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Lúcio Flávio Pinto: o grileiro pode ganhar graças ao Gulag judicial

Como já é do conhecimento público, em 1999 escrevi uma matéria neste Jornal Pessoal denunciando a grilagem de terras praticada pelo empresário Cecílio do Rego Almeida, dono da Construtora C. R. Almeida, uma das maiores empreiteiras do país, com sede em Curitiba, no Paraná.

Por Lúcio Flávio Pinto

Embora nascido em Óbidos, no Pará, Cecílio se estabeleceu há mais de 40 no Paraná. Fez fortuna com o uso de métodos truculentos, sempre com um pé nos negócios e outro na política. Nada era obstáculo para a sua vontade. Foi capa da revista Veja quando armou um flagrante contra o então governador do Paraná, Haroldo Leon Peres, gravando uma conversa sobre transações ilícitas na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Peres foi posto para fora do cargo pelo regime militar, que lá o colocara.

Com a mesma ausência de qualquer inibição, o truculento empresário recorreu a vários ardis para se apropriar de quase cinco milhões de hectares de terras no rico vale do rio Xingu, no Pará. É onde ainda subsiste a maior floresta nativa do Estado, na margem direita do rio Amazonas, além de minérios e outros recursos naturais. Onde também está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte, para ser a maior do país e a terceira do mundo. Terras cobiçadas, inclusive no exterior, por onde Cecílio apregoou um projeto para proteger a natureza e receber dinheiro do seqüestro de carbono, que a floresta propicia. Tudo marketing.

Os 5 milhões de hectares já constituem território bastante para abrigar um país, mas a ambição podia levar o empresário a se apossar de área ainda maior, de 7 milhões de hectares, o equivalente a 8% de todo o Pará, o segundo maior Estado da federação brasileira. Se fosse um Estado, a "Ceciliolândia” seria o 21º maior Estado do Brasil. Duas vezes maior do que a Bélgica.

Em 1996, na condição de cidadão, atendi a um chamado do advogado Carlos Lamarão Corrêa, diretor do Departamento Jurídico do Iterpa (Instituto de Terras do Pará), e o ajudei a preparar uma ação de anulação e cancelamento dos registros das terras usurpadas por C. R. Almeida.

Para perpetrar esse golpe ele contou com a cumplicidade da titular do cartório de registro de imóveis de Altamira e com a ajuda de advogados inescrupulosos. A ação foi recebida pelo juiz da comarca, Torquato de Alencar, e feita a averbação da advertência de que aquelas terras não podiam ser comercializadas, por estarem sub-judice, passíveis de nulidade.

Os herdeiros do grileiro podem continuar na posse e no usufruto da pilhagem, apesar da decisão, porque a grilagem recebeu a acolhida dos desembargadores João Alberto Paiva e Maria do Céu Cabral Duarte, do Tribunal de Justiça do Estado. Sem qualquer base documental ou factual, eles declararam que as terras eram "inegavelmente” de propriedade particular. Deve-se salientar que essas foram as únicas decisões favoráveis ao grileiro nas instâncias oficiais. Graças a elas, o grileiro se livrou da sólída decisão do então juiz de Altamira, filho do conceituado advogado Júlio de Alencar, hoje na comarca do Mosqueiro.

Com o acúmulo de informações sobre o estelionato fundiário, todos os órgãos públicos ligados à questão foram se manifestando e tomando iniciativas para evitar que o golpe se consumasse. O Ministério do Meio Ambiente abriu o Livro Branco da Grilagem com o caso de Cecílio e o do fantasma Carlos Medeiros, que, nas vestes de advogados, mas sem nunca se materializar, fez das suas pelos corredores do fórum de Belém. Juntas, as duas grilagens avançam sobre 20 milhões de hectares de terras, quase 20% do Pará.

