“Há Tanto Tempo Que Te Amo”

Verdade fugidia: Com tema simples, diretor francês Philippe Claudel estrutura narrativa sobre a velha questão de se é possível conhecer a verdade em profundidade, em todas as suas implicações e nuances. E, com isto, mostra os limites da ética e da moral nos tempos modernos.

Dotado de uma estrutura simples, com nesgas de história que são reveladas ao longo da narrativa, nos envolve de tal forma nos mistérios da vida da ex-médica Juliette Fontaine (Kristin Scott Thomas), que ansiamos por ela ser inocente. Isto porque desde o inicio a sabemos culpada da morte do filho, crime que a fez cumprir quinze anos numa penitenciária francesa. Logo, desnudar as razões de seu ato se torna uma tarefa das mais difíceis, porque a tendência neste tipo de filme é nos identificar com a personagem. Principalmente quando ela é acusada por um crime que não cometeu, clichê caro aos filmes policiais ou aos dramas intimistas, porque é seu comportamento ou seu estado de espírito que nos dirá se a absolvemos ou não.

Claudel nos faz sentir certa aflição logo nas primeiras cenas, quando Léa (Elsa Zylberstein) se atrasa para reencontrar a irmã que saiu da prisão e a espera no aeroporto. Ele alterna a aflição de Lea com a aparente calma de Juliette, que fuma um cigarro enquanto à espera no bar. É alguém que regressa e parece não ser suficientemente considerada; impressão logo desmentida pela recepção da irmã, embora a ex-presidenciária se mantenha fria,
comportamento mantido por ela ao longo do filme. Há sempre uma razão para ela agir desta forma. Seja pelo desconhecimento das motivações do outro, ou pelo isolamento que a prisão lhe impôs, seja pela brutalidade do fato que a levou a cometer o crime. Seu rosto está sempre sereno, os olhos à procura de algo, talvez afeto, muitas vezes por querer ficar só com suas reflexões. Comportamento ao qual se impõe para manter, aparentemente, os outros distantes dela, pela simples razão de que eles sempre se escondem e são loucos para que ela se revele.

Juliette quer manter sua situação sobre controle

Daí sua necessidade de estar sempre no controle. Mesmo que seja diante da sobrinha vietnamita, Petilyz (Lise Ségur), adotada pela irmã Lea. A desenvolta garota a mede, desafia, incomoda com suas indagações, um jeito descontraído também de cativá-la, coisa que ela, em princípio, não está preparada para receber. Percebe o ambiente, as pessoas que habitam o sobrado, onde o mudo sogro da irmã, Paul, está sempre fechado na biblioteca, lendo, motivo pelo qual com ela combina. Menos o cunhado, Luc (Serge Hazanavicius), professor de Lexicografia, na Universidade de Nancy, como Léa, que, sabedor de seu passado, a desdenha. Mas Juliette, médica, acostumou-se a controlar suas emoções, a ditar rumos e a se encaixar no ambiente em que é obrigada a viver. Desta forma se comporta em seu novo cotidiano, onde os olhos, ouvidos e atenção de todos que circulam pela casa e gravitam em torno do casal, filhos e sogro, haverão de atentar para sua presença.

Ainda que não queira, ela é obrigada a interagir com vários núcleos sociais: o da família, da polícia e dos amigos do cunhado e da irmã, sem contar o limitado círculo que ela mesma vai construindo em suas tentativas de adaptação. Cada um deles exige dela um envolvimento que lhe causa dor, irritação, despertencimento, fazendo-a retrair-se ainda mais, enquanto várias portas vão se abrindo, uma vez que Claudel estrutura o filme em torno de personagens cujas histórias reforçam a de Juliette. Não são pessoas deslocadas de seu meio; elas percebem suas dificuldades e querem que ela se abra. Elas também têm seus casulos, tão fechados quanto os dela. Casos do professor Michel (Laurent Grevill), colega de faculdade de Léa, do agente de liberdade condicional, Capitão Fauré, de sua própria irmã, Léa. Mas também o que elas lhes trazem para ampliar seu conhecimento de si. Michel por esconder seus descaminhos aos que o rodeiam; Fauré por ter um sonho irrealizável e viver angustiado e distante da filha, que vive com a mãe, sempre mudando de lugar em lugar, e Léa obrigada a compartilhar um segredo cuja razão desconhece.

