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Um dia sombrio para pagar a conta do leiteiro

Um inquietante descritor da vida brasileira foi o escritor gaúcho Dyonélio Machado (1895-1985). Médico (era psiquiatra), jornalista, militante comunista e autor de romances importantes como Os ratos (cujo primeiro capítulo é reproduzido aqui) e O louco do Cati, seus personagens eram pessoas comuns, suas esperanças, contradições e a luta cotidiana pela sobrevivência, seja contra a opressão política seja contra a opressão econômica.

Os ratos é um exemplo desta segunda modalidade – é a história de um dia na vida do pequeno funcionário público Naziazeno Barbosa e sua epopeia para conseguir o dinheiro necessário para pagar a conta do leiteiro, que ameaça suspender o fornecimento se não receber os atrasados no prazo de 24 horas. O romance é o relato desse dia sombrio para conseguir o dinheiro e pagar a conta do leiteiro.

Considerado um dos principais autores da segunda geração do modernismo brasileiro, Dyonélio Machado começou a vida modestamente. Seu pai foi assassinado quando o escritor era criança e, aos oito anos de idade ele já vendia bilhetes de loteria para reforçar o orçamento familiar. Observador perspicaz, deve ter colhido, desde menino, muito material que, mais tarde, usaria em seus romances. Ganhou um “posto de observação” melhor quando, aos doze anos de idade, começou a trabalhar, como servente, no semanário O Quaraí, em sua cidade natal na fronteira com o Uruguai e apaixonou-se pelo jornalismo que não abandonaria nem mesmo depois de se tornar médico. Ainda era jovem (tinha dezesseis anos) quando, aí por 1911, fundou em Quaraí um jornal cujo título já indicava um interesse pelo comunismo: O Martelo. Ele filiou-se ao Partido Comunista em 1934.

Estreou na literatura com o livro de contos Um Pobre Homem (1927) mas o reconhecimento veio com Os Ratos que, em 1933, foi premiado pela Academia Brasileira de Letras. Este seu primeiro romance, dizia o autor, foi escrito em apenas 20 dias (20 noites, na verdade), depois de nove anos de reflexão sobre o tema; ele contava também que o livro foi inspirado num pesadelo que sua mão teve um dia – uma referência forte do tema do livro e a vida cotidiana de gente pobre que se assombra com a perspectiva concreta de não ter o que comer. Depois vieram O louco do Cati (1942), Deuses econômicos (1966), Endiabrados (1980), entre outros.

Preso em 1935 – acusado de participar da Aliança Nacional Libertadora e de atuar na organização de uma greve de gráficos – foi no cárcere que partilho entre outros com Graciliano Ramos – que tomou conhecimento da premiação de Os Ratos. Em 1946, esteve entre os fundadores do jornal Tribuna Gaúcha, que o Partido Comunista do Brasil publicou em Porto Alegre. Em 1947, foi eleito deputado estadual no Rio Grande do Sul pela legenda comunista; seu mandato foi cassado em 1948, depois que o partido foi jogado na ilegalidade depois da suspensão, pelo TSE, de seu registro eleitoral (José Carlos Ruy).


Os ratos
(capítulo 1)

Os bons vizinhos de Naziazeno Barbosa assistem ao “pega” com o leiteiro. Por detrás das cercas, mudos, com a mulher e um que outro filhos espantado já de pé àquela hora, ouvem. Todos aqueles quintais conhecidos têm o mesmo silêncio. Noutras ocasiões, quando era apenas a “briga” com a mulher, esta, como um último desaforo de vítima, dizia-çhe: “Olha, que os vizinhos estão ouvindo”. Depois, à hora da saída, eram aquelas caras curiosas às janelas, com os olhos fitos nele, enquanto ele cumprimentava.

O leiteiro diz-lhe aquelas coisas, despenda-se pela escadinha que vai do portão até à rua, toma as rédeas do burro e sai a galope, fustigando o animal, furioso, sem olhar para nada. Naziazeno ainda fica um instante ali sozinho. (A mulher havia entrado). Um ou outro olhar de criança fuzila através das frestas da cerca. As sombras têm uma frescura que cheira a ervas úmidas. A luz é doirada e anda ainda por longe, na copa das árvores, no meio da estrada avermelhada.

