória, em que todos aprendem. A idéia de coletivo, que se faz pelos conselhos, e a forma como são decididas as questões, em um exercício democrático do coletivo. A forma como eles se vinculam aos outros, a afetividade. Eles são muito afetivos uns com os outros. Um dos temas foi: “E quando sair da casa?”. Eles diziam: “Tudo que eu faço aqui é pensando nos meninos que ainda vão vir”. Os caras têm uma preocupação muito grande em que tudo esteja bem, mas não só pra ele. Para os outros meninos, que ainda virão, pra que encontrem um ambiente bom e adequado. A educação formal, escolar, teria muitas lições pra aprender com eles.


A experiência da Casa Grande chama atenção pela singularidade. Por mais que haja outros trabalhos meritórios, mas não se ouvem relatos com o mesmo entusiasmo dos que falam da Casa Grande. Por quê? É, de fato, um caso único?

O que eles têm feito pra sair dos muros da Casa, digamos assim, é que os meninos mais experientes têm participado de encontros educativos, têm levado essas experiências pra outras ONGS, onde são chamados. Relatam a experiência, a própria vivência, e promovem oficinas de comunicação, turismo comunitário, cultura e arte e arqueologia. Eles têm bastante material. Mas há outras iniciativas, de outras ONGs, importantes também.


O que a Casa Grande ensina sobre o papel do professor? Eles não têm uma equipe formal de professores, especialistas em cada tema…

Não têm o “dador de aula”. Ele assume o papel de orientador, de um buscador mais experiente, com os meninos. Mas em qualquer modelo educacional, formal e não, a presença do educador é fundamental. O Allemberg diz que não tem uma pedagogia, uma filosofia, mas tem sim. Essa pedagogia do fazer junto, de assumir as tarefas. O menino de oito anos que é o guia pras pessoas do museu, ali é um educador. Se houvesse um professor formal, transformaria noutra coisa, numa academia de formação de técnicos.


O que o professor que está em sala de aula, na escola formal, com todas as limitações de currículo, tempo, falta de estrutura, pode colocar em prática, no dia a dia, a partir dessa experiência pedagógica da Casa Grande?

Realmente, o professor tem uma autonomia relativa, porque tem uma imposição muito severa do livro didático, dos parâmetros curriculares. O livro, que deveria ser um recurso, passou a ser uma camisa de força, que o professor tem que cumprir. Atualmente vejo esse campo mais apertado ainda pro professor. Ele precisa, e a maioria dizia, mas como eu vou fazer isso, se trabalho três turnos, mas ele precisaria ousar mais. Sacar de uma capacidade que todo educador deve ter, da criticidade, da inovação, da ousadia, do novo, do espontâneo. Ainda hoje eu tava brincando com meus alunos da universidade: “Nós precisamos da inocência”. A inocência é a ausência de preconceito, é a espontaneidade, a criatividade, a verdade. Aí eles dizem: “Ah, é isso mesmo”. É muito formalismo atualmente. Esse professor fica muito engessado, dentro dos currículos. O espaço e o tempo são muito demarcados. Hoje o aluno do Ensino Médio tem sete aulas. E o professor tem ali 50 minutos. Quando a aula vai começando a ficar boa, termina. Essa situação cada vez mais comprime o professor.


Mesmo assim, seria possível aproveitar alguma cosia dessa experiência da Casa Grande, pra sala de aula formal?

Seria. Primeiro a temática principal do livro, que são sonhos. O professor se perguntar, entre uma aula e outra: “Vem cá, isso que eu to fazendo aqui faz sentido?”. Esse vir todo dia pra escola, dar aula, planejar, avaliar, isso fortalece o meu sonho? Mas peraí, qual é meu grande sonho? Eu vivo pra quê? Qual meu propósito? Se ele se perguntar isso, aí já começa, já começou a mudança. Tem uma grande valia. Vai tirá-lo do corre-corre, da ansiedade, do estresse, e colocá-lo em outro campo: da crítica, do perceber-se, do questionar-se. As pesquisas mostram que os professores estão adoecendo. É um trabalho socialmente desvalorizado, estressante, porque muitos trabalham três turnos, em função do salário ainda muito pequeno. E eles olham e não veem. O conteúdo que nós trabalhamos, que “vendemos” pra esses meninos, não é oração subordinada, equação, a data em que o Brasil foi descoberto. Nós vendemos sonhos pra eles. Uma promessa de que se eles passam tantos anos na escola eles podem ter uma profissão, atuar socialmente. Se isso não faz sentido, fica muito difícil. Os meninos são muito mais imediatistas. Quando saem da escola, tem logo ali na esquina promessas muito mais imediatas. É uma disputa muito difícil. Vender promessa num campo veloz, em que se valoriza muito ter coisas. Mas é essencial o professor perguntar isso: “Isso faz sentido?”. “Esse vir todo dia pra escola, pra trabalhar, está fortalecendo o meu sonho?”. Sem essas perguntas, o trabalho do professor é uma ação vazia.

Fonte: Ass. Imprensa – Dep. Fed. Chico Lopes – PCdoB-CE