Amor: Limites da vida

Cineasta austríaco Michael Haneke trata dos dilemas da terceira idade mostrando seus limites físicos e psicológicos

A luz que banha a sala do casal octogenário Georges e Anne é de paz e serenidade. Traduz num só plano todo o sentido do que o espectador acaba de vivenciar. Ali está a filha (Isabelle Huppert) sentada, na mais completa calma. Parece que nada de terrível aconteceu no apartamento de alta classe média. Na verdade trata-se da reconquista da tranquilidade ansiada mais por ela que pelo pai. Há sutilmente um mistério neste metafórico plano-sequência, levando o espectador a indagar-se: o que, afinal, aconteceu com ele. Lembra os enigmáticos desfechos dos filmes de arte dos anos 60/70. Cabe-lhe decifrá-lo.

Esta é uma das belezas deste “Amor”, último filme do cineasta austríaco Michael Haneke (“A Fita Branca”, 2009). É um mergulho na persistência, na convivência, no sentir o amor e o outro nos mínimos gestos. Há uma interação que só se obtém em anos a dois. Assim é com os octogenários Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva), professores de música aposentados. Eles estão vivendo uma espécie de rito de passagem, em que as expectativas se traduzem em seguir vivendo.

É nesta aparentemente tranquilidade que Haneke provoca uma reflexão. Normalmente o cinema trata do rito de passagem como a transição da meninice para a juventude e desta para a maturidade. Jamais desta para a terceira idade, pois implica em mergulhar na derrocada, na senilidade, em doenças como Alzheimer. Quando muito são tratados com humor ou exaltação à vida. São raros os filmes o enfrentam de frente. A canadense Sarah Polley o fez em seu belo “Longe Dela” (2006), sobre a luta do idoso Grant (Gordon Pinset) para cuidar da companheira Fiona (Julie Christie), acometida por doença degenerativa. É forte e desafiador.

Rito de passagem em outro patamar

No entanto, não há como escapar a tema tão importante, numa época em que o número de idosos cresce no mundo (são hoje 810 milhões), principalmente no Brasil (20,6 milhões). É um rito de passagem, mesmo sendo uma etapa em que os limites físicos e psicológicos se impõem e a luta é contra o próprio ciclo de existência. Assim, não é de estranhar a abordagem quase documental com que Haneke trata este tema. Opta por planos-sequência estáticos, em amplos espaços do apartamento do casal, detendo-se em cada etapa da doença que acomete Anne.

Às vezes o estilo é teatral, com mudança de ângulos de câmera, fazendo Georges se desdobrar para atender às carências dela. Aos poucos, eles mergulham num clima matizado por tons azul, violeta, cinza, como se vivas cores não traduzissem seus estados psicológicos. Anne vai aos poucos definhando, perdendo os movimentos, a fala, o senso do entorno, o contato com Georges e a filha. E a vida dele se prende única e exclusivamente a ela, numa demonstração do que nos espera na terceira idade. São raros os instantes em que a memória dela se reaviva. Nem o corpo responde mais. Pode ser insuportável, mas é verdadeiro.

Haneke para quebrar este sufocante clima introduz situações cotidianas (a presença do sindico e sua companheira, do um ex-aluno agora pianista, da filha e do genro). Quebra a claustrofobia do casal de idosos, vivendo seu ocaso. São recursos dramáticos que abrem janelas para o espectador entender a dimensão do problema vivido por Anne e Georges. Ele já não aceita sugestões ou interferências. Nem da própria filha. Fechou-se. “Já fiz tudo que pode ser feito”, diz. Existem só ele e Anne agora, pois a longa convivência os transformou num único ser.

Inexiste epopéia ou redenção

São significativas as cenas em que ele corre pelo apartamento para socorrê-la, encontrar um remédio, uma roupa, mesmo tendo dificuldade para se locomover. Há nele uma força que o leva a superar-se. Entretanto, ele não vive uma epopéia ou busca redenção. Está preso nesta sofrida e inevitável etapa da vida. Haneke não aponta saída ou busca um truque para ludibriar o espectador. Em “Professora de Piano” (2001) já tratara da difícil convivência entre mãe idosa e filha. A fragilidade da/o idosa/o pode torná-la/o de difícil convivência, e Georges chega a irritar-se com Anne, por não saber controlá-la.

Muitos espectadores podem ver na luta de Georges para cuidar de Anne uma confirmação do “até que a morte nos separe”, mas Haneke trata em seu filme da condição humana, do inevitável sofrimento do ser humano. De qual é o limite tolerável para Georges. Não é o forçar de uma situação para torná-la aceitável, crível, para o espectador. Sim do limite que o amor de Georges por Anne suporta vendo-a definhar. Daí, a luz que banha a sala, com a filha no sofá, em completa tranquilidade. E a forma como foi conquistada é a negação do divino.

É uma boa metáfora para o ocaso de Anne. E ainda mais: a luz e a arrumação da sala do apartamento são uma tradução de que a calma e a harmonia retornaram. Então surge a aparente contradição: a morte não é, definitivamente, um rito de passagem. É tão só, como mostra Haneke, uma despedida solitária no caixão. Mais materialista e dialético impossível.

Amor. (“Amour”).
Drama.
França/Alemanha/Áustria.
2012. Cor.
127 minutos.
Fotografia; Darius Khondji.
Roteiro/direção: Michael Haneke. Elenco: Jean Louis Trintignant, Emmanuelle Riva, Isabelle Huppert, William Shimell.

(*) Prêmios: Palma de Ouro Festival de Cannes 2012; Globo de Ouro 2013 Melhor Filme Estrangeiro.

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