Audifax Rios: A túnica cáqui Floriano

Por *Audifax Rios

Castigava nosso sertão, o sol da seca de 1958. Inclemente, como rezavam as folhas. Fazia um calor de esturricar o chão, porém nos mostrávamos felicíssimos, mesmo engessados dentro de uma pútrida farda de cáqui Floriano, qual uma armadura de ferro pra justificar o marechal. Túnica taliqual a dos macacos volantes que perseguiam Lampião nos cafundós do Raso da Catarina. Melhor ainda: o uniforme militaresco era o diferencial que nos deixava com ares de superioridade. Afinal fazíamos parte de uma casta privilegiada, éramos os ginasianos da primeira fornada de um colégio da terra. Orgulhosos, perguntávamos sem propósito comment allez vous? E agradecíamos com inconvincente Deo gratias. Dalí a alguns anos seríamos tão poliglotas quanto o glorioso Rui. Tínhamos livro e professor para cada matéria e, de madrugada, olhos ainda remelentos, vestíamos camiseta V-8 e calçávamos fanabor para as aulas de educação física. Continuamos apelidados de pés de anjo e não melhoramos a performance do corpo.

Os valorosos rapazes estudavam à tarde e as moças pela manhã, elas mais numerosas, vinte e cinco, ao todo. Havia também menino e menina, adolescentes, brochotes e brotos. Nós homens pela metade, uma dúzia pra ser preciso. E ainda lembramos, de cor e salteado, os números de ordem da chamada, assim: 1- Audifax Rios; 2- Estênio Lima; 3- Batista Cavalcante; 4- Azarias Neto; 5- Deusdedit Brandão; 6- Ivani Ponte; 7- Marcelo Ponte (no segundo semestre substituído por Luciano Cavalcante); 8- José Maria Araújo; 9- Valdetário Vasconcelos; 10- Wagner Carneiro; 11- Paulo Tomás e 12- Armando Fonteles.

Passados mais de cinquenta anos, sobraram poucos no convívio mais miúdo. Estênio, Deusdedit e Paulo de Tarso partiram desta para melhor. Zé Maria do Cirineu arribou pra Goiânia e por lá deu um chá de sumiço. Substituiu-o Messias Tomás, egresso dos jesuítas de Baturité. Azarias também mora em Goiás, nas brenhas, caça e pesca. Valdetário, aqui perto, em Mossoró, nunca mais deu o ar da graça. A maioria reside em Fortaleza, Ná, Velho Doca, Luciano do Mozar. Em Santana mesmo ainda estão Wagner, Batistão e Marcelo do Gibraltar.

Alguns foram bem sucedidos na vida, mesmo que não saibamos o que quer dizer exatamente isso. Por exemplo, Armando é engenheiro; Ivete, assistente social; Emiliana, aliás Irmã Paulina, freirinha filha de Sant’Anna. Das mulheres, a maioria namorou, noivou, casou e se tornou dona de casa. Para algumas as prendas domésticas não atrapalharam no magistério. E os homens seguiram o destino milenar, tornaram-se, de uma forma ou de outra, comerciantes.

Muito pouco nos encontramos, uma vez por ano; na Festa de Santana aqui, acolá, um esbarra noutro. Para felicidade geral. Reminiscências, pequenas coisas acrescidas pela fantasia, a constatação de que (perdoem) éramos felizes ingênuos. Quando do cinquentenário do término de curso ainda tentamos organizar, em vão, um encontro. Havia até a promessa do Dr. Edmilson Sampaio, o primeiro diretor e professor de francês e latim, de comparecer. Algum dia tentaremos novamente. A cada dia fica, irremediavelmente, mais tarde.

Falar em professor, é bom que se registre aqui nomes de mestres embora a intenção fosse homenagear o estudante que teve seu dia no onze passado. Pois bem, além do dito Edmilson que, apito à boca, ministrava as tais aulas de educação física, muito devemos à Dra. Nogueira Machado Arcanjo, mestra de português que nos ensinou a gostar de ler e escrever e ver o mundo por outro viés; Dona Anésia Ponte, além de secretária, professora de geografia. A ela devemos a noção imprestável do grau geotérmico e o contato com a revista Sesinho; Miriam Arcanjo, dessa guardava distância para não ser convocado ao quadro negro pelo pavor da álgebra. No segundo semestre tirávamos de letra na geometria; Professor Galvino Arcanjo revirou a história e começou pela questão religiosa, apresentando-nos Lutero, Calvino e Swinglio. Padre Joviniano era professor de música e encantava com sua voz, enquanto o esquisito coadjutor, Fernando Frota ministrava religião e nos hipnotizava à noite na Casa Paroquial. Por fim a mana Diana Rios, mestra de desenho e trabalhos manuais. Magnânima, costumava a dar dez até a quem nem era merecedor.

No corredor do prédio, reformado a partir do casarão do Educandário Santana, havia um quadro de honra com os nomes dos melhores em disciplina, religião e comportamento. Nessas duas últimas colunas os machos pouco compareciam. Na outra parede era posto um jornalzinho mural, O Estudantil, onde sempre escrevíamos e desenhávamos. Achamos até que tal publicação fora o motivador da nossa amigação com a imprensa, essa mania de ilustrador e escrevinhador. No mínimo de observador deste mundo de meu Deus e da terra dos homens. Para o que, talvez, nem tivesse sido preciso ensaiar exaustivamente, do dia do estudante até o sete de setembro, todos os esquerda volver para desfilar, com denodo e galhardia, céleres e ufanos, no dia da patriamada.

*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo

Fonte: Jornal O Povo

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