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Albertim: Bajado sorri feliz com a queda da Bastilha

Fazer esculturas de barro devia ser a terapia para todas as mulheres de bucho, sobretudo as ansiosas, de primeira gravidez. As fêmeas são assim: trepam, gestam, goram, carregam remorsos por causa do aborto.

Por Marco Albertim*

Têm a gestação aparentemente tranquila, escondem os sustos, os medos, os pesadelos, mesmo as de rotina sossegada como a de Francisca, imaginosa artesã de surubas, decidida mas não invulnerável às assombrações de suas próprias visões, do futuro que cavouca como criança tateando objetos estranhos. Francis descobriu que a melhor terapia para levar a bom termo sua gestação seria voltar ao amanho do massapê, do mesmo modo como amanhara o caralho do parelho para ver se, junto com gametos espertos, surgiriam orixás pequenos para crescerem como fadas obedientes a rogos, caprichos.

– Você nunca foi de sonhos,. Sempre foi impulsiva na vida real, no que toca, faz ou quando fala. Não viva o futuro no presente, viva a vida de agora que o futuro se mostra espontaneamente.

– Estou com medo de perder outra gravidez.

– Medo infundado. Está cheia de saúde, disposta. É só sua cabeça. Entregue-se ao trabalho para não ter ansiedade. A peça com os artesãos. Traga Soler de volta, no barro, liderando os artistas da Sé. Trabalhe o dia todo. Você estava mais divagando do que fazendo! Não pode apressar a parição antes da hora. No dia que a criança nascer, chorando sob a luz da vida, com boca e olhos abertos, seus sonhos serão com gente viva, gente que lhe faz feliz. Quer apostar?

– Terei prazer em perder a aposta.

– Vai perder e ganhar muito mais!

Ganhou um carro de mão, de madeira, cheio de massapê trazido dos fundos da Igreja dos Homens Pretos, por um moleque de sua estima. Ela passou horas amanhando a lama pastosa, olhando com ternura a gravura da cena da revolução francesa, em que uma mulher, com os peitos à mostra, lidera um destacamento de comunardos. Decidida, pôs-se no lugar da revoltosa, moldou-se a si mesma com as rendas do vestido à altura da cintura, os peitos de fora; em lugar do fuzil na mão esquerda, uma pá com a lâmina redonda, de onde respingavam restos de areia molhada; na direita, substituiu o pavilhão francês por outro, espécie de trapo com verso de Cecília Meireles; não reproduziu o cabelo abaulado da parisiense revoltosa, pôs um enorme cabelame com mechas soltas, voantes. O rosto ficou de perfil, intimidando os camaradas artesãos atrás de si para seguirem adiante. À sua direita, trocou o homem de jaquetão azul, colete, chapéu-coco, as duas mãos segurando um fuzil, por Soler; conservou o fio de barba aparado nas extremidades do rosto, como Soler fora, e vestiu-o com a camisa branca de seda, folgada, aberta ao meio, por dentro da calça de cetim creme, igualmente frouxa, tão usada pelo artista. Trocou a arma por um pincel numa mão, um cinzel na outra, as pontas para baixo em atitude sinistra. O moço com duas pistolas, à esquerda do quadro, dir-se-ia um corajoso comunardo, reapareceu com as mesmas vestimentas, inclusive a boina em forma de bandeja na cabeça, mas com o rosto do moleque que trouxera o massapê para Francis, de sua estima e confiança. Tirou-lhe as pistolas, claro, e deu-lhe um par de machadinhas. Atrás, magotes de artesãos, artistas diversos, ceramistas, cinzeladores, escultores, pintores, talhadores, cada um segurando instrumentos de uso na rotina de sua arte. Todos descalços, inclusive a mulher seu autorretrato, com exceção de Soler, em que teve o cuidado de deixar com um par de mocassins apropriado ao trânsito que ele fazia na escada helicoidal de acesso a seu ateliê. Não moldou corpos mortos nem feridos, nenhum traço de sangue, mas muita animosidade em cada rosto. Ambientou tudo na Praça Monsenhor Fabrício, em frente à prefeitura. O busto da estátua ficou ao lado da mulher, melhor dizendo, entre Francis e Soler. Para caracterizar a praça, moldou os bancos e os dois fícus altos, de copa larga, ao lado do sobrado de esquina, no lado oposto da prefeitura. Quem olhasse de frente, tinha a impressão de estar observando a comitiva de artesãos, de uma das janelas da prefeitura. Tudo pintado com cores vivas, iguais às de uso de cada um dos personagens. Nos homens e mulheres da retaguarda, ela abusou de cores, inspirada nos quadros de Bajado. Quando achou que tinha terminado, levou para Bajado dar opinião.

