Gritos do Suriname

Do Suriname chegam gritos de horror, fazendo renascer de cinzas sempre acesas a velha Fênix da intolerância ao diferente, ao que vem de longe, e se julga sem direito a pertencimento à raça humana; e a quem se rouba, se fere, estuprando todos os seus direitos, dentre estes até mesmo o elementar e básico direito à existência.

O massacre teve características semelhantes ao genocídio de Ruanda, ou de Serra Leoa – mesmo tendo número bem menor de vítimas, é claro. No caso de Ruanda, uma coincidência: os sobreviventes do massacre foram alojados em um hotel, que lhes serviu de refúgio. Poderia ser uma igreja, mas nela certamente não estariam seguros – onde a insanidade explode como nitroglicerina pura, nem a religião, ou o “temor a deus” serve de freio – sendo que em muitas partes do mundo a religião que não re-liga, mas separa, é justamente a causadora dos conflitos e matanças de hordas ensandecidas.

Há poucos dias publiquei neste espaço um texto intitulado “A hora dos bárbaros” – tinha, inicialmente, o título de “A hora das hordas”. Nos termos do artigo, falo da barbárie que toma conta dos campos e cidades do Brasil, com a criminalidade à solta, organizando-se em gangues e milícias de que participam adolescentes homens e mulheres, e até mães de família, que passam a chefiar as bocas do tráfico, quando acontece de seus maridos se acharem em cana, enquadrados por leis boazinhas, que só raramente e de leve os alcançam. Parecia antecipar o horror do massacre perpetrado por hordas ensandecidas de quilombolas contra os brasileiros. Só que neste caso o estopim do conflito foi a morte de um quilombola (tido por violento, um verdadeiro carrasco de brasileiros) por parte de um dos nossos patrícios. Foi o suficiente para, em prazo de poucas horas, incendiar-se a ira dos nativos, que em mais de mil braços armados de pau, facas, facões, partir para o acampamento dos “estrangeiros”, em sua maioria brasileiros.

Incêndio, estupro, saque, agressão covarde a quem estivesse fez pela frente, fez daquele pequeno posto de comércio e alojamento uma versão moderna da noite de São Bartolomeu. Muitos escaparam da fúria, mesmo feridos, atirando-se no rio, na escuridão da noite. “A gente não estava preparada para tamanha violência”, disse uma sobrevivente do massacre. Ninguém em verdade está preparado para a violência de que o ser humano é capaz. E nisto tem provado, antes e depois do holocausto, negado por gente que seria capaz de refazê-lo, que sempre pode superar-se. Em se tratando de humanos, Ruanda pode ser aqui, no Haiti, em Serra Leoa, e até no paradisíaco Havaí.

A pergunta a fazer é: o que leva tantos brasileiros, homens e mulheres, a viajar para tão longe, embrenhando-se na escuridão da selva, à procura de veios de ouro movidos por sonhos de riqueza fácil e rápida, mas que muitas vezes jamais se realizam? Os relatos de jornalistas enviados a Albina e localidades garimpeiras relatam as dificuldades por que passam os garimpeiros, tendo que trocar ouro em pó por alimentos e combustível, a preço escorchante. Exemplo: trinta quilos de arroz não saem por menos, em ouro, ao equivalente a 1 mil e 800 reais.

Uma prostituta contratada não sai por menos de trinta mil por temporada, e demora mais de uma semana para chegar, em viagem que é uma saga, de tanto risco e dificuldades. Do lugarejo de Albina onde se achavam brasileiros, chineses, e gente de outros países, só restam escombros. Carros incendiados, sandálias havaianas, de gente que teve sua noite de Natal transformada em noite de pavor. Não por acaso, talvez por sincronicidade, uma mulher brasileira, que escapou por pouco de ser estuprada, só tem estas palavras para traduzir o que aconteceu: “Horror, horror, horror!”. E não se vá dizer que ela repete as palavras por haver lido o romance O coração da treva, de Joseph Conrad, onde literalmente são colocadas pelo escritor, para tentar expressar a violência e o absurdo que não podem ser traduzidos em palavras conhecidas.

Os gritos do Suriname vêm nos trazer de volta uma antiga lição: onde a intolerância e a violência caminham de mãos dadas, a alma anda na noite escura, armada até os dentes! O que encontraram os brasileiros que entraram na selva escura da cobiça, à busca de bamburrar? Talvez tivessem melhor destino, se ficassem no seu país, e se declarassem como pobres. Não faltaria casa nas suas vidas, cesta básica, roupa lavada e outros benefícios da vasta rede assistencialista. Encontraram a intolerância, o horror e a morte, em sua busca de encontrar ouro em pó (que virou pó), pois nem suas chinelas havaianas puderam (os que escaparam) trazer.

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