“O Casamento de Raquel”: culpas que marcam
Jonatham Demme usa a culpa para analisar o comportamento da juventude atual, em filme em que o politicamente correto é a superfície de uma sociedade agonizante
Publicado 27/03/2009 18:36
O cinema do estadunidense Jonathan Demme trafega por vários gêneros, dentre eles o drama psicológico “O Silêncio dos Inocentes”, sobre o psiquiatra que devora seus pacientes. Mas seus filmes mais significativos são os que traçam, sem meias tintas, um certo Estados Unidos disposto a se desestruturar, cheio de culpas e medos. Em “De Caso com Máfia” é uma dona de casa que acaba se envolvendo com Máfia, em “Amada”, se permite utilizar do romance homônimo de Tony Morrisson, para recordar passagens não edificantes do tratamento dado às escravas, e até mesmo em “Filadélfia”, ainda que melodramático, a atmosfera gerada pela aids é de compaixão. Mas é em “O Casamento de Raquel” que ele consegue expor o avesso de uma sociedade que não mais teme mostrar suas entranhas. E usa para isto um enganoso politicamente correto. Ali estão estruturadas todas as supostas aquisições sociais das décadas de 80 e 90: do casamento inter-racial à convivência pacífica e respeitosa entre todos os povos: brancos, negros, amarelos, ou seja ricos, pobres ou nem tanto.
Esta reunião de contrários e diferentes se dá durante o casamento da Raquel do título, moça bem comportada e futura PHD em Psicologia, o que lhe garante o verniz de cientista e elevada posição de gênero. Numa mansão entre árvores e jardins, o pai Paul Buchman (Bill Irwin) faz as honras da casa, servindo pratos típicos aos convidados. O clima de harmonia traduz o sucesso da família, menos por dois fatos: Paul está casado com Carol (Anna Deavere Smith), sua segunda esposa, e tem uma segunda filha. Nenhuma novidade se esta não acumulasse todos os desencontros e frustrações da família, inclusive culpas desta época em que corpos e mentes são dilacerados pelas drogas. E cujas conseqüências refletem uma estrutura social de prazeres desmedidos e realizações políticas e econômicas de fachada, uma vez que desvendadas nada as sustenta, senão um infindável rol de peças publicitárias e o incessante bombardeio da mídia.
Sob o sucesso há sempre camadas de frustraçôes
Em suma, sob a camada reluzente de sucesso existem outras carcomidas por frustrações e medo, justamente do que gosta de tratar Jonathan Demme e tem a grata ajuda da roteirista Jenny Lumet, filha do grande Sidney Lumet (“Rede de Intrigas”, “O Homem do Prego”, “Um Dia de Cão”, “Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto”). Basta lembrar do marginal feito por Ray Liotta em “De Caso com a Máfia”, todo arrumadinho, mas um cafajeste, ou o genial psiquiatra Hannibal Lecter de “O Silêncio dos Inocentes”, porém, dado a assassinar e devorar partes de suas vítimas. Não é, portanto, a imagem de sucesso que mantém de pé as relações da família Buchman. Paul, bem relacionado, tenta ser bom pai, algo, no entanto, lhe escapa: o controle das reações da filha Kymmie, a Kym, cujas estripulias sob os efeitos de drogas e sedativos ultrapassam os danos causados a si própria. Logo na abertura do filme, Demme nos apresenta essa moça, bela, de olhar agressivo e ao mesmo tempo intrigante. Fuma; agarrada ao cigarro, como se tratasse de uma muleta da qual não pode se separar.
Kym (Anne Hathaway) está no centro para tratamento de drogados e deverá passar o fim de semana em casa para participar do casamento da irmã, Raquel. Um fato corriqueiro, não fosse a tendência da moça de ajustar contas com um passado, que inclui uma tragédia familiar. Tendências, aliás costumeira na dramaturgia estadunidense, em que há sempre alguém acertando conta com alguém, indo do drama ao western. Vicente Minelli o clarifica em “Deus Sabe Quanto Amei”, ao desnudar o comportamento da classe média do interior dos EUA e as razões mesquinhas do choque entre um escritor e seu irmão empresário, e David Fincher, no recente “O Curioso Caso de Benjamim Button”, mantem o foco com a filha cobrando da mãe, em seu leito de morte, verdades sobre sua paternidade. Isto para ficar em apenas dois exemplos. Demme, ajudado por Jenny Lumet, o faz de modo adverso. Há sempre um mal-estar, causado pela simples presença de Kym, desajeitada, insegura, à espreita de uma cobrança que pode vir a qualquer momento.
Kym usa seu caso para chamar atenção
Os outros, Paul, Raquel, Carol e a mãe, Abby, deslocam-se sobre uma tênue lâmina fatal: uma frase deslocada sua pode romper o frágil equilíbrio. Pode sair no momento errado, gerando mais desconforto. Ela mesma não se encaixa nos grupos que se formam ao longo do filme, cheio de momentos de revelação, de tentativas de parecer amigável, relaxado, disposto a contribuir para o sucesso da cerimônia de casamento. Durante as referências ao casal, Raquel (Rosemarie DeWitt) e Sidney (Tude Adebimpe), cada membro do grupo se desdobra para lembrar fatos edificantes deles, para sustentar a auto-estima geral. Kym, não, fala mais de si, recordando passagens de seu recente passado de dependente química. Provoca, com isto, o desdém da mãe, Abby, e o retraimento dos demais. Revela, com isto, uma tendência da sociedade atual de cobrar da juventude certo comportamento, quando ela está cheia de culpa, por encontrar uma estrutura que não a absorve, segundo seus termos. E não é só a culpa cristã, do pecado, mas do deslocamento social.
