Fernando Faro: a arte na televisão
Quando o assunto é música popular brasileira o produtor musical Fernando Faro é um dos nomes mais respeitados nesse meio. Criador do programa Ensaio, que mudou a concepção de entrevista, deixando o entrevistador de fora da edição; idealizador de shows memoráveis como Trem Azul, de Elis Regina, Faro só deixa de lado a música por sua outra grande paixão: o futebol. Abaixo, uma entrevista de Baixo, como é chamado por seus 1,65 m de altura e uma voz pausada e baixa.
Publicado 05/04/2012 02:39
Fernando Faro, um sergipano nascido em 1927 e radicado em São Paulo, é considerado por muitos "a pessoa que mais entende de MPB no Brasil". Em mais de 50 anos de atividade contínua em vários campos, como jornalismo, publicidade e principalmente televisão, desenvolveu um talento inato de grande comunicador e criou séries de programas – especialmente na área teatral e da música popular – que marcaram época. O mais famoso deles, "Ensaio", que data do final da década de 60, início da de 70, ainda consta da programação regular da TV Cultura – Faro continua a produzi-lo, bem como a outro interessantíssimo programa da rede, "Provocações", apresentado por Antônio Abujamra.
Muitos dos programas que criou nos anos 60, como "Móbile" e "TV de Vanguarda", ambos da TV Tupi, ou "Divino Maravilhoso" (TV Excelsior), sobrevivem apenas na memória dos espectadores, devido ao descaso com a preservação de programas, habitual nas primeiras décadas da mídia. Felizmente "Ensaio" teve destino melhor – é uma série documental de proporções inauditas, com cerca de 600 programas. Uma boa parte deles está preservada, arquivada pelo próprio Faro, e vem sendo entregue regularmente ao público – primeiro no formato de CDs, em série patrocinada pelo Sesc a partir de 2000, e atualmente em DVD, num projeto lançado no ano passado e concretizado graças a uma parceria entre o produtor, a TV Cultura e a gravadora Trama. Iniciado com um DVD de 100 mil cópias, de Elis Regina, gravado em 1973, prevê uma série de 20 programas que divulgarão os nomes mais significativos da MPB, ao longo de 40 anos.
Faro conserva um apelido carinhoso, "Baixo", que lhe foi dado devido à estatura e ao tom de voz suave. E faz questão de se dirigir a todos também como "baixo", "baixinho", "baixa" – essa é sua marca pessoal. Sua personalidade, sua trajetória pessoal mesclam-se à história da cidade de São Paulo e do Brasil, pela contribuição infatigável que vem dando ao nosso legado cultural. Em 1995 foi nomeado diretor do Museu da Imagem e do Som, mas ficou pouco tempo no cargo, pois preferiu voltar ao seu habitual modo descompromissado de ser e de fazer arte.
Revista Problemas Brasileiros: Quais foram suas impressões de São Paulo, quando aqui chegou?
Fernando Faro: Confesso que fiquei muito atordoado com a cidade. As pessoas falavam uma outra língua, um português italianizado que eu não entendia direito. Não gostava. Depois me acostumei com a língua, com a cidade, com tudo. Gosto de São Paulo, admiro muito esta cidade fervilhante. Comecei a entender melhor seu povo lendo os livros de Antonio de Alcântara Machado, como Brás, Bexiga e Barra Funda, em que retrata os imigrantes italianos. Havia também um outro autor, muito engraçado, era de família tradicional paulista, mas fazia crônicas em uma língua macarrônica, ítalo-paulista, usando o pseudônimo de Juó Bananére.
RPB: Como foi sua mudança para cá?
FF: Nasci em Aracaju e me criei em Laranjeiras. Meu pai morreu quando eu tinha 2 anos, jogando futebol. Chocou-se com outro jogador e morreu em conseqüência disso. Então minha mãe resolveu se mudar para a Bahia, depois viemos para São Paulo, eu ainda não tinha 18 anos. Fomos morar na Rua Turiassu, e a primeira coisa que fiz foi um teste para o time do Palmeiras. Passei, mas minha mãe não quis saber. Queria que eu tivesse um "canudo". Entrei na Faculdade de Direito. Mas não agüentei. Foi uma desilusão para mim. Achei o ambiente muito frio, muito pedante. Impliquei até com a arquitetura, havia uma escada de mármore… No último exame do terceiro ano olhei para a escadaria e pensei: "Não fico mais aqui. Não tem nada que ver comigo". Percebi que eu gostava era mesmo de escrever. Aí resolvi ser jornalista. Trabalhei primeiro na reportagem geral do jornal "Notícias da Noite", depois em "A Noite" e no "Jornal de São Paulo" – que era de Adhemar de Barros e onde encontrei um punhado de gente muito interessante, Ernani Silva Bruno, que tinha vindo de "A Noite" comigo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Geraldo Ferraz, que era marido de Pagu. Esse era um chefe durão com os novatos. Logo que entrei me mandaram fazer uma cobertura política qualquer, eu demorei muito, quando voltei para a redação, lá pelas 9 e meia, 10 horas, ele veio se sentar na minha mesa e ficou me olhando, me olhando, e disse: "Quando Vossa Senhoria acabar, me avise, porque há mais ou menos 30 funcionários esperando a sua matéria para fechar o jornal". Comecei a tremer. Pouco a pouco passei a escrever sobre o que me interessava, crítica de teatro, de cinema, assuntos culturais. Acabei me transferindo do jornal para a antiga Rádio Cultura, que naquele tempo era do Nicollini.