– Esses bonecos estão magros demais. Nos meus desenhos, todo mundo pula de barriga cheia, não cansa e não perde a alegria.

– Não estão dançando frevo, estão com raiva, protestando; estão se defendendo de um ataque da administração, em frente à prefeitura.

– Estou vendo Soler e você. Não acha que está faltando alguém?

-…

– Eu! Antes de morrer eu quero ir a uma passeata.

– Vou levá-lo, Bajado! A espada de Ogum me parta ao meio se você não estiver na linha de frente! Você será o único artista de barriga cheia na passeata, rechonchudo e feliz por estar junto de seu povo na grita dos artesãos.

Ela despediu-se de Bajado, de dona Biu, beijando-os na testa, recusando carapeba de coco no almoço. Voltou uma semana depois com um personagem a mais na marcha. No banco frontal à estátua de Monsenhor Fabrício, acomodou a imagem de Bajado feliz, sorridente, com os poucos dentes que lhe restavam, os óculos de aro escuro, lentes grossas, os escassos cabelos brancos. A expressão dele era a mesma de quando se punha na janela de casa, olhando o calçamento acanhado, sorrindo a quem passasse. A imagem contrastou com os semblantes de cólera dos artesãos incorporando os sitiantes da Bastilha; era o que chamava atenção. Bajado ria feliz com a iminente ocupação do Palácio dos Governadores, por artesãos desengonçados, puxados por uma ceramista insana, por um pintor que trocara Olinda por Tracunhaém e voltara à cidade para ser solidário aos camaradas de confraria.

Bajado riu, riu para se pôr de igual modo à estatueta gêmea.

– Por que não me botou em pé, marchando com os outros?

– Você nunca está com raiva, acha graça até numa marcha de cupins. Se eu lhe moldasse com o mesmo ódio que está no rosto dos outros, diriam que não era você, que eu forcei você a sentir raiva.

– Ele só tem raiva quando eu boto pouco sal na moqueca -, disse dona Biu.

– Foi melhor assim, Bajado. Mesmo no meio de uma multidão furiosa, você não perdeu a graça. Seu bom humor é o consentimento do povo da cidade com a revolta dos artesãos.

– Oxente, Chiquinha… isso vai acontecer!? – interveio dona Biu.

Maújo acabara de entrar.

– Não, dona Biu. Mas pode ser a semente de onde vai nascer a união de ceramistas, pintores, talhadores, toda a raça de artistas de Olinda. É apenas um quadro instigando a criação de um sindicato… Quem sabe? Se isso acontecer, o secretário não vai mais se meter no trabalho de ninguém, nem no de Francis!

Francis atalhou, seu propósito não era apear Bajado da imobilidade em que o pusera sobre o banco em frente à prefeitura; queria promovê-lo a lugar-tenente na queda da Bastilha que sua buliçosa imaginação engendrava; lugar-tenente de quem? Procurou no Romanceiro um figurante ativo que pudesse ser o alter ego do pintor; não achou. Do caeté desconhecido!… Morto no incêndio das igrejas em 1631, perpetrado pelos holandeses! Pobre Bajado… Viera de Maraial em l930 para fazer caricaturas, cartazes de cinema… De repente incorporando um índio devorado pelo fogo, trezentos anos antes de sua vinda a Olinda.

– Bajado, não vou expor a escultura agora. Ninguém deve saber! Deixo-a com você, para observar a intenção de cada boneco. Quando achar que entrou no espírito de cada um, pinte um quadro com os mesmos personagens, incluindo você. Teremos uma escultura de massapê e um quadro a óleo com os mesmos motivos. Ninguém vai esquecer! Nem o secretário.

– O secretário vai engolir um sapo pintado a óleo, uma escultura com duendes vivos!