Personagem não quer partilhar suas angústias

Desta forma, Claudel cria espelhos através do qual, ela se vê. Cada conversa ou encontro com um deles a faz elucidar suas reticências, temores, aflições. Sem chegar a explosões, que a faria cair na derrisão, embora estes momentos existam em menor escala. Como quando ela diz à assistente social que ainda não havia entrado em detalhes sobre os motivos que a levaram a cometer o bárbaro crime com ninguém “e não o faria com ela”, ou exigindo da irmã explicações sobre o motivo de ter ficado tão longo tempo longe dela. São momentos que nos ajudam a partilhar suas angústias, torcer para que ela se reintegre à sociedade. Isto porque Claudel a faz circular por diversas empresas, indicadas pelo serviço social, em busca de emprego. Se distanciando, assim, do clichê do ex-presidiário abandonado pela sociedade, repetido em centenas de filmes policiais mundo afora. Se a sociedade a sentenciou e ela cumpriu a pena, nada mais justo, nos diz Claudel, que a reintegre, sem atirar sobre ela culpas ainda não totalmente redimidas. Ainda que esta, sabemos, seja a parte mais difícil desse processo a reintegração ao meio social.

Uma visão decerto otimista, idealista, sem dúvida, mas que exposta da maneira como ele, Claudel, o faz se torna uma proposta a ser levada em conta. Igual à do vértice plausível da convivência dela com Fauré. Pode nos parecer desconfortável uma ex-presidiária ser obrigada a conviver com seu agente de condicional, ouvir dele confidências e compartilhar seus sonhos. No entanto, para Claudel, eles não se diferenciam pelas aflições e contradições que lhes perpassam a vida. Fauré é um solitário que sonha um dia passear pelo rio Orinoco (1). É um dos vértices de Juliette por ela nutrir, sem dizer a ninguém, a ideia de um cantinho só seu. Michel, pelo contrário, a faz expandir suas dores através da pintura de Emile Friant. Eles se encontram numa galeria onde ela se debate diante da tela “A Dor”: uma mulher expondo seu sofrimento, o que também faz Juliette ao se negar se abrir perante os novos amigos, notadamente Michel.

Michel e Juliette escoram um no outro

O efeito casulo de Juliette só se desvenda para os que a circundam, mesmo assim veladamente, quando é desafiada a se revelar por Gerard (Oliver Cruveiller), professor falastrão que, bêbado, distribui críticas a todos até a ela chegar. O que ela lhe responde choca-nos mais que aos que estão à mesa com ela, num fim-de-semana no campo. Afinal, a verdade emerge naquele instante, como blefe, porquanto lhe permite se abrir. E nos possibilita desfrutar de uma das extraordinárias seqüências do filme entre ela e Michel. Eles se escondem um detrás do outro, ainda que estejam tentando se revelar mutuamente. Num certo momento, ela se justifica: “Eu ainda estou muito longe”. Tipo de cena que fala muito sobre os estados de espírito dos personagens e da relação de gênero atual, escondidos detrás de seus fantasmas. Mas o mundo que a cerca não a agride do modo que Juliette pensa, Michel está aberto a experiências.
Mesmo porque ele precisará da contribuição dela para atingir seus objetivos. Isto porque ela continua a se fechar, se trancar, para qualquer relacionamento pessoal. Claudel ilustra este seu distanciamento através da conversa dela com o diretor do hospital, onde ela passou a trabalhar. Ele se queixa de seu retraimento, da ausência de troca de idéias e da falta de convivência amigável com suas colegas de trabalho. E a convida a ajudar a melhorar o ambiente profissional e o modo como os outros a veem.

Tudo isto encanta neste revelador “Há Tanto Tempo Que Te Amo”. Percebe-se o cuidado de Claudel em compor a cena com poucos elementos, em ter o enquadramento perfeito e obter o máximo de suas atrizes. Há sempre movimento, intenções, inquietações. Mesmo nas seqüências intimistas, em que Juliette se entrega à reflexão, à dor, à aflição, a emoção se projeta, trazendo junto uma espécie de ação. A narrativa está sempre avançando, desvendando estados de espírito, opondo uma situação e personagem à outra, checando nossas reações. É assim com Luc, cunhado de Juliette, com quem se mantém reticente. Ele está sempre se negando a aceitá-la. Temendo recaídas, disposto a vê-la o mais longe possível de sua casa, para desgosto de Léa. A vida, entretanto, é cheia de ações em zigzag, bumerangue; e ele se vê, depois de um percalço, na condição de dependente da cunhada. Desta forma, cada ação vai se encaixando em seu devido tempo.