RPB: O que fazia na Rádio Cultura?
FF:Fazia um programa chamado "Ribalta", idéia minha, adaptava peças estrangeiras para o elenco do radioteatro. Fiz coisas de Eugene O’Neill, de Paul Claudel, de Samuel Beckett. Ninguém tinha ouvido falar dele ainda, aqui. Eu já lia muito, mesmo quando estava no nordeste, o tempo sobrava. Fiquei pouco mais de um ano na Rádio Cultura. Saí para trabalhar na TV Paulista, de Victor Costa, na parte jornalística. Uns dois anos depois já estava cheio daquilo e resolvi deixar a televisão, mas acabei indo para a TV Tupi. Sempre fui muito inquieto, não agüentava rotina. Uma vez deixei de trabalhar em uma grande agência de publicidade, a Dipro, para tocar um jornalzinho da Lapa que era de um amigo meu, paraplégico.
RPB: Quer dizer que o salário pago pelos jornais e pelas TVs não dava para fechar o orçamento do mês?
FF: Não dava. Principalmente o que recebia na TV, em todas elas, era muito pouco. A gente se equilibrava fazendo frilas de toda espécie, publicidade também. Cheguei a trabalhar na McCann. Na Norton, full time – das 8 às 18, com duas horas para o almoço, e ainda acumulava todo o meu trabalho na Tupi. Saía da agência, ia direto para a TV, virava a noite, nem dormia, às vezes, já voltava para a agência… Eu criava anúncios para a TV. Lembro que uma vez estávamos produzindo um comercial das salsichas Perdigão e o pessoal da técnica resolveu parar, porque estava sem receber havia meses. Então paramos e consumimos o objeto do comercial, as salsichas.
RPB – Como viveu nos "anos dourados" da década de 50?
FF: Foi mesmo uma época muito estimulante, principalmente no tempo de Juscelino. Tudo estava em ebulição, as artes, a literatura, o teatro. Em meados dos anos 50, fiz um programa na TV Paulista, o "Teledrama Três Leões". Escrevia peças grandes, de duas horas. Uma delas foi sobre um bandido lá de Laranjeiras, minha terra, chamado "Inácio Brinquinho". Ele matou o marido de Jurema Faro, da minha família, mas parenta longe. Ela jurou vingança e saiu com uns vaqueiros caçando-o, pelo sertão. Voltou uma semana depois exibindo a cabeça de Inácio Brinquinho.
RPB: Quando começou a fazer seus espetáculos musicais?
FF: Mais tarde, na TV Tupi. Com o passar do tempo, fui me fixando nas coisas que me interessavam mais, principalmente na música popular. Mas naquele tempo não havia muita especialização, quem trabalhava tinha de fazer o que mandavam. Tínhamos de ser muito versáteis, ter muito jogo de cintura. Quando resolvi sair da TV Paulista, eu queria deixar de fazer TV. Mas um amigo, Carlos Rizzini, que era dos Diários Associados, me disse: "Não faça isso, cara, mude só de TV". E me arranjou uma carta de recomendação de Edmundo Monteiro, que era diretor dos Diários, para Cassiano Gabus Mendes, da TV Tupi. Mas Cassiano disse: "Baixinho, já ouvi falar de você". Rasgou a carta de Edmundo, disse que não precisava dela, e que ia fazer um contrato de experiência comigo, de três ou quatro meses. Mandou logo que eu fizesse uma adaptação de um capítulo de O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo. Isso aconteceu numa segunda-feira. Na quarta apresentei meu trabalho. Depois que ele foi ao ar, Cassiano me chamou para assinar um contrato de dois anos – para o rádio e a TV. Naquele tempo era assim. Fiz dois programas semanais. Um era muito baseado no trabalho folclórico de Mário de Andrade, buscava as raízes mais tradicionais do país, chamava-se "Na Pancada do Ganzá". E havia um outro de música carnavalesca, bem popularzão, "Música da Gente" – isso, no rádio.
