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Marco Albertim: Vítor Hugo

As unhas dos pés, das mãos e os cabelos davam-lhe a aparência de um vodum; vodum sem forças porque se sentara no meio-fio, joelhos curvados à altura do queixo, braços entre as coxas e os olhos mortos no chão. Nas entranhas das unhas, todas, gordura de sujeira, tão preta quanto as rachaduras da sola dos pés. Os cabelos escuros, há muito sem enxágue, acinzentaram-se. Mendigo, Vítor Hugo virara um mendigo. Não precisava de outro disfarce para se esconder da polícia.

Por Marco Albertim*

I
Ateus, sim; incrédulos, não

Observei-o por dois minutos, afrouxando os passos, sem parar para que não me visse. Eu tinha algum dinheiro, podia minorar sua fome com um caldo de ovo quente. Mas não podia saber, ele, que também eu estava ali homiziado. Ventura infeliz, descobri-lo vivo, esmolando. Afastei-me. A fome que tirava a força de Vítor Hugo, sumira de meu estômago.
Não ocultei que o achara. Duas semanas depois, veio morar comigo por decisão dos outros. Não conseguira trabalho, ele, e mantinha a identidade real. Não fora preso porque se transformara num vegetal seco, sem folhas.

Comendo uma refeição certa, recuperou a vontade, foi integrado à rotina. No começo, nada que exigisse fôlego ou o expusesse a riscos. Enquanto pichávamos muros de fábricas, ele ficava numa esquina, num cruzamento junto a um poste, para avisar com sinais caso a polícia surgisse. Não tinha agilidade para esguichar o jato em letras graúdas; as duas pernas tinham lesão de paralisia quando menino.

– Há uma encomenda para você – disse a ele. – Um pacote grande, parece roupa. Primeira vez que a família conseguia contato com ele. O portador trouxera o pacote, sem saber o que tinha dentro.

Duas calças, duas camisas, um par de sapatos e um livro do Velho Testamento. No meio, envolta nos panos, uma estatueta de divindade do candomblé. Ele riu, olhou para mim, adiantou-se:

– Minha mãe quer me proteger. Mandou a estátua de Ogum e um bilhete; diz que devo ter cuidado com as encruzilhadas, com os exus.

– Que vai fazer com a estátua?

– Vou deixá-la aqui, encostada na parede. Vai trazer bons fluidos.

– Nós precisamos de bons fluidos… de outros fluidos!

Riu.

Na vila afastada, nenhum estranho daria um passo sem que ninguém soubesse ou comentasse. Vítor Hugo fora objeto de murmuração, assim que chegara. Quando disse que viera à procura de trabalho, vestira roupa limpa enviada pela família, pararam de inquirir. Eu tinha trabalho certo, isto o tornou aceito na rotina da vila operária.

Depois de alguns meses, Donana apareceu na vizinhança sem aviso do orixá. Mas, conforme me ajuizou ele, resultou do zelo com que guardara o amuleto. O conchego com ela foi reparado, estranhado… e estimado. Loura e filha de mãe preta, herdara a cor dos cabelos, sardas, dos avós; avós incertos, posto que ninguém distinguia nomes, modos. A mãe, uma vez por semana, fazia celebrações a orixás diversos; ela mesma uma ialorixá tão temente quanto forte. Vítor Hugo, familiar aos ritos, não recusava os convites.

– Venha comigo, vamos espiar – chamava-me.

– Não. Prefiro descansar. Cuidado com os santos! Descubra um que seja padroeiro da revolução que eu vou. Vou para fazer oferendas.

– Ogum protege os artistas, operários de artes metalúrgicas!

– Não vai conseguir me aliciar, Vítor. Somos ateus. Esqueceu?

– Ateus, sim; incrédulos, não.

Tinha o costume de dormir tarde, bem tarde; depois de esfregar-se com Donana, de ler longos trechos da bíblia, para comentar episódios de lutas de classes. Logo foi descoberta a prenhez de Donana. Sem recursos, ele foi morar com a sogra. A velha não o chamara, mas com gosto aceitou seus préstimos nas cerimônias. Não assinou papel em cartório, dispensou bênção de padre. A sogra não se ofendeu, nunca fora de ritos a não ser os do próprio culto. Donana, com o ventre intumescido, exigiu que, junto dela, ele não tirasse a mão de sua barriga. O bucho teria que crescer ao abrigo de olhados. Ele mesmo, sem dizer, protegia-se de quebrantos imaginados. Não fora preso até então, cria, porque soubera se ocultar de agouros. Às sextas, dia agourento, arriscava-se a sair de casa para a reunião. Dessem-lhe, porém, tarefas à noite, em lugar deserto, arguia com facilidade a conveniência de outro cumprir. Mas não escapou de, na noite de uma sexta, ter que buscar uma mala cheia de papéis, dez quilos de inculpações subversivas.

