Boto fé no Machado
Suspendo o recesso que me havia imposto nesta coluna durante o período eleitoral. O motivo é nobre, todos hão de concordar: Para marcar o centenário da morte do escritor Machado de Assis, a Caixa Econômica Federal lançou um bilhete da extração da Loteria
Publicado 26/09/2008 19:38
Jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, Machado de Assis nasceu no Rio, em 21 de junho de 1839, cidade onde viveu (dizem que poucas vezes viajou) até falecer, em 29 de setembro de 1908. Mulato, autodidata, é um dos nossos maiores – se não o maior – escritores. Assim como o seu personagem Brás Cubas, não deixou herdeiros, nem na vida, nem na literatura. Mas tem inúmeros admiradores.
Seu último conto, publicado originalmente em Almanaque Brasileiro Garnier, em 1906, foi O escrivão Coimbra. Foi um motivo a mais para eu comprar o bilhete. Veja como começa:
“Aparentemente há poucos espetáculos tão melancólicos como um ancião comprando um bilhete de loteria. Bem considerado, é alegre; essa persistência em crer, quando tudo se ajusta ao descrer, mostra que a pessoa é ainda forte e moça. Que os dias passem e com eles os bilhetes brancos, pouco importa; o ancião estende os dedos para escolher o número que há de dar a sorte grande amanhã — ou depois — um dia, enfim, porque todas as coisas podem falhar neste mundo, menos a sorte grande a quem compra um bilhete com fé”.
Já um tanto sorumbático, nesse conto o autor fala também da fé e da esperança (“Uma coisa não vai sem outra. Não confundas a fé na Fortuna com a fé religiosa”).
Mas a ironia machadiana é mais marcante do que registra esse conto – também ele irônico. Exemplo é este episódio que ele registrou numa crônica e também no Quincas Borba:
“Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona — um triste molambo de mulher — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
— É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
— Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?”
Conta-se que, no seu leito de morte, Machado não aceitou a presença de um padre que lhe tomasse a confissão, para não parecer hipócrita. “A vida é boa!’, teriam sido suas últimas palavras.
O nosso autor é respeitado em vários países. “Achei Machado espirituoso, dono de uma perspectiva sofisticada e contemporânea, o que é incomum, já que o livro” (ele se refere ao Memórias Póstumas de Brás Cubas) “foi escrito há tantos anos. Alguns dirião: ele é cínico. Eu diria que Machado é realista”, opinou Woody Allen. O crítico Harold Bloom, o considerou o maior escritor afro-descendente de todos os tempos.
Sem os ranços escolares, leia Machado de Assis! Nestes tempos de eleição, dois contos em particular – A Sereníssima República (sobre o processo eleitoral) e Teoria do Medalhão (sobre um certo “jeitinho brasileiro” de vencer na vida). Estão muito bem editados em http://www2.uol.com.br/machadodeassis/fim.html
Aliás, toda a obra de Machado pode ser acessada em www.dominiopublico.gov.br
De volta ao começo: Comprei o bilhete. Se der branco, fiquei com uns marcadores de livro. Terá utilidade. Mas tenho fé na Fortuna. Se ganhar, mudo meu credo: Só Machado de Assis é fiel!
Meu bilhete tem o número… É melhor não dizer. Dá de eu ganhar e minha casa vai ficar repleta de amigos que nunca vi, para cumprimentar-me e pedir algum emprestado…