Diretor escreveu roteiro sem truques e efeitos

Não por truques inseridos no bom roteiro de Claudel, simplesmente porque os entrechos vão se encaixando até eles se complementarem. E de forma diferente das narrativas hollywoodianas em que o comportamento do personagem já nos faz antevê o desfecho. Basta que nos lembremos de “Melhor é Impossível”, em que o personagem de Jack Nicholson, solitário, é refratário a tudo e a todos, para no final se tornar sociável. Com Luc se passa de maneira adversa. Não há maniqueísmo, manipulação da inteligência ou emoção do expectador. Em determinado momento passa a vê-la de outra forma, mais como alguém com quem se pode e deve conviver, do que como ameaça à sua família. Seus rompantes, certa agressividade com Léa, cessam, ele se torna mais compreensivo e, até, condescendente. Dito desta maneira, parece que “Há Tanto Tempo Que Te Amo” é um filme cheio de boas intenções, politicamente correto, com personagens simpáticos, construído por um roteiro raso.

Nada mais irreal. Trata-se de um filme difícil, no sentido de os conflitos serem estabelecidos por ações interiores, segredos, frustrações, recalques, violência familiar. E não por desandar em situações simplistas. Tais como explicações demais. Choque demasiado entre os personagens, notadamente entre Juliette e Léa. Tem muito de psicanalístico, sem apresentar divã em momento algum. Aliás, inexistem clássicos complexos freudianos explícitos, só recusas de aceitação, mostradas numa chocante cena entre Juliette e sua mãe (Claire Johnston). Nada mais, as demais referências familiares são ditadas pelas conversas, culpas e diálogos entre as duas irmãs. Só buscas que fazem a narrativa avançar; perscrutando razões nem sempre tão visíveis, em sua maioria ditadas pelos pais que negaram qualquer assistência à Juliette, deixando-a afundar em suas próprias contradições.

Razão da personagem é montada através de citações e referências

Claudel não se permite estender em demasia sobre as motivações de Juliette. Quando o faz temos de se esforçar para acompanhar as nesgas, as nuances, os cortes rápidos de cenas curtas, em que fragmentos de fatos aparecem e somem com idêntica rapidez. Somos obrigados a acompanhar suas exposições dos estados de espírito de Juliette por meio das citações, referências e situações que vão surgindo. Ao longo da narrativa há uma profusão de incursões nos variados universos da arte, a ponto de ficarmos diante de uma narrativa de forte influência literária. Sem que percebamos existe uma voz encadeando as sequências, nos chamando atenção para uma tela, um livro, um filme que reforçam tanto a linguagem adotada por Claudel, quanto o que Juliette ou Léa sentem naquele instante. Gerard o demonstra quando cobra de Léa o conhecimento dos filmes de Eric Rohmer (“O Joelho de Claire”, ”Conto de Outono (2)”, porque “ele é o Racine do século XX”. Une cinema e literatura num bloco só, instante em que a narrativa de “Há Tanto Tempo Que Te Amo” é mais decantada, flui mais lentamente, sem cair na contemplação tão criticada nos filmes de autor.

O filme ganha mais profundidade, deixando de ser uma obra sobre uma ex-presidiária tentando se reintegrar à sociedade francesa, na emblemática seqüência em que Léa está rodeada de alunos na faculdade, onde leciona literatura. Ela reage à tese defendida pelo aluno com uma voracidade que nos remete ao drama vivido por sua irmã Juliette. Põe abaixo toda a construção sobre a relação realidade/ficção, com esta assumindo seu lugar de fato: de simples ficção, sem relação alguma com a realidade a qual nos remete, sem, no entanto, deixar de ser ela mesma a própria realidade. O que nos leva ao antigo questionamento de que a foto não é o real é uma representação do real. O mesmo acontecendo com a obra cinematográfica e a própria literatura. E Léa se insurge não só contra esta distorção, como também contra a visão de que o autor/escritor conseguiria apreender a verdade em toda sua implicação: psicológica, social, histórica e, inclusive, espiritual. Não sendo deste modo, uma simples questão metafísica, mas dialética entre o real e sua construção na forma de arte.

Sequência entre as irmãs remete à narrativa literária

A se considerar o que Léa nos diz, num instante de cólera, continuaríamos na eterna ignorância a respeito das reais motivações humanas, sejam lá quais forem suas intenções e contextos no momento do crime. Claudel explicita-o na brilhante sequência do catártico choque entre Juliette e Léa sobre as razões de sua atitude. Enquanto elas se digladiam, vemos os reflexos delas na vidraça com a chuva os desmanchando em tocantes tonalidades avermelhadas. A beleza em meio à tragédia, revelada. De novo temos a sensação de que alguém descreve a cena, remetendo-nos à narrativa literária. Porque ele, Claudel, a estrutura sem música, para reforçar estados de espírito. Basta-lhe compor a cena com os diálogos e as emoções passadas pelas intérpretes. A música ao marcar algumas sequências, apenas ilustra as interrelações entre as personagens, a exemplo da canção cantada pelas irmãs ao piano, que lembra um instante feliz de suas vidas. Nada mais. É como se o diretor nos dissesse que teremos sempre revelações distorcidas sobre a causa real de um assassinato.

