“O Solista”: De música e de Marginalizados

Em filme que traça o perfil do músico afrodescendente Nathaniel Anthony Ayers, o diretor inglês Joe Wright mostra as relações entre ele e o jornalista Steve Lopes, do Los Angeles Times, e os marginalizados com quem passam a conviver, desnudando uma face da megalópole jamais vista.

Há muito não se via no cinema, um diretor que usasse imagens para traduzir sentidos, emoções e conteúdos abstratos. E desta forma fugisse do simples registro narrativo, com as imagens se sucedendo na tela enquanto a trama se evidencia. Joe Wright, de “Desejo e Reparação”, na história aparentemente simples do prodígio musical infantil Nathaniel Anthony Ayers Júnior (Jamie Foxx), funde ambas as técnicas, sem escapar à clareza e a observação social. Em seu filme, “O Solista”, existe o músico, que abandonou os estudos na prestigiosa Juilliard School, e convive com o quebrado violino de duas cordas, em que se esforça para tocar peças de Beethoven, a quem reverencia à loucura; a cidade de Los Angeles, com seus amplos espaços vazios e carros velozes, e os marginalizados de toda espécie com os quais passa a conviver, depois de o repórter Steve Lopez (Robert Downey Jr.), do Los Angeles Times, surgir em sua vida. Fios esses que se interligam através da insistência do jornalista em resgatá-lo do suposto abandono em que se encontra.

Num amálgama de situações às vezes desconexas, Wright alinha-as com a ajuda de sua roteirista Susannah Grant, tecendo um painel da alienação, da esquizofrenia e do abandono em que são deixados os deserdados do sistema capitalista. Se no primeiro instante, ao apresentar Ayers ao expectador, se possa pensar que se trata de uma obra sobre a liberdade de o cidadão escolher sua forma de vida, isto é desmentido ao longo do filme. Ayers se sente melhor e seguro entre as colunas de concreto de um elevado, sob intenso barulho de veículos, que entre as paredes de um confortável apartamento. Sob uma das teias dos elevados, da chamada “Cidade de Quartzo” (1), ele vive numa espécie de transe, esforçando-se para tirar acordes de cordas frouxas e fracas. Mas, ainda assim, consegue encadear notas para encanto e espanto de Lopez, ele mesmo em crise depois da separação da mulher, Marie Weston (Catherine Keener), também jornalista. Ninguém poderia imaginar que alguém como ele, negro, maltrapilho, semteto, fosse capaz de tal proeza.

Herança de segregação condiciona vida de Ayers

Esta dualidade entre liberdade de escolha e genialidade pontua as primeiras sequências de “O Solista”, baseado no livro homônimo de Lopez, retirado de sua experiência com Ayers. Não se pode imaginar que, nestes tempos de insegurança total, alguém, como ele, Ayers, prefira viver nas ruas à custa dos parcos trocados que lhes caem na mão. E perambula pela cidade puxando uma carroça com seus pertence, como se dissesse: minha casa é onde estou. Lopez, perplexo, à cata de assunto para sua coluna no prestigioso jornal estadunidense, inicia uma série de reportagens que o mergulha no universo deste complexo ser humano: Nathaniel Anthony Ayers Júnior. Uma das tantas pessoas cujos sonhos ficaram pelo caminho, dada à impossibilidade de conviver com histórica segregação, temor de assumir sua negritude, de ser visto como igual pelos brancos, e se impor como músico.

Um subtexto importante, surgido das constantes alusões feitas por ele, quando em transe.Neste reverberam séculos de maus tratos, de discriminação, recalques herdados de seus antepassados e mantidos em seu subconsciente pela manutenção do racismo na sociedade estadunidense. Delírios que surgem ao longo do filme, pontuando a trama, destacando-se da narrativa às vezes em fluxo de consciência, noutras em off, na voz de Lopez. É quando a opção pela liberdade se revela contraditória, pois nasce do conflito psicológico vivido por ele, Ayers. Então, Lopez, mais interessado no músicoayers, que no ser humano Ayers, se vê diante de um impasse. Como resgatar o músico sem tratar do homem? O primeiro em seus momentos de ”transe musical” convive com o “deus Beethoven”, a que venera, pois estar diante de sua estátua significa ficar sob sua sombra; o segundo se agarra a sua individualidade de tal forma que ela se torna um estorvo para Lopez levar adiante sua luta para colocá-lo numa grande orquestra.

