Marcia Romero Marçal: o testemunho literário de Semprun
O escritor bilíngue Jorge Semprun vivenciou e testemunhou, mediante a arte literária, as grandes catástrofes europeias do século 20: a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, os campos de concentração nazistas, os regimes franquista e stalinista.
Por Marcia Romero Marçal *
Publicado 10/06/2011 12:20
Semprun nasceu em Madri, em 1923, em uma família burguesa e republicana que cultivava o gosto pelas artes em geral e pela poesia em particular. Com a proximidade da vitória do ditador Franco e o falecimento da mãe, a família exila-se na França. Em Paris, em 1941, Semprun abandona os estudos de filosofia da Sorbonne e ingressa na Resistência francesa contra as forças nazifascistas. Em janeiro de 1943, é capturado e torturado pela Gestapo e deportado ao campo de concentração de Buchenwald. No campo, participa do aparelho comunista clandestino e após sua libertação, ocorrida em abril de 1945, o sobrevivente torna-se membro e dirigente do Partido Comunista Espanhol. Em 1964, é expulso do partido por divergência política e críticas contra os expurgos e crimes do regime totalitário soviético. Somente após dezoito anos de silêncio e adiamento, este intelectual engajado consegue enfrentar a memória traumática de Buchenwald através da escrita literária.
A crítica literária normalmente apresenta dificuldades para classificar a obra de Jorge Semprun, mesmo aquela referente ao chamado ciclo de Buchenwald — “El largo viaje” (1963), “Aquel domingo” (1980), “La escritura o la vida” (1994), “Viviré con su nombre, morirá con el mío” (2001). Em nossa opinião, as divergências interpretativas da crítica apontam para a presença de um trabalho de composição moderno do escritor que questiona os limites e as fronteiras entre os gêneros e entre o plano da história e o da ficção. Se esses romances trazem, por um lado, elementos autobiográficos, testemunhais e memorialísticos, por outro, inscrevem-se em um modo de representação próprio da narrativa de ficção contemporânea. Ao articularem procedimentos como a fragmentação textual e discursiva, o jogo de planos temporais distintos, a pluralidade de perspectivas, a simbolização do espaço referencial, o recurso à intertextualidade e à metalinguagem, a justaposição e o desdobramento das identidades de personagens e narradores, a pluridimensionalidade do enredo, o entrecruzamento das ações, a incorporação de técnicas cinematográficas, entre outros, tais romances testemunhais geram uma tensão dialética entre o discurso referencial da narrativa não literária e o discurso figurado e ambíguo da ficção. Semprun reivindica uma versão dos fatos históricos, entre as práticas discursivas legitimadas para produzir a verdade sobre a realidade histórico-social e da memória coletiva, através do discurso literário e das formas da prosa de ficção.
Em “Aquel domingo”, romance cujo tênue fio narrativo refere-se a um domingo de dezembro de 1944 em Buchenwald, o narrador, ao comentar os relatos prolixos e desordenados de companheiros de campo como Barizon, afirma que contar a vida nos campos não é fácil, que ele mesmo “se arma un lío” e que já não sabe agora mesmo o que está narrando: um domingo em Buchenwald, evocações de Barizon ou as lembranças de um personagem de um conto de Courtade, realidade ou ficção? No mesmo trecho, faz uma digressão sobre como as massas fazem a história, mas como são as minorias dominantes que a contam. Em outro momento, discorre sobre os processos sumários do regime totalitário estalinista e diz que o processo de Praga é uma obra de ficção em que o que conta não é a verdade e sim a verossimilhança. O título de “Viviré con su nombre, morirá con el mío” deve-se a um episódio em Buchenwald em que a cúpula do aparelho clandestino dos prisioneiros políticos prepara uma operação de troca de nome entre Semprun, na ocasião Gérard, seu nome de guerra na Resistência francesa, e um prisioneiro francês moribundo, François. A suspeita era de que Semprun se encontrava sob a mira da Gestapo. Semprun ganharia um novo nome fictício que lhe possibilitaria salvar-se de uma morte certa e lhe proporcionaria, quase meio século depois, denunciar a morte de François e de outros companheiros através da construção ficcional. Em uma passagem desse mesmo romance, o narrador nos informa que a ideia de criar “al Chico de Semur” em “El largo viaje” originava-se de uma ideia de François, que pretendia colocar Semprun em seu projeto de testemunho sobre o campo como personagem fictício. “El chico de Semur”, que se remete então a François, converte-se no personagem com o qual dialoga Gérard durante a viagem de trem a Buchenwald, contada em “El largo viaje”, para fazer-lhe companhia, para tornar possível essa primeira etapa do inferno que enfrentariam os deportados que sobrevivessem à viagem.