A casa, num beco do Pirambu. Ele atravessou o corredor. Na sala de jantar, andou num piso de cimento quebrado, olhando um altar com toalhas de renda, flores, estatuetas de divindades. Uma dezena de filhas de santo gemia cantos indistintos. Não demonstrou, ele, familiaridade com os petrechos. Ao lado do altar, um moço magro, deitado na cama, olhando submisso para a luz de uma grossa vela. À chegada do estranho, desviou o olhar; viu Vítor Hugo e temeu ser a encarnação de algum exu, para untar seu corpo com o óleo dos enfermos.

II
Sem ajuda dos santos, não há luta de classes

A mulher que o recebera, explicou:

– A maleta está embaixo da cama de meu filho. O lugar mais seguro para esconder. Mas só posso tirar de lá, quando terminar a cerimônia.

– Eu espero.

Bombos, gemidos, gritos. A velha era ialorixá e arquivo de anotações. Não sentiu sono, ele. Junto com outros, encostou-se na parede. A magreza do doente não chamava mais a atenção; e todo o sacrifício era para sua cura. Vítor Hugo não cruzara os braços para não embaraçar as divindades. Mudo, perdeu o prumo dos sentidos, deixou-se tomar por força até ali só suspeitada por ele. Em transe, olhos revirados, empurrando, foi incorporado por orixá desconhecido. Seguraram-no nos ombros, sacudiu os braços, bateu os pés, jungido ao meio da sala. O doente acreditou estar em noite de cura, ou de seu derradeiro suspiro. Não se levantou, pôs-se sentado para considerar o novo babalorixá.

Meia-noite os bombos calaram, o doente dormiu.

– Você é médium, meu filho. Foi por isso que mandaram você aqui. Veio para o lugar certo. Meu filho também está agradecido.

– Eu não sabia que era médium. O que eu falei?

– Falou a língua nagô. Não sabemos. Mas não se preocupe. Foi entidade de paz. Você tem boa energia.

– Que vexame.

– Nenhum vexame.

– A mala! Onde está a mala?

– No mesmo lugar. Se quiser pode levar agora. Você ainda está sob proteção.

– Posso dormir aqui esta noite? Não estou me sentindo seguro…

– Pode. Será sempre bem-vindo na minha casa.

Nenhuma cama sobrando. Deitou em rede; demorou a dormir, cogitando o dote recém-descoberto. Acordou com a velha cantarolando. Sentou-se à mesa para a refeição da manhã. A velha espremia o pano de café, já dera de comer ao filho.

– É Josué, meu único filho. Andou dois anos, teve paralisia; tem quatorze anos. Levei pra médico, não sei mais aonde vou buscar raiz pro chá. Começo a perder a crença. Minhas comadres dizem que olhado se tira com reza, muita reza.

Conversaram toda a manhã. Quando se despediu da velha, – Raimunda, meu nome é Raimunda – prometeu voltar.

Chegou em casa ao meio-dia. Eu estava almoçando.

– Tenho fome, muita fome.

– Donana esteve aqui. Está preocupada com sua ausência. Por que não veio dormir em casa? Não deve fazer isso. Podemos pensar que você foi preso.

– Não foi possível pegar a mala logo. A velha estava ocupada. Também gosta de mandinga. A cerimônia terminou tarde. Não achei conveniente sair com a mala. Dormi lá mesmo.

Depois do almoço, não cuidou da ordem do conteúdo da mala; deixou-a ali mesmo, na sala, perto de onde almoçara. Pegou o Velho Testamento, foi para a casa da sogra. Creu-se tão onipresente quanto o orixá que se ocupara de seu juízo. Sexta-feira seguinte, não foi à reunião. Sábado, apareceu para dizer que sua ausência não resultaria em prejuízo, porquanto se dera conta das decisões.

– Não houve decisões! – ponderei.

