“Segredos Íntimos”: frestas no rabinato

Na difícil escolha da jovem judia que pretende ser rabina, o diretor Avi Nesher vê a oportunidade de discutir o conservadorismo da sociedade israelense e a luta das mulheres para conquistar espaço no centro do da difusão do judaísmo.

Uma das grandes vantagens do cinema moderno é não ter medo de temas espinhosos, tratando-os de frente, ainda que a polêmica neles se introduza, causando dissabores àqueles que querem manter as aparências. E sempre acabam mostrando as fragilidades do que era tido como bem estruturado, muitas vezes por milênios. Na maioria das vezes, como ocorre nas obras que tratam das questões religiosas, o dogmatismo e o glamour  hollywoodiano terminam por ofuscar os conflitos e as inverdades históricas e a massa acredita que, de fato, as coisas se deram como encenadas. Além disto, preservam a estrutura social conservadora, que condiciona os personagens aos estereótipos falsamente bíblicos, levando-a, pela distância do que vê de seu cotidiano, a acreditar que está diante do sagrado. Diversos filmes da década de cinquenta, a exemplo de “O Manto Sagrado”, “Sansão e Dalila” e os “Dez Mandamentos”, foram pródigos em se enveredar por este caminho, a ponto de se tornarem frequentes nas programações das tevês nas últimas décadas. 


 


 


Salvo por Pasolini, em “O Evangelho Segundo São Mateus”, Nicholas Ray, em “O Rei dos Reis”, e Scorsese, em “A Última Tentação de Cristo”, mais o primeiro que os dois últimos; tentaram se aproximar da verdade histórica, lançando luzes sobre as relações entre personagens sagrados e o meio em que viviam. Entretanto, abordar questões religiosas significa atravessar o deserto cheio de serpentes, dragões e maldições. Principalmente numa época em que as camadas sociais têm suas visões do sagrado sempre atreladas ao que lhe dita a mídia, vinculada à multiplicidades de seitas, confissões, segmentos religiosos que a dominam. Mas, como não poderia deixar de ser, os conflitos sociais terminam por colocá-las diante das fraturas destas muralhas, falsamente intransponíveis, apontando suas tensões e camadas submersas. Notadamente, quando se trata da luta de gêneros por espaços antes reservados exclusivamente ao sexo masculino, denunciando a misoginia, o machismo, a exclusão pura e simples. E como hoje as muralhas vêm caindo uma após outra, esta também tem sido alvo de investidas constantes dos movimentos de gênero.


 


 


Obra questiona a estrutura familiar


 


 


Em seu filme “Segredos Íntimos”, o israelense Avi Nashen usa uma multiplicidade de subtemas para colocar o espectador diante do judaísmo e suas nuances menos conhecidas. Ñuma delas, já por demais fixada em sua  mente, dada à constância com que o rabinos e os conservadores israelenses  são mostrados pela mídia, ele expõe o radicalismo que dita as relações familiares, que têm de seguir os costumes ditados pelo judaísmo. E se permite, a partir daí, estruturar sua obra por vias que se encaminham para o questionamento desta própria estrutura familiar. A jovem e inquieta Noemi (Ania Bukstein) está noiva de Michael (Guri Alfi), que estuda os livros sagrados Tora e Talmude com seu pai, o rabino Meiz (Riuka Michaeli). Reina a harmonia até que ela revele que pretende ser rabina, escolha inusitada e quase proibida às mulheres israelenses. Esta decisão servirá de fio condutor para desencadear uma série de acasos, contradições, descobertas e mergulhos em insuspeitadas faces religiosas, tratadas por Nashen e seu co-roteirista Hadar Galron sem maniqueísmo.


 


 


Ao espectador então é dada à oportunidade de entrar em contato com uma geografia adversa às regiões áridas vistas nos jornais e documentários televisivos. Edificações de pedra, cidades erguidas na montanha, ruas estreitas e ambientes atraentes. Uma visão nova de um país do qual só se conhece áreas semi-povoadas, ruas e casas destruídas por atentados, devido ao milenar conflito com os árabes, notadamente os palestinos. O ambiente em Safer, cidade onde Noemi vai estudar para ser rabina, é amistoso, embora uma inquietação se estabeleça desde o inicio de sua chegada. Ela é iniciada nos estudos da Torá (Torah) e do Talmude e atrai logo a simpatia e a confiança da Rabbinit (Tikya Dayan), mulher que se mostra à altura de suas pretensões. Duas tentações irão se insinuar em sua fé, impondo-lhe uma drástica escolha, entre o pecado e a redenção. Duas vertentes, do que costumeiramente se chama a libertação através da recusa ao desejo e a aceitação da penitência. Ocorre que os tempos atuais são outros, existem em volta de Noemi múltiplos caminhos e formas de lhe revelar outras vias de conquista e revelação de seu eu. E então, entra a franco-israelense Michal (Michael Shtamler), falante, atraente, badgirl, cheia de trejeitos, fumante inveterada, tudo o que a tradição judaica (e não só ela) repudia.


