“Meu irmão é filho único”: nós que lutávamos tanto

Com uma narrativa ágil, centrada na lutas políticas da juventude italiana nos anos 60 e 70, o diretor Danielle Luchetti relembra os conflitos entre comunistas e fascistas e a transformação de um deles em militante de esquerda.

O título “Meu Irmão É filho Único”, do italiano Danielle Luchetti, não sugere nem de longe que se trata de um filme sobre os conflitos políticos italianos dos anos 60 e 70. Sugere mais uma comédia de costumes, centrada no interior, mesclando paródia e desencontros amorosos, tão ao gosto de Pietro Germi, Mário Monicelli e, até mesmo, Vitório De Sica. Luchetti, no entanto, vale-se desses mestres para elaborar uma história em que o humor está sempre presente, mesmo que às custas das contradições político-sociais, enfrentadas nos irmãos Accio e Manrico. De família operária seguem caminhos políticos opostos, para desespero de seus pais. E, para não fugir à tendência daqueles anos, dividem-se entre esquerda e direita, optando, Accio pelo fascismo, e Manrico pelo comunismo. É através deles que Luchetti traça um painel das lutas ideológicas na Itália no tempo em que a opção política ditava o futuro da juventude. O que moldará sua personalidade, levando-os a trilhar caminhos que irão demarcar o comportamento de toda uma geração.


 


 


Luchetti estrutura a narrativa de forma a deixar clara as opções políticas de ambos. Accio (Elio Germano), internado num colégio católico, pretende ser padre, mas sua afoiteza, insistência e maus modos o impedem de seguir sob as asas da igreja. Ao contrário dos padres que tendem a fazer vistas grossas aos seus “pecados”, ele os critica por não puni-lo o suficiente. Seu radicalismo o levará ao fascismo, pelas mãos de Mário, único que o ouve, ainda que o ache por demais apressado. Num diálogo elucidativo sobre seu futuro como fascista, ele questiona Mário sobre o apego do povo ao Duce. “Mário, se o Duce era tão amado, por que o povo fez isto com ele?”, indaga diante do monumento erguido pelos fascistas na pequena Latina, cidade operária no interior da Itália. Mário culpa os estadunidenses por isto, “pois não se fossem eles; a história seria outra”.


 


 


                            


 


Opção de Accio mostra semente do fascismo atual


 


                            


Fica-se no campo das especulações. Menos para Accio, interessado em tornar-se um fascista de carteirinha, aos 16 anos. A família Benassi, principalmente seus pais, vê nisto sintomas de problemas psicológicos, de desajuste social. Manrico (Riccardo Scamarcio), porém, o desdenha, assim como a irmã, Violetta. Luchetti, pelo contrário, com a primeira parte da história centrada nele prenuncia, mesmo que de forma indireta, a gênese do fascismo atual na Itália, com a Liga do Norte integrando o governo Bellusconi, pela segunda vez. Diz que a falta de perspectiva para a juventude, ainda que da classe operária, leva-a a buscar algo adverso ao de sua família, para sedimentar seu caminho. Accio o fará ao longo de sua adolescência, tentando fixar-se como lingüista, para desespero do pai. O fascismo para ele se resume nos combates de rua com os militantes de esquerda e as reuniões com seus líderes, dentre eles Mário. Seus métodos vão se delineando, ao gosto do partido e da carência de rumo.


 


 


No final, o que predomina não é uma construção, uma alternativa política, simplesmente a violência. Ela termina por ser o objetivo a ser alcançado, por meio da eliminação pura e simples do inimigo: o militante de esquerda. Porém, procura se diferenciar dele ao afirmar que o fascismo não se organiza através de um partido, é, pelo contrário, um movimento. E tem por lema ser pela família, pela pátria, pela honra e pela idéia. Seus militantes não se movem nas sombras, estão nas ruas, nas casas e nas fábricas. Accio torna-se um deles, em meio aos conflitos político-ideológicos, mantendo, porém, suas ligações familiares. Não sem evitar  confrontos com Manrico, Violetta e os país. E têm-se, desta forma, um perfil do jovem fascista italiano dos anos 60 e 70, em contraponto ao militante comunista feito por Manrico. A ele cabe a segunda parte do filme. Luchetti o mostra sem o maniqueísmo tão comum no cinema dos últimos anos. Ou ele é apresentado como fanático, radical e frio (vide Pasha, interpretado por Tom Courtenay, em “Doutor Jivago”) ou idealista, sem traços emocionais. Em suma um robô bem ao gosto de Hollywood, como faz hoje com sérvios, croatas, russos, árabes e africanos (vide os últimos filmes de James Bond).