Ayers traduz suas emoções em música

Difícil separar o músico do homem, embora Lopez faça todo o esforço possível para obtê-lo. Aers quando executa uma peça em seu frágil violino passeia pelo espaço – e Lopez percebe uma comunhão entre homem e música jamais vista. Quando ele substitui o velho instrumento por um novo, um violoncelo, Wright a enfatiza com o fogo que emerge das cordas. São os acordes traduzindo em imagens abstratas as sensações produzidas pela sonata de Beethoven e as emoções dele, Ayers. Noutro momento de grande beleza e intensidade, essas imagens se projetam multicoloridas pelos infinitos espaços de sua mente através da música beethoveana. Ayers viaja, e com ele o expectador. Em outra sequência são figurativas, poéticas, iguais às que levam Lopez a navegar com as pombas pelas nesgas das estruturas urbanas da megalópole. Aquele, no entanto, é o mundo do gênio afrodescendente, em comunhão com seu instrumento de cordas.

Não bastasse isto, ele consegue isolar-se de tal forma do que o rodeia que só existe ele e a música. É o máximo de concentração, que ilustra sua capacidade de abstrair-se de si para mergulhar nas profundas emoções geradas pelas notas musicais. Algo que só o subconsciente é capaz de produzir. Wright usa cromáticos efeitos especiais para que o expectador a ele tenha acesso, podendo desta maneira entender o que vai pela mente de Ayers, à semelhança de Artur Bispo do Rosário (1909 ou 1911/1989), o artista plástico brasileiro que traduziu, em pintura, sua aflição psicológica. Mas, como já observado, Ayers não pode ser visto apenas como alguém tomado pela esquizofrenia; ele é produto da discriminação, da marginalização secular, que o impediu de viver plenamente seu talento. Seus instantes de conflito os deixam escapar, sendo necessária atenção para deslindar este aspecto não negligenciável de sua personalidade. Principalmente quando ele se relaciona com a mãe, Flo (Lorraine Toussaint), em sua juventude. Carinhosa, ela tenta entender seu comportamento, mas ele lhe escapa.

O que, afinal cria a esquizofrenia?

Nestes instantes, Ayers se torna agressivo, tomado por uma ferocidade que torna Flo sua vítima. Justo ela que o incentiva, porém não percebe suas motivações e como o ambiente da Juilliard School o agride. Este vai-e-vem, numa trama dominada pelo real e o imaginário, o concreto e o abstrato, evidencia o interesse de Wright trazer o expectador para o centro da discussão: o que afinal cria a esquizofrenia? É o um ato isolado do homem com seu meio social ou uma agressão do meio social ao indivíduo? Numa discussão de Lopez com David Carter (Nelsan Ellis), diretor da instituição de assistência social, Comunidade Luz, esta dualidade se evidencia. David, também afrodescendente, diz ao jornalista que não pode manter Ayers como interno, pois ele tem a liberdade de aceitar ou não o tratamento. Velha polêmica advinda das idéias produzidas no final dos anos 50, que defendia o tratamento do paciente com aflição mental fora dos centros psiquiátricos, hoje aceita universalmente. Mas que, para Lopez, trata-se de uma contradição, uma vez que ele só pretende evitar mais sofrimento para seu, agora, amigo Ayers.

Nesse trançar de subtramas, subtextos, fluem idéias, imagens abstratas, verdades que vêm à tona em momentos apropriados. Sem perder o fio da narrativa de Ayers, Wright, Grant e Lopez, incluem na história real do ainda vivo, Ayers, outros conflitos que reforçam a trama central. Se antes ela se prendia à relação Lopez/Ayers, Ayers /Ayers, avança para o meio social onde o músico passa a circular, por vontade do jornalista. Ali, no quarteirão da “comunidadeluz”, convive toda sorte de marginalizados – drogados, alienados, abandonados, solitários, jovens, velhos, homens, mulheres – de todas as descendências, sob forte pressão do comércio de sexo, de drogas e da polícia. O que poderia ser apenas uma passagem, um flash, torna-se parte do mundo de Ayers e reflexo da decadência estadunidense. Lopez, em princípio, se sente agredido por esta realidade, depois passa a conviver com ela, no interesse de resgatar seu protegido.