– Isto o que eu quis dizer! Peroração contra os militares, advertências sobre a segurança e o inevitável fim da ditadura. Os camaradas estão em dia com os fatos. Sinto os fluidos de cada um deles. Nem é preciso me repetir, Romano. Não perdi os sentidos, e leio na sua silhueta.

– Espere…

– Ah… quer exercitar sua experiência comigo, um militante tão esperto quanto você. Somos da mesma geração, rapaz. Frequentamos a mesma escola e tivemos os mesmos dirigentes. – Está falando pelos cotovelos!

– Eu tenho o sentido da revolução, Romano!

– Não penteou os cabelos. Está parecendo um espantalho, o mesmo de quando eu o reencontrei.

– Talvez isso.

Saiu rindo, olhando para mim como se também eu estivesse impressionado com seu desempenho.

Semana seguinte, na reunião, na minha frente e de mais dois, gente do comando. Ouviu calado as censuras. Nem quando lhe foi dada a vez, quis falar. Assentiu manso, olhos na mesa de anotações, de raro em raro nos de outro. Mais idiota que disciplinado. Ouvindo um gracejo morto, ria acima da conta. Foi o primeiro a se levantar. Encheu quatro copos com água e trouxe para a mesa, tedioso.

Convenceu-se de que seu fado no candomblé daria outro rumo à surda rotina de conjuras. Sem a ajuda dos santos, urdiu, não há luta de classes; pode haver disputa entre chefes, mas choques para a assunção da sorte do povo, só com a ajuda dos orixás. Mas faltou-lhe coragem para perorar contra exus reacionários. Não disse à sogra nem à mulher que fora usado por um orixá noutro terreiro.

Voltou à casa de Raimunda em noite de cerimônia; recebido com cumprimentos. O doente, no mesmo lugar, desalentado. Tambores tocaram, os gritos ganharam a rua. Ele entrou no círculo em volta da velha. Fita azul no ombro, pendurou-a no pescoço. Cantou, entregou-se aos orixás certo de que o tinham refém. Cercado de cuidados por causa das pernas, segurando no ombro da ialorixá, crendo-a uma iabá. Entregue ao próprio fado, Vítor Hugo bufou no nariz, espiado pelos outros. Boas-vindas ao orixá pela mercê do filho que surgira sem sacrifícios.

Voltou a si, suado, mais vodum que gente. Deram-lhe uma toalha, enxugou o rosto. Chamou a velha para um canto. Quis saber o que dissera, o orixá que fizera uso de seu corpo.

– Oxalá, meu filho. Você foi escolhido por Oxalá.

– O dono da criação. Faz os homens com o barro, do seu jeito.

– Isso mesmo! Você foi feito por ele. A prova está no defeito de suas pernas.

III
Meu genro tem alma nagô

Dormiu outra vez na casa da velha.

As diferenças entre mim e ele, porquanto morávamos próximos, foram toleradas por ter sido eu quem o trouxera à vila. Toleramo-nos com fastio, mudos. Eu o espreitava à espera de outra surpresa infeliz. Achava-se afortunado por ter o dom de moldar personalidades, donativo de seu orixá; e assim, persuadir os outros a optar pela revolução. Tinha bons propósitos, com modos arriscados.

– A humanidade tem um rumo próprio. Precisa descobrir sua sorte com o seu próprio fado, para incitar a cultura do ódio contra seus malfeitores.

– Está falando como um bruxo, Vítor.

– Tem medo de bruxaria? Todo o nosso trabalho é para desfazer a bruxaria da burguesia. Por isso conspiramos em silêncio.

– Conspiramos em silêncio para manter nossa segurança!

– Também isso. Os bruxos não se anunciam aos poucos. Mostram-se repentinos contra seus desafetos.

– Está se revelando um bruxo. Eu o vi sentado, sem a proteção de ninguém… – Eu não tinha descoberto o meu fado.

Toda sua conversa era de familiaridade com feitiçarias. Queria me habituar com seu novo perfil, embora não confessando os transes.

Na quietação do natal, ninguém se arriscou a pintar muros, espalhar volantes. Vivia-se uma trégua na presunção de que os inimigos também se recolhiam às manhas, ocultando armas.

Nos fundos das casas, lâmpadas mortiças, sem força para reluzir na superfície da água do açude. À beira, um boqueirão de esgoto despejando detritos. Lua cheia, a lâmina d’água devolvendo o negrume luminoso a casas, muros, quintais. Fulgor festivo de curta duração, incidindo em cada rosto.