 


 


                             


Comunista de Luchetti é radical na ação, idealista na luta e capa de se apaixonar


 


 


O comunista de Luchetti é radical na ação, idealista na luta pelas transformações sociais e capaz de se apaixonar por Francesca (Diane Fleri). É, enfim, um ser humano capaz de olhar em volta e entender a necessidade de buscar a revolução, mesmo correndo todo tipo de risco. Manrico, além disso, é um ser humano cheio de contradições e erros. Às vezes despreza o irmão, Accio, noutras enxerga nele alguém a quem se deve proteger. Principalmente porque usam suas energias com idêntica contundência. Correm risco e pouco se dão por isto. No entanto, a militância de Manrico o faz se envolver na luta por melhores condições de trabalho na fábrica onde trabalha com o pai e na radicalização dos confrontos com os fascistas e os burgueses de sua cidade. Não leva uma vida de buscas individuais, de realização política sem objetivo, como o faz Accio. Há algo maior em sua militância, que se amplia quando encontra Francesca, filha de um engenheiro temporariamente trabalhando em Latina.


 


 


Francesca é o contraponto entre a hesitação de Accio e a militância de Manrico. Luchetti ao apresentá-la o faz da maneira a deixar claro que se trata de uma nova mulher, ciente de sua liberdade de gênero e de opção política de esquerda. Ainda que se apaixone por Manrico, mantém-se distante de suas ações, pois muitas vezes ele permanece distante dela. A cena em que ela revela a Accio sua gravidez e afirma estar disposta a levá-la adiante confirma a afirmação feminina da época: a opção por ter ou não a criança é dela. Accio que a vê, em princípio, como namorada do irmão, não esconde que a deseja. Os separam não só a tendência política dele, quanto sua retração diante de uma mulher que lhe escapa. Francesca é outro tipo de mulher, sabe que Manrico não ficará a seu lado, como os demais casais, por isto se resigna. Accio, por seu turno, terá outro tipo de iniciação amorosa. Mais arriscada, destoante do normal, porém condizente com os anos 60 e 70.


 


 


                       


 


Diretor avança nas características da militância dos anos 60 e 70


                       


 


Dá para perceber que Luchetti avançou por várias características da militância política daquelas décadas cruciais para a história da juventude. Seus personagens são dotados de iniciativas, ainda que equivocadas como as de Accio. Entretanto, eram rumos exigidos pelos conflitos e tendências da época. Notadamente, quando expõe as buscas de Francesca. Ela vive às voltas com os dois irmãos, enquanto tenta construir, com o filho, sua vida. A terceira parte do filme irá se debruçar nestas teias que se abrem para desvendar uma época. É a que mostra a escalada da violência de ambos os lados: dos fascistas e dos partidos de esquerda. Accio, em cujas ações a narrativa é centrada, desilude-se com os fascistas, passando a prestar atenção na vida dos pais e na militância do irmão. Um evento particular irá uni-los. A bela cena do concerto de violino da irmã, num ambiente fechado, que evoca os líderes da esquerda, de Stalin, Lênin a Mao, quebra o ritual ao executar “Hino à Alegria”, de Beethoven. A violência que vem a seguir os tornará, Accio e Manrico, outros a partir daí. E Accio ganhará mais com esta mudança, para felicidade do irmão.


 


 


Ao uni-los, Luchetti aponta a possibilidade de transformação de Accio, não pelo convencimento puro e simples, mas pela ação vazia dos fascistas. Sua falta de objetivo lhe fica clara. Sente a necessidade de ir para um tipo de luta mais consistente. Ele, porém, não é um animal político, não tem a ideologia no sangue. Ela lhe é introduzida pelos fatos, pela história. Precisa presenciar a radicalização da luta para a mutação se tornar profunda. Brilhante a seqüência em que Luchetti combina ações simultâneas: dos irmãos conversando no restaurante, dos fascistas (serão eles) chegando, de Manrico percebendo o perigo, enquanto Accio não se dá pelo que se passa; da chegada de Francesca e, por fim, da fuga desesperada de Manrico pelos fundos do restaurante. Conjugar ações simultâneas não é tarefa fácil, ainda que se possa montá-la na moviola. Porém, é preciso situar os personagens na ação para que a montagem seja eficiente e o espectador se veja nela envolvido emocionalmente. E Luchetti o faz.