RPB: Como era a produção de um programa, no começo da TV no Brasil?
FF: O máximo da improvisação, da imaginação. Criei um programa na Tupi chamado "TV de Vanguarda", fazia adaptações ora com textos meus ora de autores estrangeiros, fiz Franz Kafka, Beckett, Jean Genet, André Gide, Thomas Mann. Fazia também "O Contador de Histórias". No primeiro programa dessa série, fui falar com o diretor de elenco e pedi quatro atores masculinos, acabei saindo com o elenco disponível, três homens e duas moças, queria um cenário feito só para mim, não deu, tive de improvisar com o que havia. No fim dava tudo certo. Ou aconteciam coisas muito atrapalhadas. Por exemplo: uma vez, fiz uma adaptação bem ousada de O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger. No fim o personagem dava um tiro no ouvido. Pois não é que nessa hora entra a voz do diretor de TV: "Egberto, você tá sem foco, baixo. Então vê se é com a sua câmera… Chame a câmera do Neto para te ajudar"… Tudo isso no ar.
RPB: Quantos programas criou, em toda a sua vida?
FF: Muitos, muitos mesmo. Eu fazia coisa de todo tipo, na TV. Até novela. Um dia Cassiano me disse que ia me dar mais um dinheirinho se eu fizesse novela. Eu topei, porque precisava. Então, além de tudo o mais, eu começava a escrever à uma hora da madrugada e ia até de manhã, na Tupi mesmo, porque assim que eu acabava já rodavam no mimeógrafo e distribuíam para os artistas. Fiz uma novela em episódios passados em um salão de beleza, cada dia uma freguesa contava sua história.
RPB: Até se firmar na produção de programas musicais…
FF: Isso. Meu programa principal, "Ensaio", foi criado na TV Tupi, entre 69 e 71. Depois eu o levei para a TV Cultura, com o nome de "MPB Especial", mas acabei retomando o primeiro nome. Sempre gostei de música popular, já em 60 tinha um programinha, "Hora da Bossa". Quando eu estava fazendo o "TV de Vanguarda", com as adaptações todas de que já falei, um dia produzi um texto, "O Triângulo", querendo imitar o nouveau roman que estava em moda na época. Alguém foi falar com Cassiano que eu devia fazer programas musicais mais fáceis de entender. Então comecei a fazer musicais, como o "É Wallig, o Espetáculo", shows assim do tipo do "Fantástico", com reportagens, tinha uma apresentadora maravilhosa que era Helena Inês, balé… A gente tinha de coordenar tudo, com uma equipe muito pequena, eu passava a noite de sexta para sábado editando, depois saía direto para comer uma feijoada no Largo do Arouche, e só depois é que ia para casa. Nos anos 70 produzi uma série de grandes shows, às vezes com 60 ou 70 artistas, entre os quais apareciam Chico Buarque, Gal Costa, Ney Matogrosso, Dorival Caymmi, Vinicius e Toquinho, Aracy de Almeida, Milton Nascimento.
RPB: – O programa "Ensaio" é conhecido pelo seu formato original, em que o entrevistador não aparece. Como foi a sua criação?
FF: Foi um efeito que descobri por acaso, no final dos anos 50. Fui entrevistar para o jornal da TV Paulista um bandido, Jorginho, um verdadeiro mito na cidade. Na delegacia, não me deixaram entrar na cela, e eu pedi para colocarem lá dentro o gravador e o microfone e fiquei de fora. Eu perguntava: "Como você passou por cima do japonês?", "Passei porque ele já estava morto". Gostei do resultado, ficou bonito. Foi aí que tive um clique, descobri que o ruído atrapalha a informação. Uma pessoa ao lado do entrevistado gera um ruído forte demais. Por isso prefiro fazer o "Ensaio" até hoje assim, falo baixinho com os entrevistados, mas são eles que dão a cara no programa. Inovei também na iluminação e no uso de closes, valorizando os detalhes, como olhos, mão, boca. É como se fosse uma pessoa abstraída, podia sair de um quadro de Picasso, de um Dalí. Essa idéia me veio em um campo de futebol. Reparei que, com a imagem geral, os jogadores ficavam com cara de marionete, sem rosto, sem nada. Então resolvi usar no máximo planos americanos, enquadrando pessoas da cintura para cima, e no resto, só closes.
RPB – Qual outro programa que gostou muito de fazer?
