“Indomável Sonhadora”: Adiada utopia

Cineasta estadunidense Benh Zeitlin põe na tela dramas, desilusões e fantasias dos lumpens dos EUA

Duas frases sintetizam o universo da garotinha afrodescendente Hushpuppy (Quvenzhané Wallis) neste “Indomável Sonhadora”: “papai virou árvore ou inseto” e “sou uma pequena peça no grande universo”. Cada uma delas levanta uma série de questões que o cineasta Benh Zeitlin, em sua estréia, responde ao longo do filme. De uma maneira tão encadeada que é difícil separar o real do imaginário. E fica a certeza de que a Era Tecnológica é apenas mais um elo da cadeia engendrada pelo universo desde a Era do Gelo e terá fim.

Diversos simbolismos povoam o subconsciente de Hushpuppy fazendo-a viver, ao um só tempo, no alagado de precárias construções, na Ilha Charles Doucet, Louisiana, e na época dos bisontes. Eles se tornam tão sagrados para ela, que retoma a antiga divinização dos animais. Numa metafórica sequência Zeitlin e sua corroteirista Lucy Aliban, autora da peça “Suculento e Delicioso”, em que se baseia o filme, coloca-a diante do gigantesco bisonte-líder. Ela perde, a partir dali, o medo de viver numa Era que nenhuma chance lhe dá.

É sob este aspecto que se entende a segunda frase dela. A de que é “uma pequena peça no grande universo”. Hushpuppy divide com o pai Wink (Dwight Henry um barraco atulhado de móveis, utensílios e roupas em frangalhos. Sua comida limita-se, muitas vezes, ao enlatado de gato. O único instante em que se diverte é quando se aglomera num cômodo de taboas gastas com outras crianças, para assistir a aula da “professora” Bathsheeba (Gina Montana). Dai vem todo seu conhecimento do universo e de sua própria vida na ilha.

Bisonte é símbolo da resistência

Tanto que ao não encontrar explicação para a morte da mãe e as constantes sumidas do pai, ela metamorfoseia as lições de Bathsheeba numa fábula ecológica, cuja principal força é o Bisonte-líder. É uma divindade e um símbolo da resistência do animal em meio à natureza hostil. Ela se vale, então, da Mãe e do Bisonte-líder, com os quais fala, para obter respostas e entender que pertence, enfim, à milenar cadeia de Eras, que engendrou o surgimento do homem. E assim, diz, “não será esquecida”. Suas descobertas estão eivadas de materialismo-dialético, passando para o espectador com clareza que o ser humano é resultado de saltos e encadeamentos que levaram milhões de anos para se configurar.

Sua compreensão hinduísta de que o ser humano pertence à cadeia ecológica vem daí. Ela vê a encarnação, como uma forma de explicar a razão de o pai ter sumido, depois de persegui-la e cair desmaiado. “Virou árvore ou inseto”. Nada permanece como era, torna-se outro ser, animal ou planta. Ela mesma quer ser lembrada como alguém que viveu na Terra. É sua única reivindicação em meio à miséria. Ela apreende o que a cerca pelo encantatório, o subconsciente que explica tudo por símbolos. Quando a realidade a açoita, como na tormenta que a expulsa do barraco, ela perde seu elo natural.

São nestas sequências que o universo do lumpesinato estadunidense emerge com uma força descomunal. Hushpuppy, Wink e seus amigos, mulheres e crianças, perambulam pelo mangue alagado em improvisadas embarcações, até retornarem a seus barracos. Então, as autoridades aparecem para levá-los para abrigos improvisados. Surge, assim, a relação dos aglomerados com seu meio, onde vivem em coletividade, solidários um ao outro, livres para desfrutar a vida, alimentando-se do que o mar lhes oferece.

Capitalismo ignora o lumpesinato

Este comunitarismo do bastar-se a si mesmo, em meio à miséria é tão só a desintegração do sonho estadunidense. De tão marginalizados que foram, negros e brancos como classe, já não acreditam no sistema capitalista para alimentar qualquer tipo de utopia. Wink, mesmo doente, prefere ficar longe dele, entregue ao seu próprio meio. Hushpuppy e demais garotinhas vão conhecer seu outro lado: o do tráfico e prostituição de crianças, onde a “cozinheira” lhe diz que ela devia viver por si mesma. E ela prefere preservar sua alegoria, de integrar-se à natureza, agora que o pai também entrou na cadeia das Eras.

Kurosawa em “Dosdekaden” (1970), também trata do lumpensinato, no Japão pós-milagre econômico. Seus lumpens vivem de alegorias, para escamotear a pobreza extrema. Numa das histórias (são várias que se entrelaçam) o pai conta histórias mirabolantes para o filho, explicando-lhe como iria melhorar a paupérrima casa em que viviam. O mesmo faz Wink, alimentando a fantasia da filha, para que ela não descobrisse a vida de ilusões que levavam. Hushpuppy dribla-a, projetando o que aliviava sua fome e escondia sua falta de perspectivas.

O admirável neste filme, de produção independente, é que dá conta de seu tema com atores não profissionais, uma câmera na mão que flagra os personagens em suas fraquezas e grandezas, numa estética que os põe num cenário incomum. Nada nele é clean, belo, encantador, às vezes dá a idéia de que Zeitlin o encenou assim para dar conta de seu conteúdo. E o consegue desnudando um lado desconhecido dos EUA para quem se interessa mais pela obra em si do que pela narrativa hollywoodiana banal. É necessário.

“Indomável Sonhadora”. “Beasts of the Southern Wild”.
Drama. EUA. 2012. 93 minutos.
Música: Dan Romen/Benh Zeitlin.
Fotografia: Ben Richardson.
Roteiro: Lucy Aliban, Benh Zeitlin.
Diretor: Benh Zeitlin.
Elenco: Quvenzhané Wallis, Dwigth Henry, Gina Montana, Lowell Landes.

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