Amazonas, mar de memórias

Rios são como os momentos. Têm ritmo, tempo, silêncio e intensidade diferentes. Assim como cada momento do vivente consciente. Paulo Vanzolin, compositor, virou narrador documentarista, e percorreu milhares de quilômetros (ou milhas náuticas) nas vastas águas amazônidas. Mesmo sendo urbanóide, navegar por suas águas o faz sentir-se em casa. E assim foi durante a longa jornada, começada em Belém, até alcançar a vastidão do Amazonas.

Cada afluente que desemboca no lendário Amazonas tem uma história diferente – cada água que chega vem de muito longe, e tem muitas lendas a contar. Informa-nos Vanzolin: Óbidos é o trecho mais estreito do Amazonas, e tem quase dois quilômetros de largura: “Em Óbidos a gente sente o grande rio macho que é o Amazonas”.

Já o escritor José Mauro de Vasconcelos entrava na terceira margem do tempo quando se entregava à solidão do rio Araguaia. Ali voltava a ser um homem de alma simples, tão sertanejo e tão indígena quanto os ribeirinhos e os índios, que o adoravam. Às vezes enchia a canoa de roupas, tecidos e víveres, e ia, sozinho, a distribuir aquilo, nas aldeias e malocas, na alegria de estar sendo útil. Tratava-se de uma generosidade pura, uma bondade sem mácula, sem o mínimo interesse egoístico – sequer fazia questão de reconhecimento ou gratidão. Fazer felizes os muito pobres, aliviá-los em suas necessidades, era a sua natural alegria.

Entre os índios a autoridade espiritual não depende de grana, pose de tesoureiro de Deus, nem de habilidade oratória – é reconhecida desde o nascimento. Entre eles ninguém manda ou desmanda, ninguém grita, ninguém raia, ninguém bate em crianças. Índios, ao contrário dos ditos “civilizados”, têm natural sensibilidade para viver em igualdade.

Nesta solidão solidária e navegante voltava a ter a alma simples e tranqüila, como nos tempos de mocidade nas praias potiguares, onde foi campeão de natação.. Fazia-se o personagem de Guimarães Rosa, preso ou liberto na terceira margem do Rio. O João Rosa místico, misto de embaixador, médico e poeta, também viajava no entre-lugar do silêncio criativo, sabia: quando se faz noite na alma, tudo é sertão – tudo se apresenta com rosto mítico de assombração.

Constata Paulo Vanzolin que o homem amazônico, inconsciente da predação criminosa a que se entrega, segue a saga da destruição: esgotando o quanto pode (e até o fim) um recurso insignificante, frágil como pode ser a fragilidade. E ainda que esgote tais recursos naturais até o limite da extinção completa, o que tira à natureza não é suficiente para o seu sustento.

Ocorre também que viver no mato não é para qualquer coitado. Há que ser rude e forte, e ter alma de sertanejo. A natureza não existe para ajudar coitadinhos. A escavar o tempo, num vale afogado, vai o Amazonas resistindo como paraíso das águas na hiléia brasileira. O rio tanto destrói quanto cria, em seu ofício de potência a serviço de Shiva. Vai capengando, sofrendo os ataques da visão predatória que coloca a economia acima da preservação de recursos não renováveis – o patrimonialismo patriarcal (herança lusitana) sendo o seu jeito de estar bem indo mal.

Um mil e 500 quilômetros e quatro semanas depois do início da expedição, Vanzolin viu cenas inesquecíveis de construção solidária, e a extraordinária capacidade de resistência de um povo esquecido ou jamais lembrado. Um povo incompreendido, muito afastado de todas as outras comunidades, e sempre em transformação. Afinal, por aquelas brenhas selvagens, assim como no agreste nordestinado, com um empreguinho compadresco dá-se um jeito de ir enganando a barriga vazia.

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