 


 


Sementes plantadas nas décadas de 60 e 70 continuam a germinar


 


 


Guardadas as devidas proporções, lembra a seqüência da escadaria em “Encouraçado Potemkin”, articulada genialmente por Eisenstein. Puro cinema. Cada entrecho da ação combinados dão a dimensão da luta travada por Manrico. Indica o término de uma época e a urgência de continuá-la de outra forma. As hesitações de Accio acabam ali, no bar, olhando pela vidraça, enquanto Francesca sofre chocada do outro lado da rua. Implicava a luta naqueles anos de entregas iguais às de Manrico. Accio o compreende ao conduzir outra forma de resistência em que a ação torna-se mais coletiva. Seu rito de passagem, não deixa o ser, é feito, então, por meio do amadurecimento político-ideológico. Luchetti ainda se dá ao luxo de seduzir o espectador através de um recurso comum nos filmes que trata da luta revolucionário. A criança trazida pelo avô, simbolizando a continuidade de Manrico, o é também da possibilidade da luta.


 


 


Em “Os Companheiros”, Mário Monicelli põe o garoto entrando na fábrica, enquanto Mastroianni, líder comunista, organizador da resistência dos operários, embarca rumo à próxima etapa de luta. O pequeno Amadeo desconhece seu papel, cabe ao avô elucidá-lo. “Meu Irmão é Filho Único” encontra, desta forma, uma justificativa para seu título. Provoca ao longo de sua narrativa inúmeros risos, alguns pelo desnorteamento de Accio, outros pelo ridículo das atitudes dos padres e dos fascistas. Um riso amargo sem dúvida, porquanto seus atos levavam, sem dúvida, às trevas. Luchetti o provoca com uma narrativa ágil, pontuada pela envolvente trilha sonora de Francesco Piersante, que contribui para evocar o clima da época. Este se manifesta principalmente nas discussões entre Manrico e Accio, na urgência de fazer as mudanças e, principalmente, na possibilidade da paixão. Algo, no entanto, se perdeu entre aqueles anos e os atuais. E o vazio ainda não foi preenchido, nem o espaço recuperado.


 


 


A resposta ainda pode estar por chegar, ou, se preferir, deve ser evocada pelas ações daquelas décadas; ainda presentes nas relações sociais de hoje. Porque as sementes plantadas continuam a germinar, por mais que se diga em contrário, as contradições de classe persistem com mais contundência, haja vista as erupções provocadas pelo crash financeiro de Wall Street. Luchetti, com seu filme, produzido em 2007, pode, hoje, contribuir para se entender esta dialética entre a suspensão e a continuidade da luta por outras formas. Ainda mais quando remete a ação de Accio à militância da família, especialmente da  mãe (Ângela Finocchiaro), às voltas com o movimento pela moradia, iguais a tantas existentes no Brasil. Ele une a necessidade de continuar a luta de forma diversa, tendo no centro as carências reais do povo, à reflexão político-ideológica. E liga, assim, a luta popular à exigência das transformações político-sociais. Seu olhar para além da varanda do apartamento onde, finalmente, a vitória surge é reconfortante.


 


 



“Meu Irmão é Filho Único” (“Mio Fratello è Figlio Único”). Itália/França. 2007. 117 minutos. Música: Francesco Piersanti. Roteiro/história: Sandro Petraglia, Stefano Rulli, Danielle Luchetti.Direção: Danielle Luchetti. Elenco: Elio Germano, Riccardo Scamarcio, Ângela Finocchiaro, Luca Zingaretti, Diane Fleri.


 


(*)Prêmios David di Donatello de Melhor Ator (Elio Germano), roteiro, montagem e atriz coadjuvante (Ângela Finocchiaro).

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