“Um Alguém Apaixonado”: Espelhos e aparências
O jogo do real e da imagem na sociedade japonesa é tratado com sensibilidade pelo iraniano Abbas Kiarostami em seu último filme
Publicado 12/12/2012 12:52
Nos filmes do cineasta iraniano Abbas Kiarostami sempre há alguém angustiado (“Gosto de Cereja”, 1997) ou querendo encontrar-se com o ente querido (“O Vento nos Levará”, 1999). O que lhe importa é como as pessoas se ligam umas às outras, sem razão aparente. Neste “Um Alguém Apaixonado”, ele trata das relações entre a universitária de vida dupla, Akiko Matsuda (Rin Takanashi) e o idoso escritor Takashi Watanabe (Tadashi Okuno), na ritualística sociedade japonesa – e amplia os temas recorrentes à sua obra.
Ao uni-los numa história, em si muito simples, ele opõe dois diferentes universos no Japão hightec. Ambos procuram manter as aparências, nunca tratando diretamente do que os levou a se encontrar. Watanabe se vale do apego ao ritualístico, Akiko do desapego ao tratado previamente. Vivem típicas situações de comédias de erros e truques, mas se trata de drama, do comum nas megalópoles. Akiko não se deixa envolver pelo idoso, gerando desconforto, sem cair no preconceito. Ele estranha, mas não reclama.
São duas gerações adversas se encontrando para o previamente acertado. Eles vão se conhecendo, se mostrando um ao outro através das atividades de Watanabe e das revelações de Akiko. E nestas explorações vão adiando o que a levou ao apartamento dele. O mundo de duplicidade onde Akiko vive não permite recusas, e Watanabe por imposição da privacidade foge a qualquer cobrança. Kiarostami vai criando assim situações que não se concluem.
Dubiedade não se sustenta
As diferenças entre eles se revelam no cosmopolitismo de Watanabe ao ouvir jazz ou entoar “Que Será, Será”, e na matreirice e apego de Akiko ao celular, fetiche de sua geração. E principalmente nas autorreferências surgidas nas trocas de impressões familiares. Ao invés de cada um mostrar suas fotografias, Kiarostami usa as de Watanabe para falar também sobre Akiko. Enfim, a memória dele reflete as reminiscências dela. Este minimalismo permeia todo o filme. Inclusive os personagens secundários, que desmontam o jogo de aparências entre eles, por se sentirem ludibriados.
As aparências se sustentam na estratificação social que impõe às faixas etárias barreiras à relação amorosa ou ocasional. Principalmente se for entre um idoso e uma jovem. Ninguém imagina que Watanabe irá quebrar esta regra. O diálogo entre ele e o mecânico Noriaki Higuch (Ryo Kase), noivo de Akiko, segue o estratificado na sociedade japonesa. Há dualidade entre a experiência de um e a imaturidade do outro. Watanabe tende ao professoral, superior, enquanto Noriaki, menosprezado, mostra-se, adiante, tão sábio e astuto quanto ele. O saber cotidiano, autodidata, equilibra-se, confirmando sua utilidade, mesmo que assentado em terreno de aparências, como no filme.
No entanto, as aparências nem sempre resistem à realidade. Sua cortina é frágil. Kiarostami inclui a Vizinha desbragada para, sem saber, desvendar Watanabe para Akiko. É a única que foge ao ritualístico nipônico, de guardar-se, pois nada tem a perder. Os códigos sociais a impediram de ter uma vida condizente com seus sonhos. É uma personagem saída das comédias italianas dos anos 50: falastrona, solitária, vivendo o amor platônico da juventude em plena terceira idade. Ela se torna com Noriaki o vértice esclarecedor do filme.
Estrutura do filme é novelística
“Um Alguém Apaixonado” tem a estrutura de novela (literatura, não TV), com poucos personagens, um andamento ditado pela estrutura social. Kiarostami soube mesclar o comportamento da juventude com o ritualístico da velha geração. Usa para isto o jogo de aparências. O quarteto de atores contribui para que não transpareça mais que o necessário. Tudo neles é contido, usam o silêncio (Akiko nas tensas sequências do táxi), Watanabe ao descobrir que precisa de habilidade para conquistá-la, sem o demonstrar.
Além do silêncio, Kiarostami também usa efeitos sonoros para reforçar a tensão entre Akiko e Watanabe de um lado e Noriaki e a Vizinha de outro. Ouve-se em três sequências apenas o barulho dos muros na porta, os vidros da janela se despedaçando com estardalhaço e os gritos de imprecação contra Watanabe. Antonioni, em “Blow-Up – Depois Daquele Beijo”(1966), inverteu este recurso ao mostrar os membros de uma trupe jogando tênis com gestos de mímica sem som algum. As possibilidades são, portanto, amplas.
Não bastasse isto, Kiarostami troca o foco no personagem sem perder o fio central. Na primeira e segunda parte, Akiko centraliza a ação, na terceira cabe a Watanabe conduzir a narrativa, e na última os dois arcam com as aparências. Não é difícil perceber estas mudanças, basta ver como ela cede espaço para ele. No fundo, o que se pretende é apontar os limites deste tipo de artimanha. Mas na dupla vida de Akiko, vale o acertado, a retribuição monetária costumeira – a diferença etária é secundária.
Contudo, “Um Alguém Apaixonado” não é um filme intimista. É aberto para as ruas, os pedestres, as cintilantes marquises de Tóquio. Os personagens – Watanabe e Akiko – se locomovem em automóveis, que os tornam habitantes da demiurga sociedade tecnológica – fria e distante.
“Um Alguém Apaixonado”
“Like someone in Love”.
2012. 120 minutos.
Drama.
Japão/França.
Fotografia: Katsumi Yanagijima.
Roteir/direção: Abbas Kiarostami.
Elenco: Tadashi Okuno, Rin Takanashi, Ryo Kase.