Cinema volta-se para discussão do Estado

Diante do poder municipal estabelece-se a “cracolândia”, a exemplo das existentes em São Paulo, Rio de Janeiro, e pelo planeta afora. Espécie de “território livre” para a violência entre os deserdados, a exploração mercantil do corpo, o uso e tráfico de drogas, e as execuções sumárias, semelhantes às que ocorrem no galpão de “Febre na Selva”. Neste filme, Spike Lee antevê as conflituosas relações sociais sob o domínio do tráfico, com os consumidores em constante atrito uns com os outros e com o meio circundante. Não é diferente em “O Solista”. Wright também radicaliza na abordagem da “cracolândia da Comunidade Luz”, ao torná-la síntese da decadência do sistema. Porém mostra a face dos que nela habitam. Não são seres assustadores, daqueles que inflingem dor a quem deles se aproxima. Têm a face de Leeann (Lee Anna Levin), a mulher de rosto marcado, cujo relato espanta e faz Lopez rir a um só tempo. Sua história é um misto de testemunho e viagem pela câmara dos horrores da atualidade, povoada de aids, loucura, abandono e luta pela sobrevivência. Ela, num messiânico insight, chama o computador, de “a besta”, definindo cabalmente a sociedadehightech do Terceiro Milênio.

A vida de Leeann não a marcou a ponto de vergá-la. Sua calma fala traduz esperança. Entrar em contato com ela, faz Lopes enxergar uma realidade distante da qual se acostumou; como repórter. Portanto, não é só Ayers que vai, aos poucos, mudando, também ele, Lopez, conversando e convivendo com os albergados da “Comunidade Luz”, toma consciência da ausência do poder público municipal naquele espaço. Wright, no fluxo narrativo, introduz a necessidade de o Estado assumir suas funções como agente sócio-político. Não diferente da preocupação que permeia outros filmes vistos ultimamente. Suzana Amaral, em “Hotel Atlântico”, quando questiona o uso abusivo da imagem do artista por um político oportunista, Stephen Belber em “Quando o Amor Pede Passagem”, por discutir a necessidade de os semteto terem a assistência da sociedade que os excluiu. Wright vai adiante. Dá nome e rosto, a quem de direito. O prefeito Villaraigosa (Marcos de Silvas), pressionado por Lopez, decide investir recursos públicos na integração social dos albergados da “Comunidade Luz”. E dá-lhes, sem se desviar do centro da trama, a atenção antes negada.

Los Angeles é a “Cidade de Quartzo”

A câmera do diretor inglês então se concentra nos albergados, mostrando-os em sua inteireza: miséria, exposição sexual, overdose, decadência psicológica, violência policial. Isto num território supostamente livre, que pode ser habitado por quantos nele queiram permanecer. Neste ambiente, Ayers sente-se inseguro, teme perder seus pertences se nele ficar. É um homem em conflito psicológico que não perdeu o contato com a realidade circundante. Conserva seu juízo de valor, mantendo-se distante de bens materiais, embora Lopez insista de que se trata apenas de viver com dignidade. Circula pela “cracolândia”, porém sua mente permanece ligada à música, a Beethoven, ao contato com os elevados que lhe permitem ligar-se de novo à prática musical. Há em Ayers muito da tendência ao isolamento do artista, do que prefere ficar no seu canto a conviver com as contradições políticosociais que o circundam, a menos que lute para modificá-las e não seja passivo ou alienado.

Não se pode ignorar sua visão de Los Angeles, dos elevados que o abrigam; dos veículos ruidosos que não o incomodam, das pessoas que não o enxergam, a ponto de não mais se importar com eles. Wright mostra seus gigantescos espaços, a profusão de veículos, a arquitetura moderna e uma sensação de vazio. Trata-se de uma cidade para o automóvel, para a classe média, a burguesia, que circula pela teia de concreto trançado, enquanto vivem no subúrbio, deixando o centro para a baixa classe média, os lúmpens, os trabalhadores. Daí, Ayers ter-se tornando um dos seus, abrigando-se num canto, entre grossas pilastras. Em certo momento sente-se a alienação que a cidade provoca em quem nela habita, principalmente quando Ayers percorre os corredores do Disney Music Concert Hall, projetado por Frank O. Gehry (2), para dar um concerto. As altas paredes, o espaçoso teatro, o teto vergado sobre ele, o intimidam.