 


 


Filme foge do tratamento espetaculoso de Hollywood


 


 


Alguém pode perguntar sobre se existe relação entre os filmes antes citados e “Segredos Íntimos” se esta não é uma obra religiosa, na real acepção dramatúrgica e cinematográfica. Não se trata de caminhar em linha reta, com Nashen fazendo um filme religioso baseado na Torá (Bíblia hebraica contendo os cinco primeiros livros da lei mosaica) ou no Talmude (comentários sobre os ensinamentos das escolas rabínicas), mas por tratar o judaísmo sobre o aspecto da luta das mulheres para ocupar o espaço tradicionalmente reservado aos homens. É o reverso do tratamento glamourizado, espetaculoso, hollywoodiano, que não mostra o processo social influenciando uma estrutura religiosa secular. Para aquele tipo de filme, o que está escrito não comporta mudança ou tratamento diverso ao estabelecido, inexistindo, portanto, espaço para que o conflito surja. Para Nashen, o processo é dialético, há pressão para que a visão do rabino Meiz se abra para as novas exigências, introduzindo mudanças que permitam à sinagoga ter mulheres pregando o judaísmo, abrindo novas perspectivas religiosas e das relações daí advindas.


 


 


Quando Noemi se defronta com as escolhas que lhes são impostas pelas circunstâncias, criadas a partir de sua chegada a Safer, elas são reais. Chegam através da prisioneira Anouk Kessene (Fanny Ardant), doente, acusada de ter assassinado o marido, e da sedutora Michal. Diversos jogos se introduzem, por meio de Sheine (Talli Oren) e Sigi (Dania Iugli), que fazem uma espécie de coro de bruxas, vigiando-as. São eles que irão, aos poucos, indicando a complexidade dos novos caminhos à jovem, cuja severa educação judaica não lhe permite vê-las claramente. Então, a dupla Nashen/Galron, introduz um subtema, caro à religião moderna: a possibilidade de o desejo ser mais forte que a fé. Diversos filmes trataram desta questão, sendo “A Religiosa”, de Jacques Rivette, “Madre Joana dos Anjos”, de Jerzy Kawalerowicz, e o esquecido imerecidamente, “Narciso Negro”, da dupla Michael Powell/Emeric Pressburger, os mais contundentes, ao opor a dualidade fé/conflito à possessão, apontada pelo catolicismo como a razão do conflito interior vivido pelas freiras enclausuradas em seus conventos.


 


 


A dupla Nashen e Galron usa o surrado melodrama para desvendar as razões das escolhas das jovens Noemi e Michal. Levam-nas a descobrir as possibilidades do corpo, os desvios pelos quais foram obrigadas a optar, sem que se dessem pelo erro. Não existe, portanto fé em suas escolhas, pois se trata de fugas apenas. O conflito que se estabelece então é outro: o do conservadorismo, ditados pelos cânones, os dogmas e as leis da Torá e do Talmude, que norteiam o comportamento de ambas. Cada uma delas, a partir daí, irá se encaminhar para um lado, Noemi descobre, enfim, como lidar com seu corpo e sua fé, e Michal revela que, na verdade, existem muitas formas de o desejo se revelar. Apenas Nashen e Galron não se dão pela via transversa dada à narrativa: ao levarem Noemi e Michal para cabala como busca da cura para os males de Anouk, ambos abriram caminho para o triunfo do conservadorismo rabínico.


 


 


Diretor preserva tendência ao conservadorismo religioso


 


 


Preservam, desta forma, a tendência de o conservadorismo se impor, mas  a arranham ao abordar os conflitos existentes no seio da estrutura rabínica, a partir da família de um de seus integrantes. Não é pouco para a sociedade israelense, fechada pelos dogmas de uma religião milenar e beligerante em suas relações com seus vizinhos árabes e não árabes. E eles, Nashen e Galron, seguem a tendência moderna de por no centro da dramaturgia os problemas da minoria e de gênero. Noemi num desabafo, quando a trama desnovela todas as implicações, joga sobre a Rabbinit a culpa por seus objetivos no seminário não terem sido alcançados. “Covarde!”, vocifera, odiando a orientadora por não ter sido ousada, mantendo-a e a Michal. A narrativa de “Segredos Íntimos”, devido a seus vários subtemas, termina por errática, excessiva. O núcleo central, uma vez preservado, seria mais contundente. 


