Doçuras e picardias da vovó
Doze de outubro de 2007. Iniciava o plantão quando soube que minha avó materna, Maria Andrelina da Conceição, falecera. Em Imperatriz, no Maranhão. Completou 86 anos em 20 de setembro. Nascemos no mesmo dia. Tivemos uma vida de muita intimidade: sou a
Publicado 22/10/2007 16:37
Decidida que não queria vê-la morta, e com um plantão para tocar nas 12 horas seguintes, engoli as lágrimas. Na mente, aos borbotões, cenas de nossas vidas juntas… Foi um dia com gosto de lágrimas… Era nítida a primeira vez em que saí de casa, para nunca mais voltar, aos dez anos, quando fui estudar em Colinas.
Arrastou-me para o quarto, onde retirou do sutiã um bolo de dinheiro: “Pega um dinheirinho…” Retruquei: “Mas o pai velho já deu o dinheiro de levar…” Num largo sorriso, ela foi definitiva: “É o dele. Pras despesas graúdas. Aqui é o meu. Pras tuas coisinhas; uma merenda; e pagar uma mulher pra lavar e passar tua roupa…” Não era pouco dinheiro.
Vovó era arteira pra ganhar dinheiro. Possuía uma padaria, seu próprio dinheiro. Até emprestava pro pai velho quando o dele andava “vasqueiro” (escasso, difícil). Se demorava a pagar, ela dizia: “Bota em teu avô pra me pagar logo. Se não, nada posso comprar pra ti”. O “nada” eram roupas de seda, musseline, organdi… “Coisas” de ouro, que ela a-do-ra-va.
Usava sempre, mesmo em casa, um bom brinco de ouro com uns brilhantezinhos. Havia um joalheiro ambulante que a primeira casa em que ia ao chegar à cidade era a nossa. Ela separava as jóias do seu agrado, mostrava pro meu avô e só depois fechava o negócio. “Braulino, olha as jóias. As que vou comprar; as que tu vais me dar e as da Fátima”.
Jamais meu avô disse não. Às vezes, dizia: “Maria, olha o dia de amanhã. Tu gasta demais, mulher. Estou apertado”. Pagava. Como não? Ela até emprestava do dinheiro dela pra ele pagar as jóias que ela dizia que ele estava dando pra ela! Perdi a conta do tanto que tive de cordões, pulseiras e anéis de ouro, de pérola, de prata… Ela me vestia como se eu fosse uma boneca. Na adolescência, vivi às turras com ela pra poder usar sandálias franciscana, calça Lee e camiseta branca, para ela “umas roupinhas chués, chués” (pobres…).
Era firme, uma matriarca assumida, porém prosista de marca maior (contadeira de causos “cabeludos”). Uma doce lembrança é sua alegria num Dia das Mães em que a presenteei com argolas de ouro e brilhantes. Na maior picardia, cravou: “Mulher, tem certeza que é ouro? As pedrinhas são diamantes? Vou usar. Se não for, tu vais ver”…
Dizia que, mesmo antes de ser uma “pessoa de condição”, nas orelhas dela só brincos de ouro. Ou de ouro, ou nada! Odiava bijuteria. A vida inteira, quando me via sem brincos, ou com bijuterias, dizia que eu matava qualquer mãe de desgosto.
Um dia, resolvi beber uma pinga. Ela, hor-ro-ri-za-da: “Virge Maria, ela aprendeu até a beber cachaça! Cem filha que eu tivesse nunca ia mais sair de casa pro mundo. Só aprendem o que não presta! Mulher, onde tu aprendeu a beber cachaça? Olha que tu não puxe à Custódia” – prima dela, boa de gole, que eternizei em “As cachaças de Minas” ( O TEMPO, 17.3.2004).
Vasculhei o computador em busca do que já escrevi sobre suas tiradas espirituosas e ensinamentos – uma forma de tê-la comigo foi eternizá- la no que mais amo fazer: escrever. Num lampejo, entendi: você me mandou pra cá, vovó! Nos vários gestos de dar um dinheirinho pras minhas coisinhas, sempre que eu voltava pra escola. Foi doce recordar cada vez que íamos pro quarto. Vovó vive no encantamento que tenho por ela. Ela virou uma encantada. No meu peito, em minha mente, pois eu falo “sawabona” (“Eu te respeito, eu te valorizo, és importante para mim”) e ela responde: “shinkoba” (“Então, eu existo para ti”)!
Nota
texto originalmente publicado em www.mhariolincoln.jor.br/index.php?itemid=3755