Audifax Rios: Que a terra lhes seja leve

Por *Audifax Rios

Era avesso a funerais e seus desdobramentos (exéquias, velórios, missas, etc.), tirante uma sentinela animada onde, invariavelmente, corria farto anedotário

A primeira capa de livro que cometi foi sobre um assunto que não me dizia muito respeito; aliás assustava, um tabu, tema que afastava do índice temático de minhas conversações. Havia motivo mais vivo a falar. A obra de Cândida (Nenzinha) Galeno chamava-se “Ritos fúnebres do interior cearense” (Editora da Casa Juvenal Galeno, 1968) e foi um convite do companheiro da TV Ceará, Willame Moura para edição coordenada por Oscar Moreira, dos Diários Associados.

O que me animou, além da estreia numa trilha que percorreria durante a vida inteira, foi o tema: folclore. O qual perseguia desenhando e escrevendo, já tendo ganho até um prêmio nacional (menção honrosa) por um ensaio sobre experiências de inverno no Ceará. Embora mantivesse a desconfiada distância. Era avesso a funerais e seus desdobramentos (exéquias, velórios, missas, etc.), tirante uma sentinela animada onde, invariavelmente, corria farto anedotário e generoso rega-bofe hidratado com muita cachaça.

Afora este tom lutuoso, meio macabro, até que aprecio o outro lado, o marcadamente tradicionalista, popular. Já presenciei enterro de anjinho sobre telha enfeitada com papel crepom. Saía de um acampamento de ciganos que se arrancharam no Talo Verde, na entrada da cidade. Tal despojamento fez o vigário torcer o nariz para o pleito deles por um pedacinho de chão, uma covinha rasa no campo santo, que é de todos. Enterros em rede eram comuns no sertão, e na zona rural não se davam a esse luxo, os corpos eram sepultados apenas com a mortalha ou mesmo a roupa do couro. Os pobres da cidade, porém, levavam vantagem: dispunham de um surrado caixão esperando na capela do Cemitério Novo. Novo, sim, havia o velho, desativado durante um surto de febre amarela que grassou numa prolongada seca. Neste, pouquíssimos túmulos, alguns de mármore. No outro, atulhado de carneiras de um só modelo, anjos e crucifixos já foram roubados dos mausoléus dos ricaços daquela história do camelo que entrava facilmente no fundo de uma agulha.

Nos cemitérios da minha terra, acredito que nos das outras também, havia conjunto de sepulturas fora dos muros, afastado do portão principal, destinado aos suicidas. Lá jaziam os restos mortais de uma mulher corajosa que afrontou a sociedade com seus amores livres e escancarados; e paixões arrebatadoras por honrados cidadãos de escol da sociedade hipócrita. A pressão foi tamanha que a indigitada apelou para o tresloucado gesto. No entanto sua última morada era tão visitada quanto maldita.

Carpideiras contratadas já não alcancei, não era prática por aqueles sítios. Chorava-se de coração. Parentes e amigos derramavam um pranto sincero e verdadeiro. Mas pintei muita faixa para coroas, ajudava a mana Diana nas encomendas. E haja purpurina diluída em óleo de banana (ah, o cheiro!) para encher os contornos das letras góticas patenteando imorredouras saudades. Os caixões, pretos para os adultos e azuis para os anjos e as moças donzelas, eram confeccionados pelo mestre carpina Tido Monte, especialista no mister. Grade de madeira encoberta por tecido e ataviada por fitilhos com filigranas e arabescos dourados ou prateados, conforme o status do defunto. Tudo arrematado por cravos de salientes cabeças. Bem despojado, a cruz era o único símbolo permitido.

Os atentos lambes-lambes eram os primeiros a chegar a fim de cumprir o faustoso ato de misericórdia. Ossos do ofício. Mal finda a extrema unção já espocavam os flashs sobre os modelos que nem se davam ao luxo de posar com caras e bocas, apenas a inalterável face da morte. Muitas vezes o queixo do falecido era forçado a fechar a boca com a ajuda de um lenço atado no alto da cabeça. E para que os anjinhos enxergassem o caminho do céu, e vissem bem claramente Jesus Menino, palitos eram colocados nas pálpebras cerradas, arregalando os olhos à força.

Sempre evitei o tema nas conversas triviais. Pelo menos quando colocado em mórbida conjuntura. Um amigo costumava abordar a questão alegando ser a morte o fim de inevitável ciclo. Um outro curtia o assunto de uma maneira meio que masoquista, quase suicida. Achava por bem encerrar o papo. Tá que um dia todo mundo tem que ir, mas que este mundo velho besta vai deixar saudade, vai. Seu Zezé Tomás conduzia a matéria por um lado humorado. Perguntado pela idade, respondia mais ou menos assim: “Tenho meio século, vinte primaveras, um trimestre, duas luas… já bebi, já fumei, já dancei, já rapariguei… já estou em tempo de partir… mas devo dizer que vou contrariado!”.

Decerto o dia chegará. E que ele demore bem muito. Pois nem de morrer eu gosto.

*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo

Fonte: O Povo

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