Kym é cria deste meio. Talvez seu pai, Paul, a entenda. Está sempre a cobrir os buracos feitos pela filha. E não são poucos. Enfileram-se em todos os lugares em que ela passa. Ela só consegue se entregar de fato na terapia de grupo, quando olhos e mentes se abrem para ouvi-la. Numa bela sequencia, acaba por se livrar do que a incomodava, sob os olhares atentos dos demais participantes do grupo. Uma cena em que a atriz Anne Hathaway se desliga de vez da imagem de atriz de filme-família, caminho iniciado por ela em “O Diabo Veste Prada”. A Kym feita por ela não é glamourosa, mas tem certa sofisticação. E dialoga com o grupo e emociona o espectador. Demme, aliás, deixa os atores brilharem, terem sua cena, e Hathaway tem várias. É espantosa sua capacidade de fazer do menos mais, com meias palavras, na conversa atrapalhada entre ela e seu ex-colega de recuperação, no salão de beleza, enquanto a irmã, Raquel, ouvia-os indignada. Foge ao estereótipo da cena que vai numa crescendo e permite à atriz/ao ator, jogar com as várias nuances da performance e da ação.
Lavagem de roupa suja surge em alta voltagem
Ali, não, há um curto instante para toda a gama de situações serem vividas e o espectador entender a gravidade do caso criado por ela. E que terá conseqüências ainda piores, elevando a temperatura e revelando seu caráter: não se trata apenas de alguém cheia de culpa, Kym sintetiza bem as dualidades do ser humano, colocado em posição de inferioridade. Toda a encenação ao seu redor, montada por seu pai, se desfaz. Ele acaba envolvido por Raquel num espaço de estreita manobra. O suficiente para vir à luz as diferenças entre as irmãs, causadas por inveja, irresponsabilidade, temor de não ser aceita pela família. Poderia, caso prosseguisse, terminar num acerto de contas ou num confronto físico; Demme e Lumet encontram uma saída inteligente, através de uma crucial revelação de Raquel. E abrem espaço para outros confrontos que se desdobram, numa sucessão de lavagem de roupa suja de alta voltagem. A ponto de chegar ao cara a cara entre Abby (Debra Winger) e Kym, com esta devolvendo à família, por meio da mãe, o que a fazia sofrer. Enfim, as entranhas dos Buchman estão purgando sob a aparência da prosperidade.
Esta aparência emerge da estrutura do filme e das relações de Paul, bonachão, alegre, solícito. Da primeira porque Demme reúne no mesmo espaço uma multiplicidade de culturas, vindas da Jamaica (Reggae), Brasil (Samba), Estados Unidos (Jazz e Rock), cujas origens remontam à África, e da segunda, devido à gama de amizades do anfitrião, para o casamento da filha com o afro-estadunidense Sidney Williams, nascido no Haway, não por coincidência terra de Barak Obama: chineses, japoneses, africanos, anglo-estadunidenses. Não apenas para aquele evento, em seu cotidiano, ele convive com afro-descendentes. Este universo dos personagens traduz ideias de Demme, cujas relações se estendem, pessoalmente, ao Brasil. Só que, em ”O Casamento de Raquel”, vai além desta unidade de povos e etnias: sob as elogiáveis aspirações politicamente corretas, existe uma variedade de ações, interferências e vivencias pessoais carregadas de frustrações, ressentimentos e violência.
Camadas submersas merecem atenção
Não bastam gentilezas e convivência pacífica, as camadas submersas merecem tanta atenção quanto as que estão à superfície. A troca de olhares entre Abby e Kym, depois de estarem abraçadas a Raquel, o comprovam. Kym, com toda sua ferocidade, culpa e insegurança, mostra-se carente de afeto. A mãe a desdenha. Ela terá, afinal, de reencontrar-se; usando seus próprios meios. Não será, nos dizem Demme e Lumet, através do pai. Alguma ruptura deve ser estabelecida. E Demme a faz apenas vê-lo sentado na sala, depois do casamento, sem um instante de despedida. Raquel, em seu instante de sabedoria, já havia desvendado a charada: enquanto a mãe a trata à altura, o pai a vê como alguém que precisa estar sendo constantemente protegida. Justamente, o que ela, Raquel, vê como espaço para a continuidade das fragilidades e inconstância da irmã. E é difícil o espectador não lhe dar razão.
“O Casamento de Raquel” cumpre, assim, um papel interessante na dramaturgia atual. Usa poucos recursos técnicos (a parafernália de efeitos especiais), centra-se em poucos cenários, para abranger um amplo leque de situações atuais. É quase uma peça teatral, daquelas que fazem os personagens emergirem com uma força extraordinária. Justamente o que provoca a tensão interna, gerada não pelo entrechoque da ação pura, vem mais dos conflitos interiores. Quando Kym reclama de Raquel por ter jogado com ela, no momento em que tentava consertar outros de seus erros, a câmera de Demme fixa nela, mas logo volta a Raquel. Não perde, no entanto, o centro da ação. O recurso cinematográfico é usado para fazê-la fluir e ressaltar a situação vivida pelos personagens. Garante, desta forma, o raciocínio e a emoção, dada que a seqüência em si é por demais ebulitiva, pois envolve além das irmãs o pai, posto em cheque por suas constantes tentativas de proteger Kym. A câmera então passeia entre eles, sem deixar de registrar suas ações. É um belo exercício de direção, numa época de câmeras nervosas, que são apenas nervosas. Dá saudade dos mestres Glauber e Altman.
“O Casamento de Raquel” (“Raquel Getting Married”). Drama. EUA. 2008. 114 minutos. Roteiro: Jenny Lumet. Direção: Jonathan Demme. Elenco: Anne Hathaway, Bill Irwin, Rosemarie DeWitt, Tunde Adebimpe, Debra Winger.