 


 


Concentrassem em apenas dois aspectos, o do desejo e o da luta contra o conservadorismo, sustentado pela religião, Nashen e Galron teriam produzido uma obra-prima por ousar entrar em espaços sagrados, discutir o desejo não só do ponto de vista da religião, mas através da arte, configurada nas pinturas do amante de Anouk. Quando esta expõe a Noemi e Michael os quadros com cenas eróticas, um mundo de possibilidades de prazer se abre, e as duas moças se interrogam sobre os caminhos ainda não percorridos. A decisão de Noemi de romper os laços familiares e sua relação com Michael advém da visão de que há algo mais que desejo reprimido em seu intento de se tornar rabina. E a de Michael de percorrer caminho inverso, tratando o súbito despertar homossexual, como simples atração momentânea, também. Um sutil achado, permitido pelo sofrido olhar de Anouk, mostrando de onde vinha sua forte carga de sofrimento, em que thanatos superou eros.


 


 


Então, vários subtemas se impõem à narrativa, com a dupla Nashen/Galron levando-os para vários lados, numa demonstração de Noemi e Michal, que haviam dado largos passos para desvendarem sua sexualidade, se perderam na cabala, no jogo de sedução com Yanki (Adir Miller) músico de klezmer, a música popular israelense, e em intrigas menores sobre o rumo de sua relação. Uma característica do melodrama, em que os conflitos são exacerbados, com o comportamento dos personagens bem caracterizados, prendendo-se mais à emoção que a razão. Sobretudo a dor que acaba por prevalecer, sem que o interesse amoroso se consuma. Não apenas pela imposição social, mas pelo temperamento dos agentes amorosos. Nashen e Galron tentam atenuar este estereótipo dando sentido ambíguo à relação entre Naomi e Michal, porém, o sentido melodramático lá está com a contribuição da fotografia de Michel Abramawicz e a música de Daniel Salomon. Uma pena.


 


 


“Segredos Íntimos” (Ho Sodot). Drama. França/Israel. 2007. 120 minutos. Roteiro: Avi Nashen/Hadar Galron.Direção: Avi Nashen. Fotografia: Michel Abramawicz. Música: Daniel Salomon. Elenco: Fanny Ardant, Ania Bukstein, Michael Shtamler, Adir Miller, Guri Alfi, Dana Iugly, Talli Oren, Riuka Michaeli.


 


 


Tem a ver


 


 


Muitos filmes merecem ser vistos pelo tema e pela abordagem que seus diretores, muitas vezes desconhecidos, lhes dão. A coluna, que às sextas-feiras, veicula análise de um filme em cartaz, fará breves comentários de um ou mais deles, para que o leitor possa assisti-los em reprises, mostra dos melhores do ano ou em DVD. É uma forma de não deixá-los à margem da discussão como os dois que comentamos abaixo, que mostram os conflitos religiosos sob ótica adversa à da obra analisada nesta semana.


 


 



Madre Joana dos Anjos (Matka Joana od Aniolów). Drama. Plónia. 1961. 125 minutos. Direção: Jerzy Kawalerowicz. Elendo: Lucyna Winnicka, Miecazyslalw. A ação se passa num convento para onde se dirige um exorcista mandado para expulsar supostos demônios do corpo da madre superiora. Destaque para a relação entre a repressão sexual ensejada pela Igreja Católica e o desejo reprimido de Joana, nesta história real que transcorre no século XVII. Kawalerowicz desce aos meandros da possessão desta mulher que escolhe a vida monástica, mas o corpo e a mente lhe indicam que deveria se abrir para o mundo.


 


 


A Religiosa (La Religieuse). Drama. França. 1966. Direção: Jacques Rivette. Elenco: Anna Karina. Adaptado da obra de Diderot conta a mesma história de “Madre Joana dos Anjos” centrando a narrativa mais nos aspectos psicanalísticos da possessão e do desejo. Enquanto a obra de Kawalerowicz é mais distanciada, zelando pelos aspectos históricos, Rivette, um dos mestres da Nouvelle Vague, tem aqui uma de suas obras mais consistentes.

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