Em “La escritura o la vida”, o tema da relação entre realidade e ficção reaparece mediante inúmeros exemplos e facetas. Juan Larrea, protagonista de “La montaña blanca” (1986) e um dos pseudônimos de Semprun na militância clandestina na Espanha, suicida-se, segundo o narrador de Semprun de “La escritura o la vida”, no seu lugar, para que pudesse manter-se com vida: “El círculo de las vidas y de las muertes, verdaderas o supuestas, parecía cerrarse de este modo” (Semprun, 1998, p. 264). O próprio título ambíguo do romance refere-se não só ao dilema aporético de lembrar ou esquecer, escrever ou silenciar os meses traumáticos de Buchenwald. A forma espiralada e fragmentária do romance, baseada na matriz do jazz, em suas improvisações sobre o mesmo tema, representa um modo de reportar-se à lembrança repetitiva e obsessiva da morte do campo de concentração, em relação dialética com a vida, de fora e depois do campo, que resulta em um tormento dilacerante para o sobrevivente que o leva, em dado momento, a silenciar essa morte, através do esquecimento e da renúncia à escrita, para que a morte não silencie sua vida.
A dialética entre ficção e história não constitui somente um tema recorrente na obra de Semprun, pois a concepção que o escritor tem da catástrofe e de sua representação determina as estruturas dos romances cuja matéria se baseia em suas experiências de cunho pessoal e histórico. A ideia de que o inimaginável e o inverossímil do Mal absoluto do campo precisa de artifício, da arte, para possibilitar uma aproximação à sua verdade inacessível objetiva-se, por exemplo, na estrutura dialética de “La escritura o la vida”. O romance narra a história de um eu que viveu a catástrofe de Buchenwald, a onipresença da morte, e que de certa maneira se transformou em um sobrevivente que carrega em si a possibilidade iminente dessa catástrofe subjetivada em sua singularidade individual, a ameaça permanente do suicídio, e que procura lutar contra a mesma através de sua assunção negativa na atividade literária. O romance representa como o personagem-narrador, no processo de reconstrução de sua identidade oriunda da transformação sofrida em Buchenwald, contraditoriamente passou por uma fase de negação da identidade de sobrevivente e de escritor e como esse período de negação engendrou novas condições psicológicas que permitiram que essas duas facetas de sua identidade se reconciliassem, possibilitando a elaboração escrita dessa transformação que, novamente, põe em risco permanente sua sobrevivência de escritor testemunha da catástrofe.
A história dessa testemunha nesse romance problematiza a falsa escolha entre sua identidade de sobrevivente e a de testemunha escritor, já que a relação indissociável e dialética entre arte e verdade, literatura e história, ficção e realidade, significava, contraditoriamente, assumir a negatividade extrema dessa condição de sobrevivente testemunha escritor da catástrofe. Se abraçar a vivência da morte envolve para Semprun uma alienação terrível, a do perigo de dissolução da individualidade e da vida, a auto-realização através da escrita da memória dessa experiência atroz implica um esforço permanente de superação, de autoafirmação da vida e da identidade mediante a assunção da autonegação, a assunção dessa alienação mortífera. É esse o sentido dialético negativo do título “La escritura o la vida”, que a princípio se intitularia “La escritura o la muerte”, expressão que comprova a negatividade dialética que nosso argumento defende.