A Polícia Federal também comprovou a fraude e só não prendeu o empresário porque ele já tinha mais de 70 anos. O próprio poder judiciário estadual, que perdeu a jurisdição sobre o caso, deslocado para a competência da justiça federal, e, a partir daí, impulsionado pelo Ministério Público Federal, que deu rumo contrário ao pretendido pelo grileiro, interveio no cartório Moreira, de Altamira. Demitiu todos os serventuários que ali trabalhavam, inclusive a escrivã titular, Eugênia de Freitas, por justa causa. Era o reconhecimento definitivo da grilagem, uma armação de papeis gestada no meio dos pesados livros cartoriais.

Carlos Lamarão, um repórter da revista Veja (que chegou a ser mantido em cárcere privado pelo empresário e ameaçado fisicamente) e o vereador Eduardo Modesto, de Altamira, processados na comarca de São Paulo por Cecílio Almeida, foram todos absolvidos pela justiça paulistana. O juiz observou que essas pessoas, ao invés de serem punidas, mereciam era homenagens por estarem defendendo o patrimônio público, ameaçado de passar ilicitamente para as mãos de um particular.

O culpado

De toda história, eu acabei sendo o único punido. A ação do empreiteiro contra mim, como as demais, foi proposta no foro de São Paulo. Seus advogados sabiam muito bem que a sede da ação era Belém, onde o Jornal Pessoal circula (na petição inicial chegaram a declarar que este jornalzinho circulava nas bancas de São Paulo). Eles queriam deslocar a causa por saberem das minhas dificuldades para manter um representante na capital paulista.

A juíza que recebeu o processo, a meu pedido, desaforou a ação para Belém, como tinha que ser. Hoje, revendo o que passei nestes 11 anos de jurisdição da justiça do Pará, tenho que lamentar a mala suerte de não ter ficado mesmo em São Paulo, com todas as dificuldades que tivesse para acompanhar a tramitação do feito. Assim como obtive o desaforamento sem precisar comparecer ao fórum paulistano, certamente teria sido absolvido, como os demais, diante do absurdo da pretensão do demandante.

A justiça de São Paulo foi muito mais atenta à defesa da verdade e da integridade de um bem público, ameaçada por um autêntico "pirata fundiário”, do que a justiça do Pará, que tem jurisdição sobre o território abocanhado pelo grileiro. A justiça é formada por homens públicos, que deviam zelar pela integridade do patrimônio do Estado contra os aventureiros inescrupulosos e vorazes.

C. R. Almeida considerou ofensiva à sua dignidade moral a expressão "pirata fundiário” e as duas instâncias da justiça paraense, a isolada e a colegiada, a sacramentaram como causa de ilícito, passível de indenização, conforme pediu o controverso empreiteiro. Qual a lesividade de tal expressão quando aplicada a quem se apossa de terra pública?

Mesmo tendo provado tudo que afirmei na primeira matéria e nas que a seguiram, diante da gravidade do tema, fui condenado, graças a outro ardil, montado para que um juiz substituto, em interinidade de fim de semana, pela ausência circunstancial da titular da 1ª vara cível de Belém, sem as condições processuais para sentenciar uma ação de 400 páginas, me condenasse a pagar ao grileiro indenização de 8 mil reais (em valores de então, a serem dramaticamente majorados até a execução da sentença), por ofensa moral.

A sentença foi confirmada pelo tribunal, embora a ação tenha sido abandonada desde que Cecílio do Rego Almeida morreu, em maio de 2008; mesmo que seus sucessores ou herdeiros não se tenham habilitado; mesmo que o advogado, que continuou a atuar nos autos, não dispusesse de um novo contrato para legalizar sua função, que se tornou clandestina; mesmo que o tribunal, várias vezes alertado por mim sobre a deserção, tenha ignorado minhas petições; mesmo que, obrigado a extinguir a minha punibilidade, arquivando o processo, haja finalmente aberto prazo para a habilitação da parte ativa, que ganhou novo prazo, depois de perder o primeiro; mesmo que a relatora, confrontada com a argüição da sua suspeição, que suscitei, diante de sua gravosa parcialidade, tenha simplesmente dado um "embargo de gaveta” ao pedido, que sumiu nos escaninhos do fantasmagórico Palácio da Justiça (que já teve a insígnia do grande Lauro Sodré), quando lhe incumbia responder de imediato, aceitando-o ou o rejeitando, mas suspendendo a tramitação do processo e afastando-se da causa; mesmo que tudo que aleguei ou requeri, esgotando todos os recursos previstos pela lei processual civil, tenha sido negado, para, ao final, a condenação ser confirmada, num escabroso crime político.

