Júlia tinha uma maneira incomum de mover-se. Não que rebolasse demais, ou puxasse de uma pena, pelo contrário – flutuava. Não assim de forma poética, uma metáfora boba. O fato é que ela não tocava o chão de verdade, seus pés não suportariam as asperezas dos caminhos. Era como uma fada, vaporosa e suave.
Por Joana Rozowykwiat*
Publicado 05/08/2016 16:20 | Editado 13/12/2019 03:29
Quando criança, recusou-se a engatinhar. Chorava ao ser posta no chão, uma tristeza profunda e resignada. Já começava a perceber que não nascera para ficar presa à terra. Só aos poucos, contudo, descobriu que poderia deixar-se levar, por ventos e vontades.
Transtornados, os pais assistiram pela primeira vez à pequena menina subir e subir. Parecia içada pelo céu azul estampado no pepel de parede que enfeitava o teto do quarto. A mãe, beata que era, rejeitou a criatura flutuante. Não sabia conviver com o inexplicável.
Pouco afeito às responsabilidades e, portanto, sempre distante das realidades cotidianas, o pai aceitou aquele encanto, como uma bênção, que de fato era. Assim, amarrava uma fita rosa-chá ao tornozelo da pequena e a ancorava às treliças do berço. Não queria correr o risco de perder seu tesouro.
E Júlia era como um balão. Aos poucos, aprendeu a controlar seu flanar. Adquiriu um jeito delicado de ser menina, se sabia especial. Incorporada à lista das pessoas que existem para todo o universo, povoou enciclopédias e dicionários. Levitar era agora ação cientificamente comprovada.
Doce, queria compartilhar o dom com os amigos, a família. Sua dor era não poder segurar firme as mãos de sua mãe e levá-la para um passeio, um sobrevôo, em qualquer domingo de sol ameno. Às vezes atordoada com sua condição de pluma, deixava o sorriso guardado no bolso e parecia que era outono. O ar, em movimento, assoviava baixinho e Júlia, com sua fita rosa-chá, atava-se a uma raiz qualquer. Fechava os olhos e se deixava levar – pelo vento.
Fez-se linda mulher. Dessas exóticas, muito brancas e com um rosto saído do sonho, quase lembrança. Preenchia o mundo de dúvidas e uma beleza ingênua, lúdica. Representava um pouco de magia, ali, em meio aos carros, edifícios, cabos, luzes azuladas. Mas Júlia foi percebendo que não queria ser assim tão atípica.
Gostaria de correr na areia quente, com os pés afundando gostoso, assim como todo mundo. Queria sentir cócegas, pisando pedrinhas roliças. Gastar as solas do tênis, ser dona de uma meia furada. E até ser surpreendida por uma farpa sorrateira, só para fazer charme e pular de uma perna só. Na verdade, sonhava era em não ser notada, em não ser a-menina-que-flutuava, dito assim, como se fosse uma entidade, ou a senhora de alguma coisa.
Então um dia, do topo de sua cama macia, tomou uma decisão: andaria com seus próprios pés. Tocou o chão com receio, sentiu um calafrio. Deu um passo cambaleante e sofria. Era como se puxada por uma gravidade invertida, mas insistiu. Caminhou alguns quarteirões, descalça, queria perceber as texturas das ruas, calçadas, carpetes. Júlia, contudo, era só incômodo.
Aquilo não daria certo. Triste, respirou fundo e, mais uma vez, deixou-se levar, desta vez, pela sua própria vontade. Seus pés, claro, não suportavam os caminhos e ela inteira não seria capaz de compreendê-los, nem mesmo dali, do alto. Soltou sua fitinha num gesto manso e observou-a rodopiar até encontrar o solo.
E voou, para longe, para o nunca-mais-voltar.