Nigéria: Sequestro de meninas é usado para promover intervenção

A notícia sobre o sequestro de mais de 200 garotas pelo grupo extremista Boko Haram, na Nigéria, comoveu o mundo. A organização internacional de defesa dos direitos humanos, Anistia Internacional, entre outas, chegou a impulsionar a campanha lançada por uma mãe, “Devolvam-nos as nossas garotas”. Entretanto, a intensificação da denúncia e a forma com que é feita provoca a preocupação com uma nova instrumentalização da tragédia para justificar outra intervenção militar.

Nigéria - Pius Utomi Ekpei/AFP/Getty Images

“O terrível drama das garotas sequestradas na Nigéria não será superado por mais armas ocidentais e exércitos no terreno e no ar”, escreve Lindsey German em artigo para o jornal britânico The Guardian. Em um vídeo divulgado na Internet, o líder do grupo Boko Haram (que afirma considerar “pecado” o que chama de “educação ocidental” e já vem atuando com violência extrema no país) disse que as garotas raptadas são “escravas” a serem vendidas como noivas.

“Mulheres são escravas”, diz o líder Abubakar Shekau, no vídeo, alegando defender “valores islâmicos” que supostamente permitiriam a escravidão. Seu discurso é propagado em uma mídia já dominada por narrativas islamofóbicas e desinformadas a respeito da religião, com visões distorcidas que permearam as justificativas dos Estados Unidos e outras potências ocidentais na guerra que impulsionaram contra o Islã.

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As frases de Shekau parecem baseadas nos preconceitos mais simplistas e manipulados contra a religião, quando alega que pretende “casar meninas de 12 ou de nove anos de idade”, que a educação ocidental é um “complô” contra o Islã e que seus militantes devem atacar escolas e matar alunos e professores.

“Esta tragédia comove os corações de todos, evocando um sentimento de revolta não apenas contra o perigo da própria perda de liberdade,” escreve Lindsey. “Mas nós devemos preocupar-nos com a narrativa que vem emergindo. Ela segue um padrão preocupantemente familiar, um que já vimos no sul da Ásia e no Oriente Médio, mas que está sendo cada vez mais aplicado na África também,” ressalva.

A narrativa, explica a autora, é aquela segundo a qual “nós, o Ocidente iluminado, precisamos ser aquele a resolver” a questão, um discurso moralista e carregado de preconceitos, frequentemente acompanhado da política imperialista que domina a história. “O apelo tem sido pela intervenção ocidental para ajudar essas meninas, para ajudar a ‘estabilizar’ a Nigéria após o seu sequestro. O governo britânico já ofereceu ‘ajuda prática’,” explica Lindsey.

Entretanto, “a intervenção ocidental já falhou repetidamente em lidar com problemas particulares e, pior, levou a mais mortes, deslocamentos forçados e atrocidades do que aquelas que enfrentaria originalmente. Por vezes demais, tem sido justificada com a referência aos direitos das mulheres, alegando que as forças militares iluminadas podem criar uma atmosfera em que as mulheres fiquem livres da violência e do abuso. A evidência, porém, é que o caso é o contrário.”

A autora exemplifica com a retórica de defesa dos direitos das mulheres durante a imposição da guerra ao Afeganistão, quando as esposas do primeiro-ministro britânico e do presidente estadunidense, Cherie Blair e Laura Bush, apoiaram a guerra como forma de libertar as mulheres. Hoje, o país contabiliza milhões de deslocados e dezenas de milhares mortos e a situação interna piorou.

Intervenção ocidental e aumento da insegurança

“A intervenção ocidental também já é firmemente intrincada na África. Não tem o mesmo perfil das [intervenções] no Afeganistão ou no Iraque, porque as guerras passadas tornaram difícil enviar soldados. Mas Barack Obama tem suas forças militares engajadas no oeste da África, através da base de drones [veículos aéreos não tripulados] Predator no Níger, que faz fronteira com o norte da Nigéria. O país também faz fronteira com o Mali, cenário das intervenções recentes da França e do Reino Unido, e a Líbia, objeto da desastrosa campanha de bombardeamento em 2011, que deixou o país em estado de guerra civil e colapso.”

Os drones dos EUA também operam no Djibuti, na Etiópia e no Iêmen, e o Ocidente tem se engajado em “guerras por procuração” na Somália nos últimos anos, lembra Lindsey. “Se o islamismo [promoção radical de um Islã interpretado em bases extremistas] é agora uma ameaça aos interesses ocidentais em cada vez mais partes da África, trata-se de algo em cuja criação eles tiveram um grande papel.”

A autora ressalva ainda sobre a outra guerra na África, a econômica: “um continente tão rico em recursos naturais vê muitos dos seus cidadãos vivendo em péssimas condições. Na Nigéria do presidente [Goodluck] Jonathan, o crescimento econômico não alcançou os pobres,” mas armas e exércitos são pagos para proteger as ricas companhias estrangeiras, como a Shell.

Enquanto isso, uma nova intervenção ocidental, com mais armas e presença militar estrangeira, não tornará mais segura a condição das mulheres na região, pelo contrário, como já se verifica em demasiados cenários.

Moara Crivelente, da Redação do Vermelho,
Com The Guardian