“Armênia”: Descoberta de um país

Diretor francês Robert Guédiguian usa a busca da médica Ana para traçar o perfil da Armênia, jovem nação que integrou à ex-União Soviética

Há pretexto de estruturar os contratempos enfrentados pela cardiologista franco-armênia, Ana (Ariane Ascaride), ao tentar localizar seu pai em Erevan, Armênia, o cineasta francês Robert Guédiguian traça um perfil deste jovem país, da Europa Oriental. Nesta procura, ela encontra pela frente diversos personagens que sintetizam a história em construção desta ex-República da URSS, independente desde 23 de agosto de 1990. Dentre eles, o general, Yervanth (Gérard Meylan), pai da pátria, que decide privadamente o que caberia ao Estado Democrático. Em uma das reuniões, ela o assiste decidir se um empresário deveria ou não explorar certo ramo econômico. E, também, a orientar como sobreviver no cipoal que se tornou o país, ainda em formação. “Armênia”, o filme, é assim uma obra em aberto, pois a ação, embora centrada em Ana, sai em evoluções mostrando as barreiras a serem superadas.


 


 


Uma delas é permitir que o capitalismo avance, sem enveredar para o crime organizado e o monopólio de ramos estratégicos para a nação. Ele, o capitalismo, é personificado por Sarkis (Simon Abkarian), turco, que explora os negócios farmacêuticos na Armênia e não conta com a simpatia do general. Os dois andam sempre às turras, com Sarkis esbravejando contra a forma como a economia caminha. Culpa os comunistas pelos problemas por ele enfrentados, quando quer apenas estruturar seus negócios à sua vontade. É um personagem cheio de nuances, ciente de seu poder e da necessidade de sobreviver em meio às regras não muito claras, estabelecidas pelo general. Está sempre disposto a ceder, desde que seus interesses sejam resguardados. Robert Guédigian, ao estruturá-lo desta forma, denuncia uma das faces do capitalismo moderno: oscila sempre entre a legalidade e o contrabando, quando não está diretamente vinculado ao crime organizado.


 


 


Língua, embora barreira, revela a Armênia à Ana


 


 


Sarkis, feito pelo ator Simon Abkarian, com largos bigodes e o olhar incisivo, age nas sombras. Ana, que chega a Erevan guiada por ele, escuta suas diatribes contra os comunistas e nada responde; dele espera apenas que a leve até seu pai, Barsan (Marcel Bluwal). Mal sabe que para chegar até ele terá uma epopéia pela frente. A primeira barreira que enfrenta é a língua, numa cidade de construções milenares, cheia de sonhos e desencontros. Através dela, porém, irá se descobrindo, vendo suas origens, pois seu pai, nascido no país, a ele retornou por motivos ainda ignorados. De indagação em indagação, enquanto espera por Sarkis, para levá-la a seu destino, passeia pela cidade, num veículo velho, dirigido por um motorista que tenta superar a barreira da língua indicando-lhes, por gestos, os caminhos, as construções e a comida. Mas principalmente o símbolo da independência total, ainda buscada: o monte Ararat.


 


 


O Ararat é mais que uma montanha de cume gelado, representa a separação umbilical que ainda liga a Armênia à Turquia. O motorista sonha com o dia em que ele, o Ararat, finalmente, poderá ser o cartão postal da Armênia, o mesmo que simboliza o Monte Fuji para o Japão. Este anseio então indica que muita luta está por vir, numa forma de reparação ao massacre sofrido pelos armênios, quando estavam sob o jugo turco no início do século XX. E mais de um milhão de armênios foram assassinados. O cineasta canadense, Aton Egoyan, de origem armênia como Robert Guédiguian, contou esta história em seu filme “Ararat”, e o escritor Orhan Pamúk, Prêmio Nobel 2006, foi obrigado a se refugiar nos Estados Unidos por ter feito o mesmo. Guédiguian prefere referir-se ao fato indiretamente ao mencionar apenas o Ararat, indicando, através do velho motorista que a independência do país será completa somente quando os armênios puderem olhar para o Ararat e o saber integrante de seu país.


 


       


Ana descobre suas raízes armênias na viagem


 


 


O anseio de liberdade, de conquistas, de afirmação, permeia todo o filme. Na galeria de personagens que surgem no caminho de Ana, enquanto ela aguarda Sarkis ou tenta por conta própria descobrir o paradeiro do pai, há sempre um que a faz descobrir recantos de Erevan e, por que não, de si mesma. A viagem é não só a procura do pai, mas também a descoberta de suas raízes. Francesa, médica, militante comunista, ela desconhece suas origens, não sabe de onde veio. Ao estar na Armênia mergulha na história de um povo disposto a ir em frente. Numa de suas andanças encontra Scharké (Chorik Grigorian), a jovem que se divide entre o salão de cabeleireiro, o sustento à família e a atividades pouco recomendáveis. Scharké, a exemplo de outras jovens armênias, sonha com uma vida melhor, de preferência na França. Ana não diz que sim ou que não; vê na garota mais uma das possíveis imigrantes que se tornará vítima da propaganda sistemática do Primeiro Mundo sobre os jovens dos países em desenvolvimento.


