“Lixo Extraordinário”: Lixo, humanos e urubus
A partir do trabalho do artista plástico Vik Muniz, os diretores Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley mostram as condições subumanas vividas por catadores de lixo de aterro sanitário carioca
Publicado 29/03/2011 20:23
No desfecho de “Lixo Extraordinário”, co-produção anglobrasileira dirigida pela inglesa Lucy Walker e os brasileiros Karen Harley e João Jardim, o que sobressai é a capacidade de o sistema capitalista absorver o lixo em sua cadeia de produção. E, além disso, dar a impressão de que é solução para milhares de excluídos do mercado de trabalho. Os depoimentos das catadoras Isis e Suelen, ao dizerem que é “melhor estar ali do que se prostituindo”, confirma a crueldade da estrutura político-empresarial capitalista brasileira ao não dar-lhes outras dignas opções. Mas é daí que vem a força desse filme-projeto do artista plástico paulista Vik Muniz, também ele um ex-trabalhador com lixo.
O filme se estrutura em três linhas, duas elas comuns nas “obras em construção”, que é ir montando o objetivo a alcançar, no caso de “Lixo Extraordinário” as telas, para que no final ele surja como produto, acabado. A terceira, mais sutil, é dividida em duas partes: na primeira mapear toda a cadeia de produção do aterro sanitário de Jardim Gramacho, bairro de Duque de Caxias, na baixada fluminense, para então, na segunda parte, surgirem os “personagens” e, portanto, a obra de arte em si. O que lhes dá consistência, pois é o ser humano que emerge com seus dramas, frustrações, sonhos, demonstrando o quanto foi empurrado para uma situação que, vista de cima, os transforma em formigas no meio do lixo.
As fortes imagens de centenas de catadores disputando com urubus os restos da estrutura urbano-social os “desumanizam”. Mostram a convivência deles com o lixo, sob o risco de serem contaminados pelos materiais dos quais tiram o sustento de suas famílias. Ilustra-o bem, a ex-cozinheira de restaurante, Valéria, que em meio aos detritos prepara costela ensopada para os companheiros. É apenas um dos tantos exemplos que podem ser colhidos no aterro sanitário do Jardim Gramacho e nos lixões espalhados pelos quase seis mil municípios brasileiros, em torno dos quais gravitam milhares de catadores, que alimentam a indústria da reciclagem de todo tipo de material.
As imagens de “Lixo Extraordinário” às vezes de uma beleza que beira o insano, como sempre ocorre numa obra de arte, revolvem o estômago do espectador. Muniz, que no início tinha uma visão positiva da vida dos catadores, depois de mapeá-los para criar suas telas, muda completamente. “É a pior coisa que já vi”. É quando o ser humano que reflete aparece nas figuras de Isis, Suelen, Magna, Valéria, Zumbi e Sebastião Carlos dos Santos, o Tião, presidente da ACMJG, afrodescendente como os demais. Tião mudará o tom do filme, com sua inteligência, jovialidade, humor e, às vezes, emotividade. Ele, que chegou a Maquiavel ao encontrar o clássico do floretino “O Príncipe” no meio do lixo, compara a briga das gangs do tráfico de drogas à dos príncipes florentinos na Idade Média.
Telas emblemáticas
Ele traz ainda para o filme sua capacidade de organizar uma entidade de classe. O mesmo faz seu vice, Valter dos Santos, bem humorado, para quem a “a luta é grande, mas a vitória é certa”. Numa manifestação, cheia de faixas, eles cobram do prefeito de Duque de Caxias uma solução para seu problema, procurando se fortalecer a categoria. “É preciso mudar o rumo dessa história”, reflete Tião. Uma história que não se restringe às condições de trabalho em si, se estende à qualidade de vida, de moradia, dos catadores. A câmera do trio de diretores desvenda o outro lado de suas vidas. As péssimas condições dos barracos de plástico, zinco e papelão em que vivem. O de Suelen, 18 anos, mãe de dois filhos, uma de três, outro de dois, é o mais precário. Difícil conter as lágrimas.
Ao registrar a dura luta dos catadores pela sobrevivência, Muniz e o trio de diretores justificam seu filme. E com as histórias dos agora seis “personagens”, já citados, fecham a obra em construção. Cada um deles contribui para a criação de uma tela, que se tornará uma obra coletiva. As duas mais emblemáticas, a de Tião, como Jean-Paul Marat, um dos líderes da Revolução Francesa, na banheira, atesta a necessidade de profunda mudança na estrutura de classes nacional, e a de Suelen como uma Mona Lisa terceiromundista, sacrificada com suas crianças, a confirma. O resultado dessa transfiguração acaba sendo a redenção de Muniz, que acaba contribuindo para a mudança na vida do grupo de catadores e, no futuro, de seus três mil companheiros.
O que pode vir com a promessa do fechamento do aterro sanitário em 2012. É um pingo de água no oceano convulso da indústria da reciclagem no Brasil. É uma cadeia de produção, cujo último degrau, o mais explorado, é o do catador. E não basta uma obra de arte, tenha o valor que tiver, para mudá-la. Isto só ocorrerá por iniciativa do Estado e de toda a sociedade rumo à preservação do meio ambiente e, principalmente, à inclusão dos trabalhadores dos lixões de todo o país na estrutura social e no mercado de trabalho. De qualquer maneira uma elogiável iniciativa.
“Lixo Extraordinário” (Wast Land”). Documentário. Brasil/Reino Unido. 2010. 90 minutos. Diretora: Lucy Walker. Co-diretores: João Jardim, Karen Harley.
(*) Candidato ao Oscar 2010 de Melhor Documentário.