Sim, um crime político, perpetrado pela maioria dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Pará que atuaram no meu caso, certamente inconformados com críticas e denúncias que tenho feito sobre o TJE nos últimos anos (como nesta própria edição). Nenhuma delas foi desmentida, a maioria delas também permaneceu completamente ignorada pelos magistrados citados nos artigos. Ao invés de cumprir as obrigações de sua função pública, eles preferem apostar na omissão e na desmemoria da população. E no acerto de contas com o jornalista incômodo.

Depois de enfrentar todas as dificuldades possíveis, imagináveis ou inimagináveis, varando para o terreno do surreal, meus recursos finalmente subiram a Brasília, em dezembro do ano passado. O recurso especial seguiu para o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Ari Pargendler, graças ao agravo de instrumento que impetrei (o Tribunal do Pará rejeitou o primeiro agravo; sobre o segundo já nada mais podia fazer; se pudesse, eu não teria escapado ao redil).

Mas o presidente do STJ, em despacho do dia 7, disponibilizado no dia 10 e publicado no Diário da Justiça do dia 13, negou seguimento ao recurso especial. Alegou erros formais na formação do agravo: "falta cópia do inteiro teor do acórdão recorrido, do inteiro teor do acórdão proferido nos embargos de declaração e do comprovante do pagamento das custas do recurso especial e do porte de retorno e remessa dos autos”.

Recentemente, a justiça brasileira impôs novas regras para o recebimento de agravos, exigindo dos recorrentes muita atenção na formação do instrumento, tantos são os documentos cobrados e as suas características. Podem funcionar como uma armadilha fatal, quando não são atendidas as normas formais do preparo. Sempre estivemos atentos a essas minúcias bizantinas do positivismo processual brasileiro, que nem a modernização extinguiu. Sabíamos que um pequeno erro, sem importância no conteúdo do processo, podia nos fulminar. Depois de 20 anos de martírio nos corredores forenses, um errinho desses se torna probabilisticamente cada vez mais possível pelo estresse, pelo exaustão Daí a atenção requerida no preparo das peças.

A falta de todos os documentos apontada pelo presidente do STJ me causou enorme surpresa e perplexidade. Participei pessoalmente da reunião dos documentos e do pagamento das despesas necessárias, junto com minha advogada, que é também minha prima e atua na questão gratuitamente (ou pró-bono, como preferem os profissionais).

Processos

Não tenho dinheiro para sustentar uma representação desse porte. Muito menos para arcar com a indenização que me foi imputada, mais uma, na sucessão de processos abertos contra mim pelos que, sendo poderosos, pretendem me calar, por incomodá-los ou prejudicar seus interesses, frequentemente alimentados pelo saque ao patrimônio público.

Desde 1992 já fui processado 33 vezes, 19 delas pelos irmãos Maiorana. Nenhum dos autores dessas ações teve interesse em me mandar uma carta, no exercício de seu legítimo direito de defesa. O Jornal Pessoal reproduz todas as cartas que lhe são enviadas, mesmo as ofensivas, na íntegra. Também não publicaram matérias contestando as minhas ou, por qualquer via, estabelecendo um debate público, por serem públicos todos os temas por mim abordados (nada a ver com a intimidade dos personagens).

Foram diretamente à justiça, certos de contarem com a cumplicidade daquele tipo de toga que a valente ministra Eliana Calmon, Corregedora Nacional de Justiça, disse esconder bandidos, para me atar a essa rocha de suplícios, que, às vezes, me faz sentir no papel de um Prometeu amazônico.