Vítor Hugo me chamara para o festejo, de manhã. Queria que eu fosse, depois do trabalho, direto à casa da sogra. Recomendara que não bebesse antes de provar o peru que a sogra poria no forno. A família, ano inteiro em fartura regrada, no costume da comida sem variação. Dia festivo, aos diabos com a regra. Comia-se, bebia-se como um orixá dissoluto.

Donana abriu a porta; acanhada, escondendo a primeira prenhez. Levou-me para os fundos. Com o portão aberto, via-se a água lustrosa do açude.

– Salve! – gritou ele, gritou arremedando a velha Raimunda.

Incitado pela sogra, puxou uma cadeira para mim. Queria me ver junto dele, nomear-se guia de meus modos incertos; guiou-me até me entediar. A velha salpicou perfumes, balbuciou orações. Eu queria espiar os modos de Vítor Hugo, apreciar sem engano seus propósitos. Ele servia-se, servia os outros. Donana, mesmo com ele em pé, não soltava seu braço, para ter a barriga apalpada. Felicitei-o por ter conseguido se integrar à cultura da família. – Tenho fado, já lhe disse. Tenho o instinto de um orixá onipresente. Minha sogra também pensa assim. Me acolhe como seu auxiliar. Donana dorme feliz quando sabe que estou acoitado pela mãe.

– Você é um camaleão, Vítor. Tem as cores do lugar que frequenta.

– Camaleão, sim. Mas não um réptil. O réptil é como a ave de rapina. Não faço rapinagem. – Se fizesse não estaria conosco, não teria lugar para você.

Os goles se repetiram em sua boca. Só Donana não bebia. A velha, perita nos cantos, deixava a bebida respingar nos beiços. Vizinhas e convidadas abraçavam-na.

– Se Deus quiser e minha mãe Oxum, ano que vem tá todo mundo aqui de novo! – arriscou a velha.

– Axé! Axé!

O último a gritar foi ele, último para ser o único a ser ouvido. Aplaudi conforme o costume. Estudei-o como a uma formiga no rumo de meus pés. Orixás tinham influência nos seus gestos, exceto a ordem de revolução. Movia-se com queixumes do passado, do que fizera a mando de orixás de carne e osso. Gritara vivas à revolução operária, em levante já distante do juízo; gritou agora com a mesma energia de antes.

– Tem alma nagô, o meu genro! Meu genro tem alma nagô! Ele curtiu-se na fala da sogra e bebeu sem ter o costume. Foi o único a ficar pinguço. Chamou-me para o oitão da casa. Sossegou Donana segurando-se em meu braço. Quando ficamos sós, sem que pudessem nos ouvir, abraçou-me sem nada dizer; em seguida, chorou. A dor viera no deleite da própria ventura. Dei-lhe um tapa amigo no rosto. Confessou que perdera a confiança em si, que se unira a Donana para se crer útil em família. Não fosse assim, teria recorrido ao suicídio.

– À revolução! Você é útil à revolução!

– A revolução é obra de longa preparação. Preciso ser feliz logo, agora.

– A luta não o deixa feliz?

Toda a sua vida fora para encobrir o aleijão das pernas numa cultura de almanaque. Sentia um amor frouxo por Donana, contentando-se com seu sexo submisso, com a servidão a seu modo de conjeturar o mundo.

– Donana é mulher amante, amante amantíssima. Não quero magoá-la. Não merece. – Confessou a ela que é clandestino?

– Não.

– Que trama contra o governo?

– Sim.

– Como ela reagiu?

– Não se assustou. Está sempre me dando razão.

– Por que está pesaroso, então?

– Porque tenho dúvidas, ainda tenho muitas dúvidas quanto à crença na revolução.

– Todos nós temos dúvidas. Não deve se assustar com isso. As dúvidas nós tiramos na rotina da luta, na reação do povo ao que dizemos.

– Tem razão.

Enxugou os olhos. Voltamos ao festejo.

IV
Nasceu órfão de orixá

O convívio partilhado era insuficiente. Não dissera, mas vivia espreitando a chance de voltar para casa, junto da família. Mesmo com o risco de ser preso, porquanto seria solto depois de algum tempo; não voltara por causa das pernas escassas. Dizia a Donana sem medo de ouvir objeção. Seguiria, ela, o rumo que mais conviesse ao marido. Confessou a mediunidade. Ela chocou-se, não o choque de rejeição, mas de submissão aos atributos dele.

