“Nossa vida não cabe num opala”: espelho da megalópole
Com estrutura de “grafic novel”, filme do brasileiro Reinaldo Pinheiro move-se no submundo dos puxadores de carro para mostrar a sordidez da megalópole
Publicado 14/11/2008 20:47
Dominado pela esquisitice geral, que vai da história aos personagens, o filme “Nossa Vida Não Cabe Num Opala”, do brasileiro Reinaldo Pinheiro, no entanto, atrai o espectador aos poucos, como se lhe desse tempo para se adaptar ao que vê na tela. Pega-o pelo estômago e se estende às situações e linguagem inusitadas. Não lhe permite absorver seu desenrolar desde o início, pois as situações vão sendo criadas segundo uma lógica interna. Esta se desenvolve de forma adversa ao que acostumou a ver ultimamente no cinema. Os cortes rápidos, os diálogos curtos e a urgência de pôr na tela tudo o que pode estabelecer empatia entre ele, espectador, e o filme, exigirão dele buscas que terminarão por estabelecer nexo entre vários gêneros cinematográficos e a “grafic novel”. Quando isto acontece, ele pode, enfim, se deliciar com o jogo proposto pelo diretor Pinheiro, o roteirista Di Moretti e o dramaturgo Mário Bartolotto, autor da peça “Nossa Vida Não Vale um Chevrolet”, em que ele se baseia. Então, terá surpresas atrás de surpresas.
Esta tentativa de criar uma linguagem próxima da “gráfic novel” termina por ser o grande achado de “Nossa Vida Não Cabe Num Opala”. A surpresa começa logo pela abertura, quando cores fortes matizam a ação vista na tela. Ele serpenteia por espaços gráficos da megalópole São Paulo, dominando o ambiente, como a anunciar o jogo que se desenrolará a partir daí. Ela, no entanto, não será personagem, os ambientes sórdidos, sim. Estes, porém, serão vistos sempre pela metade: o canto da sala da casa dos Castilhos, o lado da mesa do chefão do crime, Gomes (Jonas Bloch), o quarto da “beata”, solitária, Silvia (Maria Luíza Mendonça), o banco da frente dos Opalas roubados pela família Castilho: Lupa (Milhen Cortez), Monk (Leonardo Medeiros) e Slide (Gabriel Pinheiro). Eles se movem nestes espaços, jogando seus dilemas uns sobre os outros, usando uma linguagem não menos que chula.
Filme usa estrutura de “grafic novel”
Como na “grafic novel” são mostrados sempre pelo lado grotesco, abjeto. Não procurando ser simpáticos, eles são mais estereótipos de marginais, com vida e iniciativas próprias do que seres humanos, dispostos a escapar às armadilhas em que foram colocados por sua posição social. O nexo de que podem sair dessa camisa de força é feito pelo fantasma do velho Castilho, sempre a questionar a posição adotada pelos filhos, que o acusam de tudo que lhes vêm à mente. O contraponto real, entretanto, é dado pelo chefão do crime, Gomes, receptador de carro roubado, embusteiro e arrumador de lutas de boxes e, principalmente, obstinado pela jovem pianista Magali Castilho (Maria Manuela). É ele que os situa socialmente: são a escória de uma estrutura que não lhes permite elevar-se acima do lodaçal onde vivem.
Estão sempre a cobrar uns dos outros, mas acabam por defrontar-se com a escravidão em que são mantidos por ele. Os Castilhos ainda que matizados enquanto estereótipos possuem estrutura psicológica própria. Lupa (Luiz Paulo) troveja palavrões aos borbotões, seguidos de gestos descoordenados, que acabam por mostrá-lo como um ser imaturo, à procura de proteção. Silvia o desnuda ao estar com ele em sua sala, oferecendo-lhe vinho, enquanto desnovela sua vida. Ela quer saber o que ele faz, ele diz o que faz sem muita enrolação, mas Silvia não entende: “Eu puxo carro… Há, eu roubo carro…”, revela tal uma criança em sua “inocência”.