O testemunho literário de Semprun plasma a contradição presente nessa modalidade literária entre um discurso que se pretende objetivo e científico, como o do jornalismo, o da historiografia, pertencentes às instâncias produtoras de um saber socialmente legitimado como verdade, e um discurso subjetivo, pessoal, ligado às falhas da memória individual, que, no entanto, não descarta seu compromisso com a realidade histórica objetiva. O testemunho literário elabora-se nesta zona fronteiriça: não é pura ficção, nem pura história. Seu processo de criação literária passa pelo ato discursivo da testemunha-escritor. A condição, o projeto de escrita e a consciência desse sujeito poderão elucidar a relação problemática entre o real e o fictício nessa forma literária.
O sujeito da escrita testemunhal enfrenta uma situação sociocultural que distingue os discursos estabelecidos socialmente para produzir um saber legítimo sobre a verdade histórica das formas discursivas que estão autorizadas a tratar do fictício. Daí as normas e convenções tradicionais literárias terem determinado que a invenção e a imaginação sobre o real são objeto da prosa de ficção literária, enquanto que o discurso historiográfico e científico se ocupa da realidade histórica objetiva. A dissociação excludente entre essas duas dimensões produtoras de saber e verdades torna-se objeto problemático do projeto de escrita da testemunha-escritor. Este, mais ou menos consciente dessas determinações históricas de caráter ideológico sobre a produção e a disputa pelo espaço de enunciação da verdade, na tentativa de criar um espaço discursivo onde caiba sua versão subjetiva da verdade histórica objetiva busca derrubar as muralhas que separam as duas instâncias discursivas.
O espaço fronteiriço problemático do testemunho literário constitui uma zona de conflito em que as verdades objetiva e subjetiva se enfrentam na consciência da testemunha-escritor e cuja contradição ele problematiza para instaurar o espaço de enunciação de sua verdade. A testemunha-escritor, por um lado, não abdica pertencer a uma realidade histórica, ter vivido a violência sem limites do Estado moderno, ter um compromisso ético com os companheiros que a sofreram com ela, enfim, denunciar as atrocidades às quais sobreviveu. Por outro lado, sabe que a memória de sua vivência é falível, sua percepção da realidade vivida corre riscos de deformação, seu juízo se confunde com os ressentimentos derivados da humilhação infligida, sua razão e lucidez podem estar contaminadas de perplexidade, hiatos e paralisação. Sua verdade é uma verdade subjetiva e em crise que, não obstante, defende o estatuto de verdade histórica objetiva em uma instância que, por convenção e tradição, não lhe é própria. A testemunha-escritor busca penetrar com sua memória individual na memória coletiva, pretende transformar sua terrível vivência em experiência, seu sofrimento em compreensão de si e da realidade em que esteve imersa, fala em nome dos que não podem falar, quer substituir o esquecimento institucional e social pelas recordações pessoais. Seu discurso reivindica a força de uma autoridade diferenciada: vem da degradação humana perpetrada pelas ditaduras e totalitarismos de nossa época, traz consigo as feridas incuráveis dessa história, as obsessões e os traumas insuperáveis na memória e no corpo, a desilusão e a perda de confiança no mundo, a experiência de não ter sido escutado pela sociedade quando confinado e o pesadelo de não ter um ouvinte ao retornar ao mundo, a sensação de vertigem das sucessivas quedas no submundo de si e do humano, o conhecimento da ausência completa de liberdade e dignidade, da opressão sem limites. Sua linguagem viu-se abalada, afásica, emudecida pela língua do inimigo, pela imposição do silêncio e o esgotamento das forças, pelo declínio das faculdades mentais. Sua consciência foi estreitada e sua identidade desintegrada e anulada. O relato para ela significa uma saída dessa condição, a retomada de poder da palavra, o contato com a dura memória da ofensa, a ampliação da consciência do vivido, a recuperação do pertencimento à espécie humana. A testemunha-escritor é o objeto de uma realidade histórica objetiva que requer do mundo ser sujeito da mesma, falar sobre e em nome dela, mediante um saber, contudo, subjetivo. Por mais distanciada, reflexiva, crítica e objetiva que se pretenda a construção narrativa de seu saber e verdade, eles não podem negar sua natureza subjetiva, que é a substância de sua matéria.