Ter Donana sob o jugo da luxúria, agonia e prazer na própria frouxidão. A submissão dela, obtinha-a graças aos humores dos orixás. Tornou à casa de Raimunda. Queria aperfeiçoar o dote, meios de reparar-se das fraquezas. Ouvindo os bombos, o coração se entretinha mais do que ouvindo conjuras. O doente familiarizou-se com ele sem trocar palavra, no ricto dos olhos. Raimunda acolhera seu transe como graça do orixá ao terreiro. Ele fiou-se na conversa dela, afilhado. Descobriu que fora presa quando operária, ativista numa fábrica têxtil. Torturada, jurara de morte o torturador, olhando-o nos olhos. Riram de sua cara. Solta, voltou ao trabalho. Afastou-se de outras camaradas, para evitar que fossem presas. Descobriu sem dizer a ninguém, o endereço do polícia que a torturara. Tinha um revólver de cano curto, enferrujado. O disparo teria que ser de perto, à queima-roupa. Com a jura no juízo, espreitou-o nas ruas escuras do Pirambu. O homem não andava só. Ela queria evitar testemunhas. Mais de mês fazendo tocaia. Soube, num bar do bairro, que ele morrera. À noite, no velório, passou em frente a casa. O enterro seria às nove da manhã seguinte. Acompanhou o cortejo a distância, fingindo-se beata de cemitério. Quando todos saíram, foi à sepultura. O coveiro se afastara, não havia outro enterro. Abaixou-se levantando a saia, arriando a calcinha. Mijou com força de vindita sobre a cabeceira da cova, na terra mole. “Pro inferno, excomungado!” Vítor Hugo absorveu uma a uma as palavras da velha Raimunda. Julgou-a tão corajosa quanto diferente dele.

– Estou velha demais. Vivo da aposentadoria e do trocado que ganho das consultas que dou. Não tenho mais força pra andar de porta em porta de fábrica, juntando gente para a luta. Mas tenho boa visão. Sempre que tenho tempo, leio os boletins.

– Sabe que os outros não acreditam em orixás? Somos ateus.

– Sei. Mas ninguém me proibiu de ter minha crença pessoal. Me dou melhor com os ateus do partido do que com as devotas do catolicismo.

A velha tossia curvada, a bituca de cigarro presa nos dedos. Levantava-se para cuspir o catarro do pulmão. Entisicara depois de seguidas chuvadas, da fábrica para casa, sem sombrinha, com um plástico remendado na cabeça.

– Acredita que os santos podem ajudar o trabalho dos camaradas? – perguntou Vítor Hugo. Queria acumpliciar-se à velha… ou acumpliciá-la a seus propósitos de ativista com um pé no conluio e outro na macumba.

– Acredito, meu filho. Estou viva ainda graças aos santos.

Reparos na alma depois da conversa.

Não evitou, ele, que Donana parisse uma criança morta. Seria menino, nasceu asfixiado no cordão do umbigo. A parteira notou o defeito nas pernas, como o do pai. Ele não disse, mas sentiu alívio por não ter filho deficiente das pernas. Alívio fundo.

Raimunda sobrevivera à tortura, não evitaria a morte precoce do filho. Outra vez Vítor Hugo creu-se ungido por Oxalá.

Donana, que se vira dissipando leite na boca do filho, chorou baixinho. O parelho assistira ao parto, ali mesmo, na cama onde a emprenhara. A criança não teve tempo de chorar. A parteira enrolou-a na toalha, entregou à avó. Enterro nos fundos do quintal, na beira do açude.

– Des’tá, minha filha. Tem tempo pra fazer mais filho. Foi melhor assim. Não veio agora porque nasceu órfão de orixá.

Batuque raivento no sábado seguinte. Homenagem aos orixás porque a casa estava carecida. Donana, deitada. Vítor Hugo ajudou a sogra, sem perder a tenção de não entrar no transe. Medo de ser execrado, caso o partido soubesse de sua condição de ativista pai de santo.
Foi dormir de manhã, quando a sogra saiu do transe. Donana acolheu-o no peito. Ele dormiu, não evitou o pesadelo de sentir as pernas pisadas por torturadores; gemeu rouco. Cuidou, ela, que era por causa do cansaço. O homem que supliciara Raimunda, pisando sem dó nas pernas dele. Raimunda, com o vestido de chita no corpo, acudiu-o com uma rosa rubra. Oxalá é provedor dos homens… O polícia, com a mão no rosto, com medo da aparição.