FF: – Lá por volta de 62, um dia Cassiano disse: "Baixo, preciso de um programa para as onze e meia da noite, no sábado. Faça o que você quiser". Eu achava que a nossa TV estava muito atrasada, em relação ao que se fazia em outros países. Então criei um programa chamado "Móbile", misturando música e textos. Um programa meio sem estrutura, a idéia era essa, como os móbiles de Alexander Calder, eu mexia nele, fazia intervenções inesperadas, os artistas tinham de improvisar, os convidados. Montava um cenário banal, com alguns elementos, e levava gente como Décio Pignatari, Juca de Oliveira, Aracy Balabanian. Eu empurrava: "Fulano, você está no ar, faça alguma coisa". Ou chamava bailarinos, improvisava coisas no estilo de Maurice Béjart. Uma vez Marika Gidali fez um balé especial para o programa, e eu usei três câmeras, uma na frente, uma do lado e outra atrás, para ver no que dava. E usei textos de Beckett, de Fernando Arrabal. E tem mais: ela havia trazido a música original gravada, mas combinei com César Mariano e na hora a substituí pela dele. O grupo dançou da mesma forma, e Marika acabou achando que tinha saído uma maravilha. Foi um programa sofisticado, de comunicação vertical.
PB – O que é isso, "comunicação vertical"?
FF: É a mais sofisticada, que atinge um público mais culto, e que muitas vezes cria padrões que são aproveitados pela "comunicação horizontal", que é mais para as massas. Sempre gostei de trabalhar aproveitando idéias vindas de vários campos, das minhas leituras, dos filmes, das artes plásticas, integrando tudo. Até de James Joyce tirei muito na narração, na estrutura de meus programas. Mas os desse tipo sempre acabam tendo de ceder o horário para os outros, os "horizontais".
RPB – Como foi seu trabalho no tempo da ditadura?
FF: Como o de todos, com uma censura constante. Volta e meia apareciam dois censores me intimando a dar explicações no gabinete de um general, não lembro o nome, que ficava na Rua Maranhão. Era o chefe da censura. Uma vez, em um dos festivais de estudantes que fiz na Tupi, havia uma música de Walter Franco, acho, que falava em "tigres de papel", que matavam estudantes. Então o general me disse: "A letra que eu recebi falava que o tigre mata elefante, e não estudante, o que o senhor acha?" Fui logo dizendo que fazia mais sentido. No fim da entrevista, ele me disse: "Meu filho, vou lhe dar um conselho: não se meta com padres, estudantes e intelectuais". E eu só pensei: "Assim não vou ter mais trabalho". Num outro programa chamado "Colagens", feito por Cassiano, Walter Avancini, Abujamra e por mim, tive a maior encrenca porque na abertura coloquei a câmera enfocando uma água-viva. Sem texto, sem música, sem nada. E aí aparecia uma mão jogando sal na água-viva, e ela ia se dissolvendo. Então fui chamado ao gabinete do tal general, porque ele achava que estávamos fazendo uma crítica, a água-viva seria o povo, e o sal o governo, que queria acabar com o povo.
RPB – Chegou a ser preso alguma vez?
FF: Não, mas parece que escapei por muito pouco. Naqueles dias que se seguiram à morte de Vladimir Herzog, quando havia muita tensão no ar, Audálio Dantas, que era o presidente do Sindicato dos Jornalistas, me avisou: "Baixo, estive na sala do general Ednardo e vi seu nome lá. Melhor você dar uma saidinha, uma escondida". O general Ednardo era o comandante da 2ª Região Militar. Eu não demorei nada, me escondi durante uns sete dias. Mas com todo o barulho que a morte de Vlado provocou, o general acabou tendo de sair do cargo. O presidente da República, general Ernesto Geisel, veio a São Paulo. E foi recebido pelo governador do estado, que era meu amigo, Paulo Egydio Martins. E também pelo próprio Ednardo, que o convidou para ficar alojado no quartel da 2ª Região, disse que estava tudo preparado lá para ele. Mas Geisel respondeu: "Não, vou ficar com meu amigo, o governador". Então, assim que o general foi demitido, o governador me mandou um recado, que eu podia aparecer, o perigo passara.
PB – O que acha da TV de hoje?
FF: É claro que hoje a TV é muito diferente da que se fazia nas primeiras décadas. É mais técnica, cronometrada, certinha. Mas isso é bom, e ruim também. Porque você hoje não precisa ser um cara que pense, para fazer televisão. Basta saber manipular os computadores, dominar a técnica. Em conseqüência disso, toda a linguagem da TV é hoje uma espécie de fantástica colagem, um grande tape com pedacinhos de coisas que às vezes não têm a menor importância. Com isso se perde o homem, a figura, o ser humano. Eu prefiro mil vezes a história de um shot só, porque me preocupa muito a natureza humana, os mistérios e o significado do homem.
Fonte: Revista Problemas Brasileiros e Trama