A música então não contribui para que “Há Tanto Tempo Que Te Amo” se aproxime do melodrama ou distorça nossas emoções. Estas devem vir do encadeado, de nossa lucidez, da compreensão de que existe um drama na rolando na tela e com ele interagimos. Inclusive para detectar a natureza dos personagens e a intenção do diretor/roteirista. Remetendo-nos ao final de “Os Vivos e os Mortos”, que John Huston tirou do conto homônimo de James Joyce (3). Enquanto a mulher revela ao marido, numa noite de Natal, que em sua juventude amou o vizinho já falecido, a neve é vista caindo através da vidraça, como se levasse com ela aquela dolorida recordação. Todas as motivações ficam claras sem necessidade de maiores explicações ou reforços musicais.

Filme reforça composição étnica hoje existente no país

Junto com este rigor estético e conteudístico, Claudel capta as contradições políticas francesas, principalmente as ações anti-emigrantes do movimento fascista, dirigido por Le Pen, e pelo governo conservador de Nicolas Sarkozy. A multiplicidade de personagens das mais variadas nacionalidades, em seu filme, reflete a atual composição étnica francesa. E são mostrados de forma positiva, contribuindo para a elucidação dos entrechos. Em torno de Juliette e Léa gravitam o africano Bamakelé, o árabe/iraquiano Shamir, o polonês Paul, sogro de Léa, e elas mesmas são francobritânicas. Todos enriquecendo a história francesa com suas cultura, experiência e, também, história. Muitos sem o peso que carrega Juliette, que Claudel, revela num clímax dotado de voltagem suficiente para nos manter calados e amedrontados com o que, por fim, nos é revelado, reforçando, mais uma vez a tese de Léa e, por extensão, do próprio diretor/roteirista sobre a insuficiência de nossos sentidos e consciência para penetrar a mente humana.

Pode ser falso, dado que a soma das versões/realidades, vinda de diferentes testemunhas ou analistas, pode formar o todo. Kurosawa, em “Rashomon”, trata desta questão, sem nos isentar da possibilidade de engano. Haverá sempre a certeza de nos aproximarmos do real, daí podermos apontar onde o ser humano desconsiderou a avaliação de seu ato como um crime, notadamente quando se trata de assassinato. Isto porque, crime em outras esferas (social, política e econômica) depende da lei, vista sempre como verdade num determinado momento histórico, por envolver valores morais e éticos. E serem completamente superadas em outra época sob novas circunstâncias e grupo de poder. João Ubaldo Ribeiro, em sua novela, “Sargento Getúlio”, bom filme de Hermano Penna, mostra os limites do crime político, portanto de uma verdade ditada pelas circunstâncias do momento.

Durante a Ditadura Vargas, um prisioneiro político é conduzido caatinga afora por um soldado. Vargas é deposto e o suposto crime cai por terra.

O que era legal (veja abaixo) deixou de ser e apenas o carrasco insiste na execução de uma ordem, baseada numa verdade que, àquela altura, também deixou de ser. Com Juliette, como vimos; se deu diferente. O espaço para suas atenuantes são mais restritos. Não depende apenas do efeito político-ideológico para se efetivar: necessita de uma forma nova de encarar suas motivações. Os limites são impostos pela ética e moral cristãs. Mas de qualquer forma é uma opção difícil, dado que sua escolha se dá num campo polêmico demais para qualquer profissional nas circunstâncias por ela enfrentadas. O desfecho de “Há Tanto Tempo que Te Amo” por mais chocante que seja, merece uma profunda reflexão.

“Há Tanto Tempo Que Te Amo´(“Il Y A Longtemps Que Jet´Aime”). Drama. França. 2008. 117 minutos. Direção/ Roteiro: Philippe Claudel. Fotografia: Jérôme Almeras. Música: Jean-Louis Aubert. Elenco: Kristin Scott Thomas, Elsa Zylberstein, Serge Hazanavicius, Laurent Grevill, Fréderic Pierrot, Lise Segur, Mouss Zouhegri, Claire Johnston, Olivier Croveiller.


