As “feiticeiras” de cada esquina nossa
Numa dessas madrugadas, em que se acorda no vazio, peguei-me respondendo sem querer a uma enquete de rua na TV. Era uma rua qualquer desse mundo. O repórter perguntava às pessoas se elas acreditavam em “feiticeira”.
Por João Bosco Maia*
Publicado 25/02/2011 18:03
A princípio, o meu sarcasmo instintivo aprumou o travesseiro sob a cabeça e preparou a descair as primeiras palavras. Não obstante, uma espécie de força contrária, levando a coisa a sério, tomou a dianteira e passou a responder, anulando o primeiro ímpeto.
Sim, sim, eu acredito em “feiticeira”. Antes de dizer que elas estão amoitadas sob a copa das mangueiras de parte das esquinas de Belém, dividindo o espaço com o calor, às vezes com o lixo, com os flanelinhas, com o acelerar dos passos para correr da chuva, com o buzinar abominável dos carros, com o contagiar da conversa de uma gente bonita e festiva que se doa naturalmente como tema para o ofício de qualquer artista, digo de onde elas vêm. São procedentes todas elas, mesmo as que aqui chegaram de forma enviesada, à semelhança das “baianas” nascidas fora da Bahia que vendem acarajé por esse país afora, do mais profundo da floresta, lá onde somente os mistérios possuem credencial para circular.
Lá, por exemplo, foi moldada a maniva, a espécie de “vaca da amazônia”, da qual se aproveita tudo. Com a cautela para não transpor ao sabor pejorativo, não chamamos a essas mulheres diretamente de “bruxas” ou “feiticeiras”. Antes, damos-lhe a denominação carinhosa, em função de sua porção mágica, de “tacacazeiras”. Sim, sim, nelas é que eu acredito como mulheres com poderes além das outras, que se põem, curvadas e com sorrisos largos e ardilosos, a mexer os seus dois distintos caldeirões de bruxaria, esses, que por sua vez, seja manhã, tarde ou madrugada, sejamos nós acompanhados do almoço, janta ou lanche, sejamos nós acompanhados da mais plena fome, ainda que a razão de existir do feitiço não seja para matá-la, mas para despetalar um desejo, nos enlaçam as narinas e a boca e nos sacam de forma quase irresponsável do trajeto original.
Mescladas as duas porções, a que elas chamam de “goma” e “tucupi”, num recipiente também exclusivo parido na mata, que atende pelo nome de “cuia” e que é quase um ingrediente, nos é servido então o “tacacá”, completado assim com a adição de mais dois imprescindíveis componentes: o camarão e a “folha que treme”. E aí nos quedamos à mais misteriosa das feitiçarias, ela que é assexuada ao paladar, que não sabemos explicar, leigos ou gastrônomos, se é comida, se é bebida, sopa, chá, se deve ser consumida antes, durante ou depois (depois de quê?), e que não desabona os que acabaram de sair da missa e trazem o conforto da comunhão ao sincretismo do templo da boca, os que vão ao cinema, ao teatro, ou ao campo de futebol, os que saem ou voltam para casa… ou os que, após deixarem órfãs as cuias, aproveitam o tremor do jambu e o atiçar da pimenta e trocam um apaixonado beijo de língua.