 


 


Com Scharké, Guédiguian fecha o núcleo de personagens de seu filme. Todas as classes estão nele representadas. Scharké é o proletariado moderno, sem perspectivas de encontrar um emprego permanente e por isto se vira em bicos e atividades pouco dignas para uma jovem como ela. Ana vai defrontar-se com esta realidade ao percorrer com Sarkis vários recantos de Erevan, capital da Armânia. De repente, a jovem que está diante dela é alguém que conhece, e que, depois, a ela vai se explicar. Nenhuma elucidação deve haver para a jovem, num país de 3.300 milhões de habitantes, cuja economia se fragmenta entre produção de frutas e algodão e a indústria química, metalúrgica e alimentícia. E não gera as oportunidades suficientes para que ela, Scharké, como para a maioria dos jovens de seu país, possa nele permanecer.


 


 


Diretor mescla vários gêneros em seu filme


 


 


Ponto de fusão das várias ações do filme, Scharké também é seu elo mais fraco. Guédiguian ao unir os vários personagens, a partir da vida da jovem, retira a narrativa do campo da busca, da descoberta e a leva para o lado policial, com Ana se transformando numa heroína. Principalmente, quando ela revela seus dotes de atiradora, sem dúvida, fruto de sua militância em Marselha, França, onde vive. Ela emerge, deste modo, não como alguém frágil, aberta ao desconhecido, mas como um clichê de filme americano, que combate a seu modo o crime organizado. Uma ação que a colocará sob a proteção do general Yervanth que a vê, a partir daí, como uma das suas. Ele a levará então para outro cenário, outra vertente da história do país em construção, ligando seu presente ao passado, exemplificando que um não será possível sem o outro. Uma forma também de ligar Scharké, a esta historia, levando-a a assumir responsabilidades para consigo própria e a Armênia, fato ainda não claro para a jovem. 


 


 


Uma reviravolta e tanto para quem antes estava mais interessada em imigrar para outro país. Diversos ensinamentos e um treinamento militar contribuem para esta transformação. Esta, no entanto, se completará apenas quando Scharké se confrontar com a sua realidade. Uma realidade para a qual, de novo, não se atentava. Enquanto Ana se descobre, vinda de fora, com Scharké se passa diferente. Ela vai, aos poucos, se dando conta de seu papel, enquanto agente da história. Desta maneira, Guédiguian funde vários gêneros: o policial, com Ana, mostrando sua maestria como atiradora, o drama existencial, com Scharké, fazendo seu rito de passagem enquanto agente da história, e o drama político através da construção do país. Às vezes, eles se fundem, noutras vão em zig-zague, longe de sua obra-prima: “A Cidade Está Tranqüila”: 


 


 


“A Cidade Está Tranqüila” denuncia mal-estar social


 


 


Neste, uma mãe descobre que a filha a rouba para bancar seu vício em cocaína, tenta ajudá-la a superar o vício, mas quando percebe que é impossível recuperá-la, ela mesma passa a comprar-lhe a droga. No final, ao perceber que a jovem passa a depender dela e da droga, a mata. Chocante, porém verdadeiro e real. Em “Armênia”, o caminho encontrado para Scharké é a incorporação política e o amor, portanto uma saída amena para uma situação da qual ela dificilmente sairia sozinha. Guédiguian usa um artifício para levá-la à integração à luta pela construção de seu país. Poderia tê-lo feito sem usar truques costumeiros de filme policial americano. Bastava retirá-la sorrateiramente das garras do crime organizado, portanto da vingança de Sarkis. As negociações do general com Sarkis ocorreriam da mesma forma, uma vez que ele, o militar, também atua na área farmacêutica. Guédiguian, no entanto, preferiu mostrar as habilidades de Ana com uma arma na mão.


 


 


Embora reforce a identidade de Ana como militante revolucionária, comunista, faz o espectador entender que ela ficará na Armênia para contribuir para a edificação do país. O que não é verdade. As buscas incisivas do pai, pulando de lugar em lugar, irão  reforçar o percurso de uma vida, desconhecida por ela própria. O homem descoberto em fotos; é lhe estranho. Poderia ser qualquer um, menos seu pai. A conversa entre ambos reforça esse mistério e também leva o filme a outro estágio. O da ligação de seu pai com a Armênia, diferente do homem que ela conhecia. E o que ela procurava, diz Guédiguian, não é o pai. A resposta pode ser encontrada num tipo de luta que ele, o diretor, diz para o espectador: está no engajamento pela transformação da sociedade e no mergulho em si mesmo. Uma chave que Guédiguian demora entregar.  Salvo pelos furos já citados, um bom filme de se ver, porém sem a contundência de “A Cidade Está Está Tranquila”, que surpreende pela coragem e abordagem inusitada.


 


 


“Armênia” (“Lê Voyage em Arménie”). Drama. França. 2006. 125 minutos. Roteiro: Ariane Ascaride, Marie Desplechin e Robert Guédiguian. Direção: Robert Guédiguian. Elenco: Ariane Ascaride, Gérard Meylan, Marcel Bluwa, Chorik Grigorian, Simon Abkarian.

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