As narrativas testemunhais configuram um processo de construção de sentido para uma realidade histórica objetiva, vivenciada subjetivamente, muitas vezes desprovida de sentido para o sujeito desse processo. A verdade construída a partir da experiência objetivada em testemunho literário pertence a duas dimensões, que tinham delimitado seus territórios de enunciação e produção de duas verdades distintas: uma real histórica e objetiva, outra imaginária subjetiva caracterizada pelo tratamento formal da linguagem.
Muitos relatos testemunhais apresentam-se sem pretensões de assumir formas narrativas ficcionais e literárias. Primo Levi é um exemplo. A crítica tem que lidar com uma nova forma que invade os moldes da ficção literária, reclamando, não obstante, uma verdade não fantasiosa. A consciência que a testemunha-escritor tem dessa invasão e o seu domínio e habilidade sobre a linguagem e as formas narrativas literárias constituem um fator que determina a forma que sua narrativa assume. Em todo caso, a presença de sua escrita incomoda e mina as convenções literárias, representando assim um problema teórico para a crítica e para a lógica formal que fixa e separa as normas correspondentes aos tipos discursivos. A zona de confronto em que se instala sua verdade dialética subjetiva e objetiva manifesta a fenda do saber normativo que delineia seus limites. A escrita testemunhal literária é um discurso intrusivo sobre a verdade histórica objetiva que se apropria da mesma e irrompe no espaço discursivo, por construção ideológica fictício, corroendo os sedimentos de sua normatização crítica e teórica.
Em “La escritura o la vida”, a relação entre arte e verdade histórica atravessa o texto não somente como um tema de reflexão do narrador, mas sobretudo como um elemento problemático na estrutura da obra. Semprun evidencia ter consciência da quebra ransgressora que o discurso de não-ficção exerce sobre o contrato de ilusão do discurso ficcional. O autor declara a intenção de seu projeto: criar um romance com a matéria da experiência vivida em Buchenwald. O motivo: o artifício literário tem o poder de aproximar através da imaginação formal o leitor da essência inalcançável do Mal radical. Problemas: tornar uma realidade inverossímil verossímil, rememorar e reelaborar todo aquele Mal, atribuir contínua e renovadamente sentido a uma sobrevivência cujo processo de construção de sentido pode destruir sua busca.
Referências
Amar Sanchez, Ana María. La ficción del testimonio. Revista Iberoamericana, v. 56, n.151, p. 447-461, abr./ jun. 1990.
Ferrán, Ofelia. “El largo viaje” del exilio: Jorge Semprunn. In: Aznar Soler, Manuel (Ed.). El exilio literario español de 1939. Barcelona: Grup d'Estudis de l'Exili Literari, Departament de Filologia Espanyola, Universitat Autònoma de Barcelona (GEXEL), 1998. v. 2. p. 107-115.
Semprun, Jorge. El largo viaje. Barcelona: Tusquets, 2004.
______. Aquel domingo. Barcelona: Tusquets, 2004.
______. La escritura o la vida. Barcelona: Tusquets, 1998.
______. Viviré con su nombre, morirá con el mío. Barcelona: Tusquets, 2002.
* Marcia Romero Marçal, doutora em letras pela Universidade de São Paulo, é professora da Fatec, da FMU e do Instituto Cervantes de São Paulo. Seu texto foi obtido através do sítio http://www.letras.ufmg.br/espanhol/Anais/anais_paginas_%201502-2009/O%20testemunho.pdf