Maújo viu nos dois trabalhos a chance para consolidar a presença de Francis no Partido e, quiçá, torná-la uma legenda viva do reduzido santuário do Guadalupe. Inda por cima, com o apoio dos pincéis e tintas de Bajado.

– E depois? – perguntou dona Biu, perplexa, biruta.

– Depois comeremos uma moqueca de carapeba com direito a muito azeite, azeite com o bom colesterol! – gritou Francis, antecipando a interrupção do cardápio semimacrobiótico.

Os dois foram ao Guadalupe. Caetano, Gertrude, cujos pressentimentos sobre os agouros percorrendo becos, ruas, ladeiras, eram o maior estorvo a seus planos de sublevação, ouviram a notícia como se soubessem que a revolução estourara do outro lado do continente, e navegava veloz para aportar em Olinda.

– Bajado, conosco! – Gertrude quis ouvir outra vez, muitas vezes.

– Nosso aliado! – Caetano tinha duas chispas nos olhos de mocó.

– Não foi recrutado, mas juntou-se a nós para defender a livre criação dos artesãos. – Maújo foi o mais comedido.

– Foi por minha causa, por minha causa e por causa de Soler de quem era muito amigo. Bajado não sabe dizer não, tem um coração de ouro derretido para dar forma a qualquer sentimento bom…

Francis interrompeu bruscamente o que disse; baixou a cabeça não para orar ou para receber Ogum, baixou para se pôr em guarda contra uma moléstia agourenta.

– O que tem você ? – perguntou o parelho.

– Não tenho medo do que pode acontecer comigo, tenho medo do que pode acontecer a Bajado. Ele não é do Partido.

– Mas tem no coração os mesmos sentimentos de nossas idéias, corre em sua veia um sangue generoso, de felicidade múltipla. Bajado é o bom cidadão refletido em sua obra. Ele não sabe, mas é o antípoda do secretário. É incapaz de odiar o secretário, mas não evitaria a tristeza se o visse falando na frente de Francis. Bajado tem tudo para ser um comunista. Pensemos nele aqui sentado conosco, sem dizer uma palavra, concordando com todos nós só com seu sorriso bonachão. São Bajado! Será o nosso ícone, nosso patrono!

– Bravo, Maújo… Ele sabe disso? – Gertrude, a disciplinada Gertrude quis pôr ordem à reunião que não foi convocada por ela, por isso mesmo devia estar sob seu controle.

– Claro que não. Mas vai pintar um quadro celebrando a afinidade que tem com todos nós, mais com Francis e por extensão com todos nós. Cultivemos Bajado, adotemos sua ideologia sem abdicar da nossa.
 
– O despojamento de Bajado! – gritou Francis. – Não há contradição entre o que pensamos e a simplicidade de Bajado. – Caetano, sentencioso.

Francis insistiu, quis que todos ponderassem as possibilidades do que poderia acontecer ao amigo. Gertrude e Caetano esperaram pela resposta de Maújo.

– Bajado não é do Partido, é amigo de quatro membros do Partido sem saber que são do Partido. Não podem lhe prender por isso, mesmo porque, por aqui ninguém suspeita da existência do Partido. Se descobrirem a base do Guadalupe, a base será presa, não Bajado. Ninguém ousaria puxar um fio de cabelo dele, sem correr o risco de suscitar a indignação da comunidade. Nem mesmo os homens da Veraneio.

– Os homens da Veraneio são tão estúpidos… – de novo Francis.

– Por isso mesmo. São tão estúpidos que não teriam a coragem de tocar em Bajado. Do mesmo modo como não tocam em dom Hélder. –
 
A cegueira fascista é capaz de horrores em defesa da ordem. Já metralharam o Palácio do Jiriquiti. – Caetano, os olhos de mocó sobre Maújo.

– A dimensão de dom Hélder é outra comparada à de Bajado. Não lhe tocam porque têm medo do prestígio do padre. Bajado não goza da mesma fama, mas sua inocência, aos olhos da população, é a mesma de São José dos Pescadores carregado no andor. Não. Metralhar a casa de Bajado seria o mesmo que bombardear uma capela.

Francis assustou-se, assustou-se mais.

