Heloisa Villela: Gastos da ONU no Haiti pagariam mais de 100 hospitais
Quem precisa recontar a história da revolução sangrenta que derrotou 18 generais franceses (Napoleão e os espanhóis nada puderam contra a garra dessa gente) e dizimou um terço da população que com muito sangue, suor e convicção, transformou o Haiti na primeira república negra independente?
Por Heloisa Villela*, no Vi o Mundo
Publicado 07/02/2012 11:06
Quem precisa mencionar os US$ 20 bilhões (valores corrigidos para hoje) de multa impostos pela França ao Haiti para admitir que perdeu a guerra e a colônia, multa que os Estados Unidos ajudaram a forçar o Haiti a assumir caso contrário não levantariam o embargo à ilha? (Como eles gostam de um embargo!).
Qualquer pessoa interessada em compreender um mínimo do que é a miséria em que o Haiti vive tem obrigação de voltar os olhos para o passado, o mais recente e os 200 anos que nos antecedem. Estive lá mais uma vez. Foi a terceira, nos últimos dois anos e dois meses. Vi muita diferença em relação ao que presenciei logo após o terremoto de janeiro de 2010. E vi, também, a continuação dos problemas de sempre, agravados, agora, pela falta de moradia na capital, Porto Príncipe.
Mais de oitocentos acampamentos de desabrigados ainda estão espalhados por toda parte. O governo lançou um programa que contemplará apenas seis. Quem mora nesses acampamentos (claro, os mais visíveis, nos pontos mais importantes ou onde mora aquela minoria rica) procura um lugar para morar. Quando encontra, o governo paga o primeiro ano de aluguel. Depois, é por conta do cidadão. Soa bem. O problema é que ninguém tem emprego. Depois de um ano, o que acontece com essa gente?
Então, vamos aos custos…
Visitei a casa de uma família que deixou a barraca e foi morar numa favela. A casa é, na verdade, um cômodo. Sem cozinha nem banheiro. A comunidade tem um banheiro coletivo. Bom, esse quarto custa US$ 500 dólares por ano. Seguindo estimativas oficiais e das centenas de organizações não governamentais que se aboletaram no país, existem cerca de quinhentos mil desabrigados acampados em diferentes pontos da cidade. Multiplicando um pelo outro, o governo precisaria de US$ 250 milhões para pagar o primeiro ano de aluguel de todos eles (supondo que todos encontrassem um canto).
Agora, vamos lá: qual é o orçamento anual das operações de ocupação de paz da ONU (opa, errei… Operações de Paz) no Haiti? US$ 800 milhões de dólares. Dinheiro suficiente para pagar três anos de aluguel para essa gente toda. Esse talvez seja um cálculo sem sentido. Nem todos os aluguéis custarão o mesmo preço e nem todo mundo vai arranjar um quarto ou um apartamento. Na verdade, é preciso construir novas estruturas. De preferência, mais resistentes a abalos.
Vamos, então, fazer outro cálculo. Durante a minha estadia, visitei o hospital-escola que a organização Partners in Health está construindo em Mirebalais, cidade que fica a pouco mais de cinquenta quilômetros ao norte de Porto Príncipe. Além de treinar médicos e enfermeiros haitianos para atender, de graça, a população, o hospital será autossuficiente em energia (vai usar energia solar), terá seis salas de operação, clínica da mulher, maternidade, ala para os homens, alguns exames sofisticados, mas nem todos, e um pé direito bem alto para garantir refresco porque o calor haitiano é brutal. Mas nada de ar condicionado ou elevador para o prédio de dois andares. Nada de instalar aparelhos que, quando quebrarem, ninguém terá como consertar por falta de peças ou de conhecimento mesmo. A filosofia é atendimento de primeira, com simplicidade.
O prédio da entrada do hospital já está pronto. Um muro baixo, todo branco, com uma cerca de esculturas vazadas de metal, feitas por artistas haitianos. Tudo preto e branco. Simples e bonito. Logo na entrada, à esquerda da recepção, fica a clínica da mulher. Quem explica é David Walton, médico, gerente da obra e diretor da Partners in Health:
– Primeiro, não queremos que as grávidas tenham que se deslocar muito dentro do hospital. Mas também achamos importante dar papel de destaque para a mulher haitiana. Ela é o centro vital da família. É quem cuida de todos e muitas vezes, é também quem garante o sustento. Se ela adoece, a família inteira sofre.
Bom, eu poderia contar outros tantos detalhes do projeto. Falar da obra tocada exclusivamente por operários, carpinteiros e eletricistas haitianos, orientados em técnicas avançadas de construção, por sindicalistas estadunidenses que vão ao Haiti, sem cobrar nada. Ou da enfermaria com camas que parecem novinhas em folha mas foram doadas ao hospital. E dos bancos de igreja, todos de madeira, que serão usados na recepção, e íam para o lixo, em Boston, mas foram aproveitados a tempo e enviados a Mirebalais.
Claro, poderia falar de tudo isso e muito mais. Porém, o que mais chamou minha atenção foram os custos. Para manter o hospital, pagar os profissionais, remédios, materiais, tudo enfim, a organização (que sobrevive de doações de milionários e empresas e trabalha no Haiti há mais de 20 anos) vai gastar, por ano, entre US$ 6 e US$ 8 milhões. Ou seja, o orçamento anual da ONU, de US$ 800 milhões anuais, poderia manter funcionando mais de cem hospitais, de altíssima qualidade, no país.
Eu fico imaginando, também, o que seria possível fazer, com todo esse dinheiro investido nas operações da ONU, durante oito anos consecutivos, por dois serviços básicos que a população do Haiti não tem. Como disse Paul Christian Namphy, engenheiro da Dinepa, Diretoria Nacional de Água Potável e Saneamento do Haiti: ligar a torneira e ter água é um luxo que poucos no país desfrutam. E o saneamento básico… Agora, a Dinepa está inaugurando o primeiro centro de tratamento de esgoto da história do Haiti. O primeiro! Em 2012. E não é através de encanamentos que o esgoto vai parar no centro de tratamento. Ele é recolhido em caminhões. Falta tanto…
E já que o assunto é dinheiro, vamos ao levantamento da Associated Press: quem recebeu a maior parte do dinheiro alocado pelo governo estadunidense, para socorrer o Haiti depois do terremoto, foi o governo estadunidense. Como? Na ciranda da ajuda aos necessitados, o dinheiro sai dos Estados Unidos direto para os Estados Unidos. Ou seja, os estadunidenses alocaram US$ 379 milhões em ajuda humanitária e enviaram 5.000 soldados ao país. Trinta e três centavos de cada dólar do montante foram usados para reembolsar os Estados Unidos pelo envio das tropas. Quarenta e três centavos de cada dólar foram entregues a organizações particulares ou não governamentais. Quase nada direto para os haitianos ou para o governo do Haiti.
Outras contas que o governo estadunidense pagou para o governo estadunidense:
– US$ 655 milhões para o Departamento de Defesa
– US$ 220 milhões para o Departamento de Saúde e Serviços Humanos
– US$ 350 milhões para a USAID
– US$ 150 milhões para o Departamento de Agricultura enviar comida em caráter de emergência
– US$ 15 milhões para o Departamento de Segurança Interna para cobrir taxas de imigração
*Heloisa Villela é jornalista