“Encontro ao Acaso”: Mulher sem torre de vidro
Situação da mulher atual, sem retoques, é tema do filme de estréia da norte-americana Joey Lauren Adams.
Publicado 16/11/2007 19:41
Há todo momento em “Encontro ao Acaso” percebe-se o esforço da diretora-roteirista, Joey Lauren Adams, em manter seu filme sob controle para que ele não resvale para o sentimentalismo, a pieguice e a complacência tão comuns a obras que tratam da condição da mulher, no pós-feminismo. Elas são, normalmente, tratadas como coitadas ou, na maioria das vezes, como seres raivosos e dados a uma discurseira sem fim, terminando por não cumprir seus objetivos. Lauren Adams, com diálogos inteligentes, rápidos e bem colocados; faz Lucy Fowley (Ashley Judd), administradora de construção civil, se equilibrar numa vida sem muitas perspectivas no interior dos Estados Unidos. Numa cidade de poucos atrativos, ela passa seu tempo no trabalho, no bar onde bebe e joga sinuca e na casa que divide com a amiga Kim (Laura Propon).
Sua relação com os homens não resvala para os comentários maledicentes tão comuns nesses ambientes. Ela está ali, de igual para igual, desfrutando o que a noite, após um dia árduo de trabalho, lhe oferece. Na maioria das vezes é uma companhia ou uma troca de insultos e tapas com uma desafeta. E, a exemplo dos homens, ela não leva desaforo para casa, mesmo que saia com a face arranhada. Noutras circunstâncias, a câmera deslizaria pelo bar, mostraria os olhares cobiçosos dos machos sobre seu corpo e ela acabaria vítima de uma cantada. Nada disso, ocorre em “Encontro ao Acaso”. Eles a tratam como igual. Está ali por ser o lugar que freqüenta, como outras mulheres o fazem. Cada um cuida de si.
O bar, a bebida, o jogo e a troca de amabilidades entre ela e os demais freqüentadores é comum. Menos por um detalhe: seu comportamento esconde complexos e frustrações que ela busca manipular, sufocar em garrafas e garrafas de cerveja e goles e goles de uísque. Lucy, para suportar os males que Lauren Adams revela aos poucos, pula de cama em cama; de parceiro fugaz em parceiro fugaz; sempre ébria, cambaleante, trôpega. Ela mesma diz à sua amiga Kim:” não sei qual foi a última vez que transei sóbria com um homem”. Esta é a forma encontrada por ela para não ver direito o rosto do parceiro e o que faz; o sexo que não lhe dá mais prazer. Sempre encontra uma maneira de levantar antes dele, para não trocar uma palavra sequer com quem passou a noite.
Diretora não leva o filme ao melodrama
De forma econômica, Lauren Adams pega uma mulher, trabalhadora, e a coloca numa situação comum. É como sair de uma situação-limite e mergulhar numa vida menos atribulada. Não inventa fatos que levem o filme a grandes revelações. A vida de Lucy não se presta a grandes dramas. Tampouco ao melodrama. Como qualquer cidadã do interior, cuja juventude ficou para trás, ela vai levando. Esse vai levando torna-se, portanto, o centro do filme, abordado por Lauren Adams. Portando-se de igual por igual com os homens, ela não tem arrependimentos, não se liga a eles sentimentalmente, não precisa dar satisfação a ninguém por mais que Kim busque conversar com ela sobre sua última noite. É igual a tantas mulheres mundo afora. Vivem seus momentos históricos a seu modo.
Lucy entra e sai de camas e camas sem amabilidades. Em suas relações, assim, não entram carícias. Apenas sexo, puro sexo. Na noite seguinte, ela repete este ritual. Em momento algum, ela reclama, diz que gostaria de um companheiro permanente. Traduz bem o espírito destes anos pós-feministas: se o homem pode percorrer camas e espaço noturnos, a mulher também pode. E sem choramingas. “Encontros ao Caso” preserva, deste modo”, a linha inicial: de não ser um filme que começa com o personagem se comportando de uma maneira, para ele ir se modificando ao longo de sua trajetória. Lucy não muda. Sua vida segue linear, com raros desvios e muitas barreiras.
O que muda em sua vida é a forma como ela encara os fatos que vão aparecendo, sem grandes vôos. Dentre eles, sua relação conflituosa com o pai (Scott Wilson). Em parte, seu conflito é ditado pela forma ríspida com que ele a trata, não lhe dando a devida atenção. Mas Lauren Adams não se detém em pormenores freudianos para justificar as rugas entre ambos. Ela espera um sinal do pai, um compartilhar de sua intimidade, um carinho, no mínimo, nada disso acontece. Quando ela o procura, é porque seu equilíbrio foi rompido; ele, no entanto, não a deixa se aproximar. Ela então mergulha no lodo, até emergir novamente. Noutros instantes ela vai ao encontro da avó e da mãe, Nana (Diane Ladd) e nenhum consolo encontra.
