“Minha Terra, África”: Visão do colonizador
Em filme sobre fazendeira que defende sua terra na África, diretora francesa Claire Denis esbarra na abordagem eurocentrista
Publicado 18/11/2010 16:04
A África que o espectador ocidental se acostumou a ver na tela oscila entre o primitivo, o folclórico e o conflito tribal. São guias de caçadores de tesouro (As Minas do Rei Salomão), de predadores de animais (Mogambo) ou de traficantes de diamantes (Diamantes de Sangue). Centenas de outros filmes construíram um imaginário difícil de ser negligenciado. Ainda mais quando é retrabalhado pelos especiais de televisão que a exemplo dos filmes reforçam o exótico, a superstição, a orfandade tão ao gosto das estrelas ou nem tanto.
A África então continua vista como o continente perdido, embora a Copa do Mundo na África do Sul tenha mostrado que existem muitas áfricas. Inúmeras culturas, países estruturados econômica, social e politicamente, ainda que persistam resquícios de atraso, marginalização, muitos deles impostos pelos colonizadores europeus e o imperialismo estadunidense. Embora haja uma cooperação chinesa para seu desenvolvimento, ainda embrionária. Quebrar este estereótipo não é fácil. E a arte visual é um dos caminhos mais efetivos para se reverter este quadro. No entanto, isto está longe de acontecer.
A começar pelos filmes que abordam o momento histórico africano. “Minha Terra, África”, visto no Indie.10 – Mostra do Cinema Mundial, em Belo Horizonte, e agora em cartaz, é um deles. Sua diretora, a francesa Claire Denis, centra sua história na herdeira do colonizador e sua luta para manter a terra onde viveram três gerações de sua família. Marie (Isabelle Huppert), a fazendeira branca, passa todo o tempo tentando salvar sua propriedade, enquanto ao seu redor há um confronto entre grupos políticos rivais. E o marido André (Cristophe Lambert) negocia a venda da propriedade com um dos líderes do conflito para retornar à França.
São dois pontos de vista diferentes. O da mulher enraizada na terra africana e o empresário preocupado com a queda da cotação do café. Ou seja, a visão de quem passou a fazer parte daquela geografia e a do colonizador para quem só interessa os lucros que a terra lhe dá. Entre os dois há, no entanto, uma contradição: o filho deles Manuel (Nicolas Duvauchelle) é um ser nativo, a cultura africana se entranhou nele. Colocado desta maneira, parece que Denis produziu uma obra diferente de inúmeros filmes que tratam da África. Uma olhada mais precisa logo desmentirá sua abordagem.
Marie quer salvar
só o que é seu
O que se vê é Marie querendo salvar a colheita em meio ao confronto político, alheando-se a ele, por mais que as ações dos grupos rivais interfiram em sua decisão. Ela se mostra desligada da vida dos camponeses africanos; eles são apenas seus temporários. Mostra ser o outro lado de André, que pelo menos é claro em suas pretensões. Denis procura torná-la participante, pondo-a para esconder o Boxeador (Isaach De Bankolé), líder popular, mas a amarração da narrativa é frágil demais para convencer o espectador de que Marie se posicionou, não por um dos grupos, mas pela cultura da qual faz parte, ainda que possa rejeitar a forma como ela se desenrole.
O filme então se torna uma sucessão de sequências de Marie percorrendo longas distâncias em ônibus na vermelha terra africana para convencer os camponeses a voltar para seu cafezal. É mais de seu interesse do que deles. Nenhum elo há entre eles, embora os camponeses temam serem vítimas de ambos os grupos. Os conflitos são, assim, atenuados. Denis não os clarifica, torna-os pelo contrário irracionais, sem objetivos precisos. É a visão eurocentrista que transforma africanos em contendores incapazes de criar sólidas estruturas sócio-político-econômicas. E poderia mostrar quem são os responsáveis por isto, mas não o faz.
O olhar de quem viveu como ela, Denis, em Djibuti, Burkina Fasso e Camarões poderia ter-lhe permitido um tratamento mais próximo da realidade, sem clichês. Isto se dá quando sua câmera flagra a luz, a cor, a paisagem africana em fortes tons. Fica próxima do povo e mostra seu abandono. A aflição de Marie, a fragilidade de seu empreendimento e a miséria de seus trabalhadores dão a medida do fracasso do colonizador. É a leitura mais próxima que se pode tirar das belas imagens de Ives Cape e dos raros instantes em que a narrativa deixa de ser hesitante entre a luta de Marie e o olhar para uma África que aos poucos se recria.
Esta África pôde ser vista em vários filmes exibidos no Indie,10. Dentre eles o belo “Saint Louis Blues (Um Transporte em Comum)”, da senegalesa Dyana Gaye. Em 48 minutos sua câmera passeia por São Luis e Dakar, mostrando a realidade do Senegal, através de canções, romance interracial, dificuldade de transporte, esperança e geografia de seu país. Os diálogos cantados situam a história e os estados de espírito. E surge uma África adversa do que se vê normalmente no cinema. Há dignidade e vida, embora dor, pauperismo, desconforto e marginalização possam ser vistos. Enfim, há um olhar africano e uma estética a ser descoberta, longe da segregação de todo um continente.
“Minha Terra, África” (White Material). Drama. França. 2009. 100 minutos. Roteiro: Claire Denis, Marie N´Diaye. Direção: Claire Denis. Elenco: Isabelle Huppert, Nicolas Duvauchelle, Isaac De Bancolé, Christophe Lambert.