Publicado 19/07/2013 09:39 | Editado 04/03/2020 16:28
Enquanto entusiasmados jovens carregam, pra cima e pra baixo, um lustroso cruzeiro e um ícone bizantino de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro pelas igrejas do Rio de Janeiro, aqui em Santana do Acaraú os fiéis da Santa Madre acorrem à igreja matriz para participarem contritos do novenário em honra à Ana, avó do Cristo.
A cidade maravilhosa aguarda a chegada do Sumo Pontífice que dirá para muitos nativos e visitantes, num portunhol comestível, do amor entre os homens e da fé em Deus, valores que a humanidade anda esquecendo cada vez mais. E é bom mesmo que se cuide da morada celestial porque a coisa aqui tá preta, a vida corre por um fio, urge estejamos preparados para a indesejada viagem, seja por morte morrida, ou, por outra, de susto, de bala ou vício.
Enquanto isso, aqui na ribeira, entre um rito e outro, o reencontro com os amigos de infância faz a vida espichar um pouco mais seus janeiros. O percorrer de antigos caminhos à sombra de casarões seculares, ouvindo o farfalhar dos leques das carnaubeiras copadas, também avoengas e evocativas, nos dá a salutar injeção de tempo na alma. Embora nos deparemos com desagradáveis surpresas: casas antigas trocadas por duplex de duvidoso gosto; o barracão do mercado destruído sem uma justificativa plausível; o desaparecimento das canoas no seu ir e vir da ilha à cidade porque o progresso chegou com uma ponte de concreto, pra não se perder tempo olhando bucólicas paisagens.
Os sons dos sinos nas tradicionais chamadas para os atos religiosos foram engolidos pelos paredões carregados de decibéis a fim de nos impingir melodias (?) de péssima qualidade num torneio estúpido e inconsequente. E tudo virou pizza. Bom-bocado, nem pensar! Pirulitos, broas, roscas, tapiocas, bulins… tudo pro beleléu. Motos substituíram cavalos, modernos ônibus deram lugar aos mistos e horários ou boleias de velhos loreis. As bestas feras agora são carangos envenenados, automóveis importados, todo mundo tem um carrinho de estimação. As casas não têm mais jardim, acreditem, garagem, sim. Mote pra repentista.
Se de um lado, padres e sacristãos cuidam, nos templos, de cerimônias sacrossantas; lá fora os santanenses saudosos confraternizam-se em praças, calçadas, bares, clubes, e até no leito do Acaraú. Uma descontração menos espiritual, mais mundana, pé no chão, longe das nuvens angelicais. E, não obstante os desbragados eventos musicais, respinga alguma atividade mais substancial, um lançamento de livro, uma mostra de arte. Neste sentido nos sentimos úteis com a mostragem do almanaque que editamos em parceria com outros companheiros, tudo empacotado pelas mãos habilidosas de Antonio João o designer gráfico. Esta edição do DeUmTudo, de número sete, é quase que inteiramente dedicada a Santana: além de abordar um pouco do passado, faz referência a artistas, poetas; geografia e história, presença e saudade. Um souvenir para ser guardado e relido vez por outra, quando a saudade apertar.
Mesmo com o nefasto ruído dos tais paredões e descargas de carros e motos ainda dá pra perceber os maviosos sons da centenária Banda de Música Padre Araken com seus indefectíveis dobrados marciais e de quebra o hino Louvores a Sant’Anna, o qual, antigamente, todo menino do buchão sabia de cor e salteado.
Então vamos para a praça arrematar as prendas do leilão, dançar uma figurada na Festa da Amizade, ora pronobis na espaçosa igreja, desfilar pelas ruas engessado na procissão. O Papa não estará presente mas em cada esquina rondarão os fantasmas dos vigários Araken, Joviniano, Aragão e a indelével aura do poeta príncipe Antonio Thomaz. Dando rasteira nos desenganos e pintando o tempo com o verde da esperança.
*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo
Fonte: Jornal O Povo
Opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as opiniões do site.