Lucy encontra parceiro que a trata como igual
Elas também têm seus dramas e, por exemplo, a avó, depende dela para preservar suas ligações familiares. Como se vê um filme com uma dramaturgia sem enfeites, sem manipulações, sem maniqueísmo que, para a alegria de quem gosta de bom cinema, é muito agradável de se ver. Não só pelo tema em si: a mulher em sua liberdade de trabalho, de trânsito, vivência e de parceiros. Quando surge um companheiro diferente, como Cal Purcel (Jeffrey Donovan), ele não recebe a colhida esperada. Lucy mais o afasta, que abre espaço para as trocas amorosas. Pelo contrário, o desafia, quase o ignora. A delicadeza, às vezes parte dele, numa troca sutil, de aprendizado de parte a parte. Cal também sabe ser direto, ríspido, evasivo. Não a trata com dengo, mas como igual.
Às vezes, ele sofre uma recaída, como no momento em que almoçam na casa de Lucy e ele a pede para buscar uma cerveja. Ela busca, mas o repreende. Ele se desculpa. Neste momento, entende-se para onde Lauren Adams pretende levar seu filme. As relações entre gêneros devem ser mantidas num elevado nível; de respeito mútuo. A divisão de tarefa, ditada pela submissão, deve ser suprimida. Há, porém, um instante em que o jogo deve ceder espaço ao revelar-se, à redenção. Lucy joga duro e, em determinado instante, quer manipular, e sofre por isto. Por vezes tenta demover Cal de sua posição, ele, no entanto, continua distante, indiferente.
Seria como se Lauren Adams dissesse: há um limite para o jogo, para o não se revelar. Quando, enfim, Lucy o faz, Cal já sedimentou sua visão transversa sobre ela. Ambos, para chegarem ao entendimento, precisariam demover suas respectivas carcaças para, então, poderem conviver sem atropelos. Da forma como ela agiu, seria difícil tê-lo de volta. Este é, entretanto, o próprio jogo da vida, nos adverte Lauren Adams. Lucy o percebe. Reage de uma forma incomum para os antigos padrões, não para os de hoje. Existem muitas combinações a serem feitas enquanto a vida continua. Ela tem o outro lado de seu cotidiano, o da construtora, onde exercita sua condição de trabalhadora que lhe dá liberdade para transitar por espaços antes reservados apenas ao homem.
Trabalho liberta Lucy da histórica submissão
Num diálogo inicial com Cal, essa sua condição se revela, sem maiores atropelos. Ele lhe pergunta o que faz; ela responde: trabalho em construção. Noutras circunstâncias causaria espanto, seria algo anormal. Hoje se trata de uma escolha. Talvez uma aptidão. Nesses instantes se compreende o quanto às relações de gênero e de trabalho mudaram nas últimas décadas. A divisão de tarefas domésticas entre homens e mulheres cedeu lugar à divisão de trabalho na produção. A condição feminina permanece, não mais de submissão, mas como relação de gênero, entre homem e mulher. Isso transparece numa seqüência simples, sem alarde. Seu chefe, Owen (Stacy Keach), discute com ela seus planos, a possibilidade de abandonar o negócio, e lhe faz uma proposta. Nenhuma fragilidade de sua condição feminina se denota na conversa entre ambos. São iguais, tratando ali de negócios.
Com “Encontros ao Acaso”, Lauren Adams, atriz de “Procura-se Amy”, faz sua estréia em longa-metragem, mostrando sem rebuscamento a condição da mulher no pós-feminismo. Nada de fragilidades, de resmungos, de clima de coitadinha. Tem, para isto, a ajuda da atriz Ashley Judd, vista em filmes policiais e de suspense, raramente tendo a oportunidade de dimensionar sua condição de intérprete. Lauren Adams a filma direta, sem retoques. Retira-lhe a áurea de estrela. Torna-a uma mulher comum. Destas que não se importam com marcas no rosto, olheiras, cabelos desgrenhados, roupas do cotidiano: camiseta, blusa, calças jeans. Enfim, sem glamour algum. Poucas atrizes; salvo quando engajadas, se prestam a este tipo de papel. Ela, não, transita pelos espaços da personagem, sem perder a sensualidade, ainda que de maneira rude e atarantada.
Lucy, no fundo, quer uma chance de mostrar-se à altura do pai que um dia jogou pela janela uma boa oportunidade de brilhar no mundo do rock e não o fez. Ela não quer muito, só um pouco de atenção dele. A mesma que não dedica aos homens que encontra no bar e com eles sai. Uma forma de vingança, num mundo em que a igualdade não deve ser medida pela capacidade de disputar quem permanece de pé, depois de entornar várias cerejas. Ela percebe isto muito tarde. Sua liberdade tem um preço difícil de pagar, sem deixar profundas rugas e feridas interiores. Talvez seja esta também a crítica de Lauren Adams. É preciso endurecer, como dizia Guevara, mas sem perder a ternura jamais. Com Lucy ocorreu o contrário, ela endureceu e jogou demais, quando entendeu, a oportunidade já se esvaíra de suas mãos. Uma advertência a se considerar. E um belo filme, para se ver e discutir.
“Encontro ao Acaso” (Come Early Morning). Drama. EUA, 2006, 97 minutos. Roteiro/direção: Joey Lauren Adams. Elenco: Ashley Judd, Jeffrey Donovan, Scott Wilson, Stacy Keach, Laura Propen.