Ayers não se adapta ao convívio social

Acostumado à solidão, convivendo com Beethoven e seu violino, depois seu violoncelo, ele se sente agredido ao ter centenas de olhares nele concentrados. Sente-se um peixe raro num aquário de luxo, de milionários, mais interessados em ver um miserável prodígio, fato para o qual Lopez não atina. A violência como reage ao uso de sua imagem, ao tratamento que lhe dedica Lopez, tentando fundir os dois “eus” que nele convivem, o colocam em permanente estado de suspeição. Mas que leva o expectador enxergar a realidade circundante, a criação de seres tomados pela aflição psicológica, a necessidade de resgatar o marginalizado da exclusão a que foi levado. Ayers, gestado pela estrutura social excludente, não se acomoda ao convívio social, tampouco vê horizontes para além do vivido, criou sua própria realidade, ainda que possuído pela aflição mental. Sua redenção, semelhante à de Lopez, é menos por ter recuperado parte de sua confiança, mais pela necessidade de adequar-se à idade, ao instrumento, a si mesmo.

A Lopez sua recusa em aceitar o espaço que lhe oferece representa o fracasso de sua empreitada. Mary Weston o desculpa numa rara cena de integração entre ela e o ex-marido, ao lhe dizer: ”Você não pode consertar a cidade”. E sintetiza quem é, na verdade, Nathaniel Anthony Ayers Júnior. Deixa de ser o músico, para se transformar no cidadão Ayers, que, por acaso, mereceu a atenção de Lopez por ser músico. Alguém deslocado, portanto, do curso normal dos habitantes da megalópole, cujas vidas se fundem ao da multidão sem rosto. Lopes então lhe dá nome e trajetória. Há, no entanto, forte desencontro entre os dois Ayers que convivem nele. Um ainda persiste em encontrar na música, em Beethoven, a razão de sua existência, o outro se debate para se aceitar e ao que lhe oferecem. Lopez, cujo aprendizado se dá aos solavancos, aprende a lidar com ele e ser menos ostensivo. Ele, Ayers, exige um tempo para cada investida, igual aos acordes que extrai de seus instrumentos.

Expectador pode viajar nos acordes de Ayers

Wright harmoniza estas contradições tornando-o um rico personagem, possuidor de várias camadas, que vão se deslindando ao longo do filme. Quando se entrega às sonatas de Beethoven imagina-se que a esquizofrenia estimule sua criatividade a ponto de fundir-se com os acordes, porém ao cessar esta integração, ele se torna um ser deslocado do meio em que é posto momentaneamente. O que exige um bom estudo de caso, daqueles que desvendam gestos, reações e sua capacidade de criar nos mais difíceis momentos e ambientes. Às vezes, Wright ilustra seus estados mentais com imagens aparentemente desconectadas, de homens, crianças, mulheres, pessoas em meio à violência urbana, ou visto pela câmera digital de Lopez. Elas, no entanto, ajudam o expectador a com ele se conectar. É sem dúvida um prodígio – é preciso questionar sobre até que ponto seu estado de aflição mental interfere ou estimula sua criação.

O expectador desinteressado destas questões pode flutuar com suas execuções das sonatas de Beethoven, desfrutar a poesia das imagens (efeitos especiais) criadas pelos acordes de seu violoncelo, entrar em contato com o músico que poderia ser realmente um prodígio. Sem esquecer da profusão de imagens abstratas, dos vôos das pombas pelos vãos livres dos prédios e do fogo a se mesclar às emoções de Ayers, em transe com Beethoven. Wright valeu-se da fotografia de Seamus McGarvey, da música de Dario Marianelli, das intensas interpretações de Jamie Foox, de “Ray”, como Ayers, e de Robert Downey, como Lopez, para projetar essas emoções. Um pequeno filme, daqueles de se assistir num sábado à tarde, e pensar nele o resto do fimdesemana.

“O Solista” (“The Soloist”). Drama. EUA. 2009. 110 minutos. Fotografia: Seamus McGarvey. Música: Dario Marianelli. Roteiro: Susannah Grant. Diretor: Joe Wright. Elenco: Jamie Foxx, Robert Downey, Catherine Keener, Tom Hollander, Lisagay Hamilton, Lorraine Touissant.

Notas

(1) Davis, Mike, Cidade de Quartzo, Editora BoiTempo. Livro trata da caótica estrutura urbana de Los Angeles e da dificuldade de se viver nela.

(2) “Gehry”, documentário sobre a vida e a arquitetura de Frank O. Gehry.
Último filme do cineasta estadunidense Sidney Pollack.

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