Não por coincidência, fui processado pelos desembargadores João Alberto Paiva e Maria do Céu Cabral Duarte, ambos já aposentados, o primeiro tendo como seu advogado um ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral, à frente de uma das mais conceituadas – e caras – bancas jurídicas do Distrito Federal.

O ex-ministro José Eduardo Alckmin, que também advogava para a C. R. Almeida (e defende o senador Jader Barbalho), veio a Belém para participar de uma audiência que durou cinco minutos. Sua única participação foi exibir sua lustrosa carteira da OAB/DF. Como eu não aceitei acordo, o processo continuou. Mas ele impressionou pela sua presença. Não foram poucas as pessoas que deixaram seus afazeres no fórum para ver o famoso advogado.

O madeireiro Wandeir dos Reis Costa também me processou. Ele funcionou como fiel depositário de milhares de árvores extraídas ilegalmente da Terra do Meio (a mesma onde Cecílio atua), que o Ibama apreendeu em Altamira. Embora se declarasse pobre, ele se ofereceu para serrar, embalar e estocar a madeira enquanto não fosse decidido o seu destino.

Destino, aliás, antecipado pelo extravio de toras mantidas em confinamento no próprio rio Xingu. Uma sórdida história de mais um ato de pirataria dos recursos naturais da Amazônia, bem disfarçado. O advogado do pobre homem veio de Altamira tentar me condenar por dizer a verdade. Felizmente, não conseguiu.

Apesar de todas essas ações e do martírio que elas criaram na minha vida nestes últimos 20 anos, mantenho meu compromisso com a verdade, com o interesse público e com uma melhor sorte para a querida Amazônia, onde nasci.

Não gostaria que meus filhos e netos (e todos os filhos e netos do Brasil) se deparassem com espetáculos tão degradantes, como o que vi (e jamais imaginara ver): milhares de toras de madeira de lei, incluindo o mogno, ameaçado de ser extinto nas florestas nativas amazônicas, nas quais era abundante, sendo arrastadas em jangadas pelos rios por piratas fundiários, como o extinto Cecílio do Rego Almeida.

Depois de ter sofrido todo tipo de violência, inclusive a agressão física, sei o que me espera. Mas não desistirei de fazer aquilo que me compete: jornalismo. Algo que os poderes, sobretudo o judiciário do Pará, querem ver extinto, se não puder ser domesticado conforme os interesses dos donos da voz pública.

Vamos tentar examinar o processo e recorrer, sabendo das nossas dificuldades para funcionar na justiça superior de Brasília, onde, como regra, minhas causas sempre foram vencedoras até então, mesmo sem representação legal junto aos tribunais do Distrito Federal.

Decidi escrever este artigo não para pressionar alguém ou extrapolar dos meus direitos. Decisão judicial cumpre-se ou dela se recorre. Se tantos erros formais foram realmente cometidos no preparo do agravo, o que me surpreendeu e chocou, paciência: vou pagar por um erro que impedirá o julgador de apreciar todo meu extenso e profundo direito, demonstrado à exaustão nas centenas de páginas dos autos do processo. Se não tiver sido cometida nenhuma burla nos autos, nenhuma retirada de documento ou qualquer outra manobra vil, terei que reconhecer meu erro e purgá-lo.

Perseguição política?

Terei mesmo? Não sou criminoso, nunca ofendi ninguém, nunca publiquei uma inverdade, nunca escrevi para tirar vantagem pessoal. Não será esta a oportunidade para transformar um ato de perseguição política através da via judicial para convidar os cidadãos a uma iniciativa de protesto contra esse tipo de atentado à liberdade, à verdade e ao bem público?

Terei que ir atrás da solidariedade dos meus leitores e dos que me apoiam para enfrentar mais um momento difícil na minha carreira de jornalista, com quase meio século de duração. Espero contar com a atenção das pessoas que ainda não desistiram de se empenhar por um país decente. Um Brasil que merecemos ter.

*Lúcio Flávio Pinto é jornalista paraense. Publica o Jornal Pessoal (JP)