Naziazeno encaminha-se então para dentro de casa. Vai até o quarto. A mulher ouve-lhe os passos, o barulho de abrir e fechar um que outro móvel. Por fim, ele aparece no pequeno comedouro, o chapéu na mão. Senta-se à mesa, esperando. Ela traz o alimento.

– Ele não aceita mais desculpas…

Naziazeno não fala. A mulher havia-se sentado defronte dele, olhando-o enquanto ele toma o café.

– Vai nos deixar ainda sem leite…

Ele engole o café, nervoso, com os dedos ossudos e cabeçudos quebrando o pão em pedaços miudinhos, sem olhar a mulher.

– É o que tu pensas. Temores… Cortar um fornecimento não é coisa fácil.

– Porque tu não vieste então o jeito dele quando te declarou: “Lhe dou mais um dia!”

Naziazeno engole depressa o café que tem na boca:

– Não foi bem assim…

– “Lhe dou mais um dia”, tenho certeza. “Isto é um abuso!”, e saiu atirando com o portão.

– Não ouvi ele dizer “abuso”.

– Ou “desaforo”… Não sei bem…

A mulher receia também que o leiteiro lhes faça algum mal. Ele é um “índio” mal-encarado e quando chega., de manhã muito cedo, ainda os encontra dormindo.

– Não, nesse ponto não há o que temer.

– Mas, e se nos deixa sem leite…

Ele tinha acabado o café, o ar preocupado.

– Também tu fazes um escarcéu com as menores coisas.

Levanta-se. Tem o olhar inquieto. A mulher fita-o atentamente, como quem procura alguma coisa no seu rosto. Ele tem um relance de olhos para ela:

– Olha, já seria uma vantagem não ter nada que ver com “essa gente”.

– Despachar o leiteiro?!

– Tu te assustas?

A mulher baixa os olhões; mexe com a ponta do dedo qualquer coisinha na tábua da mesa.

Ele se anima:

– Quando foi da manteiga, a mesma coisa, como se fosse uma lei da polícia comer manteiga. Fica sabendo que eu quando pequeno, na minha cidadezinha, só sabia que comiam manteiga os ricos, uma manteiga de lata, amarela. O que não me admirava, porque era voz geral que eles ainda comiam coisa pior.

Um silêncio.

Mexe nos bolsos; dá uma volta à peça; vai até ao cabide de parece, onde havia colocado o chapéu.

– Me dá o dinheiro – diz, num tom seco, torcendo-se para a mulher, enquanto pega o chapéu.

E voltando ao “seu ponto”, depois de por no bolso os níqueis que a mulher lhe trouxera:

– Aqui não! É a disciplina. É a uniformidade. Nem se deixa lugar para o gosto de cada um. Pois fica sabendo que não se há de fazer aqui cegamento o que os outros querem.

A mulher não diz nada. Voltara a esfregar uma qualquer coisinha na tábua da mesa.

Ele se para bem defronte dela e a interpela:

– Me diz uma coisa: o que é que se perdeu não comendo manteiga, isso, que é mais um pirão de batatas do que manteiga?

Ela não responde.

– E o gelo?… pra que é que precisava de gelo?…

Faz-se uma pausa. Ele continua:

– Gelo… manteiga… Quanta bobice inútil e dispendiosa…

– Tu queres comparar o gelo e a manteiga com o leite?

– Por que não?

– Com o leite?!

Ele desvia a cara de novo.

– Não digo com o leite – acrescenta depois – mas há muito esbanjamento.

– Aponta o esbanjamento.

– Olha, Adelaide (ele se coloca decisivo na frente da mulher), tu queres que eu te diga? Outros na nossa situação já teriam suspendido o leite mesmo.

Ela começa a choramingar:

– Pobre do meu filho…

– O nosso filho não haveria de morrer por tão pouco. Eu não morri, e muita vez só o que tinha pra tomar era água quente com açúcar.

– Mas, Naziazeno… (A mulher ergue-lhe uma cara branca, redonda, de criança grande chorando)… tu não vês que uma criança não pode passar sem leite?…