O Brasil Árabe
Nestes tempos de multiculturalismo muito em moda, fala-se em vários “povos” dentro do Brasil, misturados ao nosso povo brasileiros. Parte do movimento negro inclusive proclama-se “afro-descendente”. Não vou entrar nessa polêmica. Quero nesta coluna semanal resgatar um pouco do significado e das contribuições, o legado que a civilização árabe e seu generoso povo deram e continuam dando ao nosso Brasil, na formação de nosso povo brasileiro.
Publicado 22/04/2010 19:26
As origens da migração
Não se sabe de forma precisa qual a data que o primeiro árabe chegou ao Brasil. Sabemos, pelo livro da escritora Claude Hajjar, que o Imperador Dom Pedro II, visitou vários países árabes entre 1873 e 1877. O mais provável é que as primeiras famílias, que vieram à convite do próprio imperador, chegaram em 1880. Portanto, podemos estar comemorando este ano 130 anos da migração árabe.
No entanto, falar em um Brasil “Árabe” seria como falarmos desde os primeiros momentos da própria colonização deste imenso território, iniciado em 22 de abril de 1500. Sabe-se que um dos timoneiros dos navios de Cabral era árabe e muçulmano.
A influência dos árabes na península Ibérica, que engloba Portugal e Espanha, é imensa. Durou em torno de 700 anos. Termina no século XV, quando os chamados reis católicos de Portugal e Espanha retomam o controle da Península. E essa influência pode ser sentida em vários aspectos, em especial na própria língua, na culinária, na dança, na música (tambores, sons e diversos instrumentos). O legado científico da civilização árabe ao mundo esta amplamente documentado e é desnecessário repetirmos aqui.
Há cerca de quatro anos tratamos em uma das nossas colunas, de um livro sobre linguística, de Miguel Nimer, da USP, intitulado Influências Orientais na Língua Portuguesa. Uma obra excepcional que deve ser lida. Milhares de palavras portuguesas têm origem na língua árabe. As mais conhecidas e comuns, são as começadas com o vocábulo Al. São elas alfaiate, alface, açougue, almoxarifado etc.
Na culinária, nem é preciso dizer. Qual brasileiro não conhece o quibe e a esfiha? E mesmo o tabule. Um grande amigo da causa árabe, a quem já entrevistei nesta coluna, Ali El Khatib, costuma dizer que podemos chegar a qualquer um dos 5.565 municípios brasileiros e pedir em qualquer bar um quibe ou esfiha que seremos atendidos. Se fizermos isso em algumas cidades no interior da própria Síria e do Líbano, corremos o risco de não sermos atendidos. Isso é curioso, mas é verdade.
O Brasil talvez seja uma das maiores “nações árabes”, se considerarmos os imigrantes e seus descendentes. Não sabemos os números definitivos. Esperamos a contagem do censo desde ano de 2010. Sempre trabalhei com o número de 12 milhões. O presidente Lula, em discurso que presenciei em Brasília no último dia 8 de abril, mencionou 10 milhões. E chegou a falar que a maior cidade libanesa fora do Líbano seria São Paulo.
No último dia 19 de abril, comemorou-se o Dia da Independência Nacional da Síria (ocorrido em 1947), essa grande e milenar nação árabe. Tive a honra de participar de uma solenidade, com direito a discursos, música e dança árabe no clube Homs (na Avenida paulista). Lá esteve também o combativo vereador pelo PCdoB, Jamil Murad, antigo militante das causas árabe e palestina e também ele descendente de árabes. Para variar, o coquetel servido depois tinha, claro, quibe e esfiha!
Mas, menciono esse episódio do clube Homs para comentar o seguinte. Deviam estar presentes em torno de mil pessoas. Clube lotado, lideranças da comunidade, personalidades, médicos, advogados famosos, empresários, industriais, parlamentares, autoridades, corpo diplomático, autoridades religiosas de diversas confissões, em especial as de matriz árabe, como a melquita, ortodoxa síria entre outras, sem falar da forte presença de clérigos muçulmanos (de fácil identificação, pela sua roupagem típica). Claro, não estavam ali presentes apenas descendentes de sírios, mas vários descendentes de libaneses. O que me chamou a atenção foi sobre os aplausos. Os discursos eram feitos em árabe e depois traduzidos por George Khoury (com quem estudei árabe no mesmo clube na década de 1990). Os aplausos eram fortemente ouvidos antes mesmo da tradução de George. Isso quer dizer que metade pelo menos daquela plateia presente entedia perfeitamente o árabe, provavelmente ensinado pelos seus pais ou avós vindos do Oriente Médio.
Como não aceito a denominação “povo africano”, para os negros que vivem no Brasil, também não nos consideramos “povo árabe”, nós, descendentes de árabes residentes no Brasil. Somos e integramos o povo brasileiros. No entanto, temos que levar em conta a nossa ancestralidade e nunca negá-la. Procurar nossas raízes, conhecer a cultura e mesmo a língua de nossos antepassados. É assim, de maneira bastante forte na comunidade descendente de italianos e japonesa, as duas das maiores colônias que migraram para nossa país no século XIX. Saber a cidade que nossos avós nasceram em nossos países de origem é positivo, se puder, conhecê-la, melhor ainda. Isso estreita laços, nos torna mais “internacionalistas”, cidadãos do mundo.
Assim, tenho mencionado com amigos, arabistas e intelectuais de origem árabe com que me relaciono (estamos instituindo já há alguns meses um grupo que discute conjuntura política do OM), que existe algo que poderíamos chamar genericamente de “Brasil Árabe”. Um lado de nosso país que sofreu forte influência árabe. Seja na culinária, seja na música, seja em ritos religiosos, na dança, na arquitetura e, claro, na própria língua. Intelectuais, cientistas, médicos, advogados, autoridade de sobrenomes árabes frequentam diariamente as páginas dos nossos jornais. No governo do presidente Lula, fala-se em sete ministros de origem árabe.
Essa realidade é preciso ser estudada, observada, registrada. No entanto, os livros escolares, os jornais da televisão, ainda possuem preconceitos contra os árabes em geral, geralmente associados ao islamismo e estes, os muçulmanos, por sua vez, também sofrem discriminação pela sua religião. É preciso quebrar essa tradição negativa. Precisamos valorizar a imensa cultura, o legado que os árabes nos deixaram. Reconhecer seu imenso papel na história, na cultura da humanidade, na ciência, nas astronomia, na navegação, na filosofia, na sociologia e em tantas outras áreas do saber.
E, nós no Brasil, temos muito a contribuir com isso. Assim, conclamo todos: descendentes de árabes, brasileiros, uni-vos! Temos que resgatar o papel de nossa civilização, desmistificando e retirando todos os estereótipos existentes. Acho que vivemos um novo momento, um novo ciclo histórico no mundo árabe e no Brasil.
Acho que vivemos certo “avivamento” e renascimento do nacionalismo árabe, patriótico, antiimperialista e mesmo socialista que é preciso resgatar e fortalecer. Como nunca se via desde a morte de Gamal Abdel Nasser em 1970. Quem sabe agora, 40 anos depois, neste novo mundo que estamos a presenciar seu nascimento, isso possa estar mais próximo da realidade.