– Nossa, gente. Vocês já estão falando em metralhadora! Bajado não é Fidel Castro, não está escondendo Guevara em sua casa.

– Viemos aqui para dar a boa nova, para celebrar os bons fluidos entre nós e Bajado. Ele vai pintar o que poderá ser a queda da pequena Bastilha à beira do Atlântico. Ele e Francis vão se antecipar à tragédia anunciada.

O quadro

Bajado trabalhou com lentidão, no ritmo que o limitado alcance de seus olhos permitiu. Começou desenhando a praça, as duas árvores ao lado do sobrado, atrás. Estava tão acostumado a desenhar bandeirolas de carnaval, estandartes, que entre uma árvore e outra pôs um poste com bandeiras amarradas, como pavilhões com dizeres, sentenças.

Francis assistiu aos esboços do quadro, pensando que dali sairia um bloco de carnaval, o mesmo em que o pintor pisara o dedo mindinho de dona Biu para deixá-la de cama enquanto ele brincasse os quatro dias. Quis falar, interromper, mas…

Bajado pintou os figurantes da marcha, a partir dos que vinham na retaguarda. Homens e mulheres sem fuzis nem sabres, barrigudos, gordos, pernas finas, todos com vassouras, pequenas pás, pincéis, martelos, formões, verrumas, puas; a maioria com avental branco, sujo, com manchas, borrões; descalços uns, outros com chinelos amarrados aos calcanhares. As calças, todas azuis, folgadas na cintura feito velhos culotes. Ninguém nu da cintura para cima, mas com camisas ou camisetas abertas a partir da cintura. Nas mulheres, desabotoou os vestidos, com dobras deixando ver indícios de corpetes, de sutiãs; eram vestidos de brocado, com relevo em bordados azuis, combinando com as calças dos homens. Algumas usando toucas brancas, com mechas de cabelos escapando sob o laço nas nucas; outras despenteadas, rostos para cima, de lado, para baixo. Não estavam dançando frevo, como Francis desconfiara durante o esboço, mas pulavam, corriam tresloucados, um misto de pulos com marcha desenfreada. Bajado não pintou o Cariri fazendo evoluções no Largo do Guadalupe, como de costume, pintou uma multidão em marcha, marcha semelhante à de frevo de bloco, como o Flor da Lira no Largo do Bonfim. Em cada rosto, pôs traços de alegria de mistura com birra, obstinação nativa.

Francis, que assistiu como um flanelinha atrás do veículo com o motorista na direção, teve sustos, apreensão; do meio para o fim, soltou pequenos risos, desmanchou-se em gargalhadas, tornou-se coautora da paródia.

Na parte inferior da tela, os líderes do bloco em passeata. Soler, cuja morte deixara Bajado conformado com a sua, iminente, surgiu com a vestimenta de costume. Conformou-o com a magreza que o acompanhou por toda vida, mas aumentou sua barriga, deixando-a escapar entre a blusa aberta da cintura ao pescoço; não fosse a boina descida para um lado sobre a cabeça, com uma borla em cima, no centro e tão comum a pintores, dir-se-ia um pau-d’água frequentador de bodegas, de repente solidário à revolta dos artesãos. Não pôs pincéis ou cinzéis nas mãos, mas dois bastões para serem confundidos com batutas de maestros regentes. Conservou a fina barba e eriçou os pelos; no rosto deixou a marca do orgulho sereno, os olhos fitos no alvo, concentrados nos propósitos.
 
Francis, a de carne e osso, viu sua gravidez surgir sem medos na vanguarda dos revoltosos; os peitos, como duas mangas, jazendo inteiriços sobre a barriga exposta . A prenhez nua gritando liberdade para a vida. Bajado, como Soler, tinha decorado cada traço do rosto da amiga, até as sardas sob os olhos, salientando as maçãs do rosto carmim.

Ela riu alisando a própria barriga, riu tão feliz como se estivesse roçando a cabeça do feto. –
Terá Francisquinha tanto leite assim? – perguntou dona Biu. 

 
*Marco Albertim é escritor e jornalista. Ganhador do Premio Nacional Osman Lins de Contos, da Fundação de Cultura do Recife.

Extraído do romance de Marco Albertim, Conspiração no Guadalupe