“Um Verão Escaldante”: Ocaso do macho
O papel da mulher e do homem nas modernas relações amorosas é o centro deste filme do cineasta francês Philippe Garrel
Publicado 03/01/2013 11:10
Casais atormentados pela necessidade de fidelidade do outro numa época de relações amorosas fugidias, cujos papeis invertem-se a todo instante, são o centro deste filme do cineasta francês Philippe Garrel (“Amantes Constantes”, 2005). A exemplo do que fizera seu compatriota Christophe Honoré em “A Bela Junie” (2008”), em que o professor se apaixona pela aluna, a vítima neste “Um Verão Escaldante” é um certo tipo de homem: o que espera deter o controle das ações da mulher, negando-lhe a liberdade de escolha de seus parceiros.
Este tipo de homem, ao invés de ser forte, é frágil, vulnerável a ponto de sucumbir. Tem fortes traços românticos, fechado si mesmo, sem ver o entorno. Frédéric (Louis Garrel), burguês, pintor nas horas vagas, vive de herança com a companheira Angèle (Monica Bellucci) numa mansão em Paris. Atriz, ela faz trabalhos esporádicos para atender aos caprichos dele. Têm, enfim, uma relação de altos e baixos, dada às traições dele e às oscilações psicológicas dela. Nada, portanto, que a maioria dos casais não conhece.
Para matizar este drama sobre a derrocada do homem moderno em suas relações amorosas, Garrel e seus corroteiristas Marc Cholodenko e Caroline Deruas-Garrel fogem ao triângulo amoroso, às brigas e rompimentos. Preferem introduzir outra forma de sustentação dramatúrgica: a chegada do também jovem casal Paul (Jerôme Robart) e Élisabeth (Céline Sallette), em início de relacionamento. Eles irão se conhecer no cotidiano com Frédéric e Angèle, com graves consequências para todos eles
Tragédia do homem
É através da relação de amizade de Frédéric/Paul, Angèle/ Élisabeth que as fraturas e inconsistências na relação Frédéric/Angèle irão aparecer. Primeiro pela amizade entre os dois homens. O pobretão Paul é atraído pelo anfitrião rico, charmoso, que vive numa bela mansão e pode dar-se ao luxo de guardar seus quadros ao invés de vendê-los. Frédéric, por seu turno, escorra-se nele para afastar-se de Angèle. É então que ela lhe escapa. Suas confidências à retraída Élisabeth revelam suas escapadas sem culpa alguma.
Ilustrativa deste seu comportamento é a sequência em que ela se entrega ao desconhecido enquanto dança a frente de Frédéric. “Faço isso para me vingar dele”, diz a Élisabeth. Esta frase define não só a relação deles, como também a liberdade conquistada pela mulher, que pode usá-la sem traumas ou culpas. É isto que também atingirá Frédéric, ferindo-o mortalmente. Ela lhe escapa e ele, nos moldes dos amantes românticos, inicia sua derrocada. Não está preparado para o livre comportamento dela. Persegue-a nas filmagens em Roma, sem poder forçá-la a regressar com ele a Paris.
É neste impasse que Garrel mostra o despreparo do homem do Terceiro Milênio para a igualdade de gênero. Angèle lhe escapa não só porque já não o ama, mas porque começa a fazer escolhas que não mais o incluem. Não importa se ele lhe nega o acesso ao patrimônio herdado, fonte da doce vida que leva, ela não precisa mais dele para viver. Enquanto Frédéric percebe o quanto perdeu, negligenciando-a. Configura-se, assim, a perda da suposta supremacia do homem, preservada pelas estruturas burguesas. Ela se perdeu nas radicais transformações de gênero dos anos 60.
Personagens romanescos
Mas o interessante neste “Um Verão Escaldante” é o ar entediado de Frédéric. É seu crepúsculo e ele o percebe. Seu choro é do ser ferido – inexiste retorno para o papel milenar exercido pelo homem. Garrel, ainda que nos moldes românticos, não vê saída para ele. A forma como o mostra no desfecho o atesta. Talvez seja este o ponto fraco do filme: prefere a tragédia a apontar alternativa. Embora a arte trabalhe com outras formulações, aos postulados devem corresponder novas proposições. O próprio Garrel mostra-o através da atitude de Élisabeth ao não aceitar a amizade de Paul com Frédéric.
Ela e Paul irão construir sua relação amorosa longe do atabalhoado casal burguês. Eles pelo menos mudam de atividade ao compreender que o mundo da arte não atendia a suas necessidades materiais. É uma aceitação mútua que atende a seus objetivos. Diferente do mundo burguês de Frédéric, temeroso de perder a mansão para Angèle. Esta, com sua opção, se torna verdadeira, pois nada tem a que se apegar, se não a si mesma.
Garrel, num filme de cores fortes, fugindo a seu padrão (suas obras são, invariavelmente, em p&b), traduz em imagens idéias sutis, num encadeado cheio de nuances. Seus personagens são romanescos, no sentido de que agem como se vivessem no século XVIII. Daí a impressão de Frédéric ter saído das páginas do romantismo, pois se deixa dominar pelo emocional ao invés da reflexão. Ainda que nestes tempos tecnológicos se ponha termo à vida, pelas vias brutais, não é este o padrão amoroso atual. Normalmente substitui-se um amor pelo outro, numa digna rotatividade amorosa. Afinal a vida continua.
“Um Verão Escaldante” (“Um été brûlant”).
Drama. Itália/França/Suíça.
2011. 95 minutos.
Música: John Gale.
Fotografia: Willy Kurand.
Roteiro: Philippe Garrel, Marc Cholodenko, Caroline Deruas-Garrel.
Diretor: Philippe Garrel.
Elenco: Louis Garrel, Mônica Bellucci, Jerôme Robart, Celine Sallette.