Família Castilho vive mergulhada no crime
Diferente de Monk, sofisticado, metido a intelectual, tentando estar acima dos irmãos. Tenta passar a idéia de não pertencer àquele mundo, refugiando-se na imagem do genial pianista de jazz estadunidense, Thelonious Monk (1917/1982). O espaço onde se move diferencia pouco do que abriga Lupa. Pode ser o bar onde joga sinuca, o depósito de carros velhos, as ruas parcamente iluminadas e a sala de sua casa tomada pelas sombras. Está, por outro lado, condizente com o clima de “filme noir”. As sombras, a forte cor, as nuances da ação, a falta de perspectivas o aprisionam mais do que a Lupa, cuja consciência de sua situação é quase nula. Destoa deles, a irmã Magali envolvida por Gomes e o trabalho onde é obrigada a tocar tolas músicas, sonhando estar numa sala de concerto. Ela é o contraponto noir, da mulher que incita o desejo de quem a fará decair ainda mais. Procura manter-se distante dessa sordidez, embora esteja chafurdada nela até o pescoço.
Não muito distante deles está Gabriel, jovem de 16 anos, skatista, que, a exemplo dos irmãos, pretende ser “puxador de carro”. E o confessa ao estar com Silvia. Diz estar numa grande jogada, mas o pai já o alertara: “Estude para você virar bandido”. Também ele não se ergue muito do lodaçal. Está preso a ele pelos laços de família, pela falta de perspectiva e, principalmente, pela falta de vontade de olhar pela janela. Gabriel, seus irmãos, Silvia e Gomes estão presos naqueles quadrinhos que delimitam o espaço de ação da “grafic novel”. Pinheiro, Moretti e Bartolotto procuram, no entanto, retirá-los desta estrutura. Notadamente, no terço final do filme, quando o espectador já absorveu sua intenção. Toda ela ganha sentido. Cada um dos irmãos termina por impor sua psicologia e ganha individualidade. Só vilão preserva sua malignidade.
Armadilhas da megalópole predominam no filme
Quando todas as tendências montadas ao longo de “Nossa Vida Não Cabe Num Opala” ganham corpo, volta-se ao cinema propriamente dito. Os personagens tendem a agir enquanto seres humanos em meio à sordidez. Monk encontra uma forma de fazer Gabriel fugir à armadilha montada por Gomes, enquanto Magali cumpre seu caminho de pedras. Estes dois personagens, em meio ao lodaçal, por mais que chafurdem obtém contornos humanos, de construção de identidade. Pessimista, o filme tem muito da megalópole, com suas estruturas que mantém um vasto segmento no pântano, em benefício de outro segmento que dele se apropria. Gomes o representa. Não dá para esquecer os liames entre polícia e crime organizado. Tampouco esquecer que para outra camada preservar seu poder e status, Gomes e Castilhos precisam continuar no limite do esgoto.
Talvez por isto o público não tenha acorrido em massa para assistir a “Nossa Vida Não Cabe Num Opala”. Sua proposta longe de ser de vanguarda é obrigá-lo a elevar-se um pouco, um pouquinho só, do lugar comum das novelas e dos filmes de puro entretenimento. Nestes tempos de crash financeiro, a tendência à reflexão anda, salvo as exceções de praxe, no mesmo nível. Não custa nada receber um choque de realidade para escapar à lobotomia midiática cotidiana. Na segunda-feira, dia 10, na sessão das 16h20, isto parecia longe de acontecer. Havia apenas este resenhador na platéia. E permaneceu assim durante os 104 minutos que dura o filme. Só comédia; como dizem as pesquisas, não alimentam uma cinematografia. Ou talvez seja isto mesmo, o público, diante da aridez dos tempos atuais, procure puro escapismo?
“Nossa Vida Não Cabe Num Opala”. Drama/Policial. Brasil. 2007. 104 minutos. Roteiro: Di Moretti, baseado na peça “Nossa Vida Não Vale um Chevrolet”, de Mário Bartolotto. Direção: Reinaldo Pinheiro. Elenco: Leonardo Medeiros, Milhen Cortaz, Maria Manoella, Maria Luíza Mendonça, Jonas Bloch e Gabriel Pinheiro.
(*) Premiado nos Festivais: Cine Ceará e Cine PE.