Tem a ver

Muitos filmes merecem ser vistos pelo tema e pela abordagem que seus diretores, muitas vezes desconhecidos, lhes dão. A coluna, que às sextas-feiras, veicula análise de um filme em cartaz, traz breves comentários de um ou mais deles, para que o leitor possa assisti-los em reprises, mostra dos melhores do ano ou em DVD. É uma forma de não deixá-los à margem da discussão como os dois que comentamos abaixo, que tratam do crime sob a perspectiva política, “Sargento Getúlio”, e ético, moral e social, “Rashomon”. Ambos contribuem para possamos nos conscientizar das dificuldades de estabelecermos uma verdade, a partir de nossos sentidos e juízos de valores. Questões seculares, mas nem por isto, menos atuais.

– “Sargento Getúlio”. Drama. Brasil. 1983. 85 minutos. Direção: Hermano Penna. Baseado no romance do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro. Elenco: Lima Duarte, Inez Maciel, Orlando Vieira. Prisioneiro e policial têm neste road movie brasileiro uma relação conflituosa que não arrefece nem quando o motivo de sua existência se esvazia. Durante a Ditadura Vargas, o sargento Getúlio (Lima Duarte), obstinado, autoritário e violento, conduz o preso político Amaro (Orlando Vieira) de Paulo Afonso a Aracaju, onde deverá entregá-lo às autoridades. A viagem se torna um tour de force entre o prisioneiro e seu algoz, símbolo do fascismo da época. Mas, em certo momento, a ditadura cai e o motivo de sua prisão termina, pois estava vinculada às momentâneas circunstâncias políticas. Getúlio, no entanto, impõe sua própria visão do processo pretendendo mantê-lo sob sua custódia até onde havia sido determinado.

Estamos diante do tipo de verdade e de lei criadas para manter o sistema ditatorial. A verdade aqui é a resistência movida por Amaro contra a ditadura e seu crime é o de sustentá-la, mesmo sabendo que poderia ser punido. Uma vez encerrado o regime ditatorial, a verdade e o crime seguem o mesmo caminho. E acabam sendo apenas circunstanciais. Duram apenas enquanto for mantido o processo que os sustentam. Inexistem questões éticas e morais que os justifiquem ou não, diferente do crime cometido por Juliette (veja análise acima). De qualquer forma, uma obra que ajuda a compreender as limitações dos processos legais, morais e éticos criados e sustentados pela sociedade capitalista.

– “Rashomon”. Drama. Japão. 1950. 88 minutos. Roteiro: Akira Kurosawa, Ryunosuke Akutagawa, Shimobu Hashimoto, baseado nos contos “Rashomon” e “Dentro da Mata”, de Ryunosuke Akutagawa. Direção: Akira Kurosawa. A história perturbadora de um assassinato numa floresta do Japão medieval serve de ponto de partida para Akutagawa e Kurosawa discutirem a impossibilidade de se conhecer a verdade em sua totalidade, senão aproximar-se dela. O fazem a partir da conversa de três viajantes, um lenhador, um servo e um sacerdote, que se refugiam num canto da mata para fugir de uma tempestade. Durante uma viagem através da floresta o samurai Takehiro é assassinado pelo bandido Tajomaru na presença de sua mulher Masako. Cada um dos viajantes irá dar sua versão do fato, tomando-o verdade absoluta. Esta, no entanto, chega por meio do depoimento de um médium, que mostra a relação existente entre Tajomaru e Masako e o suicídio de Takehiro.

Como em “Há Tanto Tempo Que Te Amo”, onde apenas Juliette sabe de suas motivações para o crime cometido, só o lenhador aproxima-se da verdade. O entrelaçado da conversa entre os personagens em “Rashomon” amplia nossa capacidade de discutir questão de tal complexidade, pois nosso ponto de vista, que achamos estar correto, sempre está carregado das noções de certo e errado transmitidas pela estrutura politico-ideológica do sistema capitalista. Kurosawa procura redimir Masako, motivadora do crime, levando-a a adotar um bebê abandonado. Muitas vezes, os supostamente culpados não têm uma segunda chance, iguais à obtida por Juliette.

Notas

(1) O Orinoco, é o principal rio da Venezuela, percorrendo ¾ de seu território. Nasce no Delta Amacuro, no Atlântico Norte, e percorre com seus 2.740 quilômetros de extensão uma área de 948 Km2, que cobre não só o território venezuelano como ¼ da Colômbia. É a terceira bacia hidrográfica da América do Sul. O sonho do capitão Fauré, em “Há Tanto Tempo que Te Amo” é percorrê-lo quando se aposentar.

(2) Faz parte da série de filmes de Eric Rohmer: “Seis Contos Morais”.

(3) Integra o livro de contos “Dubliness”, de James Joyce, publicado no Brasil pela Editora Civilização Brasileira.

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