V
Exu!

Acordou ao meio-dia. Comeu sem fome, para sentar-se à mesa.

Com chuvas, quase nada se pôde fazer. Ruas alagadas tirariam a mobilidade nas pichações. Os volantes borrar-se-iam nas poças. Não se via viatura de polícia. Ainda assim, um refugo de mil volantes seria distribuído. Às cinco da manhã, fim do último turno. Vítor Hugo encostou-se ao poste, sinal do cruzamento. Dois outros se misturaram a operários na saída. Mais da metade dos volantes foi distribuída. Na esquina do lado contrário ao dos outros, ele recuou; recuou porque viu um alguidar com cuscuz, velas acesas, galinha morta e charutos. Exu na encruzilhada! Não fez sinal para os outros. Uma viatura de polícia passou. Recuara muito, ele, de costas para a viatura. A polícia enxergou com facilidade o ofício dos rapazes. O veículo estacionou, policiais desceram. Uma prisão, o outro se meteu entre operários, entranhou-se nas ruas, safou-se.

A baixa foi debitada a Vítor Hugo, a sua crença em exus erradios.

– Estúpido! Você fugiu como uma criança com medo do papa-figo!

– Não soube o que fazer.

– Como não soube o que fazer na frente de um despacho inocente!?

– Inocente!? Nós perdemos um camarada!

– Por sua culpa! Não soube cumprir a responsabilidade de manter a segurança!

Contou à velha Raimunda sem esconder detalhes.

– Fez mal, meu filho. Não teve confiança no seu pai Oxalá; ele pode com qualquer exu de encruzilhada. Você é um médium novo, por isso não se lembrou de seu protetor. Não pediu ajuda a ele. Está em débito com seu orixá.

Paramentou-se à noite no terreiro da velha. Entregou-se à sanha de Oxalá, pelo tempo que mais aprouvesse à divindade. Os bombos zurziram na vizinhança, pondo cobro à demanda do santo.

Na noite seguinte chamei-o para outra conversa. Estava dormindo, chegara exausto sem se dar conta da precisão de Donana por outra gravidez. Repousou sob repuxos; teve sonhos, pesadelos. A sogra diagnosticou palidez. Aprontou um pirão-de-cabeça-de-galo. Dali em diante, teria contatos só comigo, sem direito a reuniões. De quarentena, Vítor Hugo de quarentena até ser decidido que atribuição teria. Logo ele próprio decidiria o que fazer de sua vida, agora numa encruzilhada.

A doença de Raimunda deixou-a de cama. Com o pulmão se extinguindo, soprando, a custo ouvia-se o que dizia. Não saiu de seu lado, ele, segurando-a na mão.

– Não tenho mais o que fazer aqui – ela disse.

– Não morra!

– Vou desencarnar. Já cumpri o meu destino.

Morreu sem agonia, com o rosto da cor de cal. O filho grunhiu no choro. Ficou aos cuidados de duas tias, mais moças que a mãe. A sala de cerimônias não foi desmontada. A Vítor Hugo foi oferecido o seu uso. Ele assentiu incerto, olhando para o legado da velha. No enterro, entre velhas, depositou uma rosa vermelha na cabeceira da cova. Voltou para casa com passos moles, suspeitando que seu fado minguara.

Donana consolou-o como pôde, de seu jeito caricioso. A sogra entrou no quarto, revelou que conhecera a velha Raimunda.

– Foi ela quem me iniciou na macumba. Ela também me disse que você é protegido de Oxalá. Raimunda descansou.

Ele assumiu-se babalorixá do terreiro da sogra. Um mês depois, deu consultas. Os pesadelos não cessaram. Increpou-me de inquisidor por se sentir execrado pelos outros. Instruiu-se nos poderes de cada divindade, e não me perdoou por estar órfão da impulsão partidária. Um coro de iorubas, por sua boca, deu conta de motins imprecisos.

No natal, convidou-me para novo festim. Não fui. Apareceu de manhã, vestido de branco, os cabelos eriçados. Surpreendeu-nos em reunião, esconjurando-nos…

* Marco Albertim é escritor e jornalista. Ganhador do Prêmio Nacional Osman Lins de Contos. Menção honrosa dos Prêmios Literários da Cidade do Recife, com o livro Um presente para o papa e outros contos. Integra as antologias de contos Recife conta o Natal e Panorâmica do conto em Pernambuco. É colunista do Vermelho.