“Branca de Neve” Sem fantasia
Destituída de metáforas e fantasias, a Branca de Neve do diretor espanhol Pablo Berger torna-se um drama sobre o poder e a riqueza.
Publicado 28/08/2013 10:24
Uma leitura atual do conto de fadas dos Irmãos Grimm (Jacob, 1785/1863, e Wilhelm Brüder, 1786/1859) transforma a fantasia num drama realista em que metáforas e símbolos cedem lugar ao apego ao poder, a riqueza, o consumismo. O cineasta espanhol Pablo Berger bane dos entrechos o espelho e o príncipe, neste “Branca de Neve”, dotando-se de invejável frescor. Restam a pureza da garota, a crueldade da madrasta e os sete anões, numa criativa adaptação.
Foge, assim, à história dos Irmãos Grimm, ao desenho de Walt Disney e às adaptações hollywoodianas atuais (“Branca de Neve e o Caçador”, de Rupert Sanders). Berger substitui os personagens originais pelo pai toureiro e rico fazendeiro Antônio Villalta (Daniel Giménez Cacho) a filha Carmencita (Sofia Oria) e a enfermeira-madrasta Encarna (Maribel Verdú). A estrutura do filme, no entanto, é a mesma da fantasia dos Irmãos Grimm, salvo pela ação que transcorre nos anos 20, em Sevilha, antes da Guerra Civil Espanhola.
Além disso, Berger dota “Branca de Neve” de duas ousadias, salutares nesta época de filmes conservadores: rodou-o em preto e branco e baniu os diálogos, a exemplo de “O Artista”. Toda a ação é matizada pela música e folclore espanhol (dança e música flamencas). É daí que emerge a fantasia original desta lenda, antes de os Irmãos Grimm dela retirar os traços adultos, picantes e maliciosos, para não assustar as crianças. Só Branca de Neve continua angelical, pura, em contraste à maligna madrasta.
Branca de Neve é a ingenuidade
Há entre ambas uma ambiguidade. Carmencita transita pelos entrechos vendo na madrasta um empecilho para aproximar-se do pai, preso à cadeira de rodas, devido ao ataque do touro na arena. Nunca se vê como herdeira da riqueza do pai. Tampouco entende a razão do ódio de Encarna. É incapaz de engendrar qualquer plano para dela escapar. É a ingenuidade e a pureza em estado bruto. Isto preserva o maniqueísmo dos Irmãos Grimm, no Romantismo tardio, pós-Revolução Francesa (A publicação do conto de fadas é de 1810).
Encarna é seu reverso. Enfermeira, ela tratou de Villalta no hospital, e viu no estado dele a oportunidade de ascender socialmente. O que a move não é a inveja da beleza da Carmen jovem ou adulta (Macarena Garcia), mas a ameaça que ela representa para seus planos de apossar-se da riqueza de Villalta. Antes de fazê-lo, usa-a para mostrar poder, consumir, vestir-se como fashionista. Seu humor oscila entre a violência contra Villalta e Carmen, o fausto e o prazer com o amante, apresentado por ela como seu “decorador”.
Entretanto, restaram metáforas melhor articuladas no filme que no conto de fadas. A órfã Carmencita não conheceu a mãe, quem a criou até a adolescência foi a avó Concha (Angela Molina). Com a morte desta, que exercia o papel de mãe, o conflito filha/madrasta é transferido para Encarna. ”Na fantasia edípica da menina, a mãe é dividida em duas figuras: a mãe boa, maravilhosa, pré-edípica, e a madrasta malvada edípica. A boa mãe, prossegue a fantasia, nunca teria ciúmes de sua filha ou impediria o príncipe (o pai) e a moça de viverem juntos e felizes“, esclarece o psicólogo austríaco Bruno Bettelheim (1903/1990) 1.
Outro papel para os anões
Berger também muda a caracterização dos Sete Anões e a relação deles com Carmen/Branca de Neve. Membros de uma trupe de toureiros anões, eles a ajudam a adquirir confiança. Então de sua ingenuidade e pureza surgem a coragem e a confiança, que lhes permitem retomar as ações do pai diante dos touros. O que faz o temor de Encarna se materializar em sequências cheias de suspense e aventura, com eficaz mudança no desfecho original.
Berger ao fazer uma leitura do conto de fadas, sem a famosa frase: “Espelho meu, espelho, existe alguém mais bela do que eu”, ousa, ao mudar o sentido da luta da bruxa/madrasta. Linda, ela passeia pelo filme desfrutando das benesses do poder que a riqueza lhe dá. E quando usa o veneno não é para ficar soberana como a mais bela, mas para manter o que sua tramóia lhe granjeou. Os próprios anões, antes tratados como exóticos, palhaços, aqui representam a solidariedade, a amizade, o companheirismo. É do mais novo que brota o poder que antes pertencia ao príncipe. É menos artificial.
Além destas atualizações, Berger usa as legendas para, na ausência dos diálogos, matizarem a história. Deriva daí, talvez, o sentido de o filme ser mudo e em preto e branco. E as próprias interpretações serem adequadas ao cinema mudo. São os gestos, os olhares, as nuances que as reforçam. A câmera sempre foca a Encarna da ótima Maribel Verdú em ângulos fechados. O fluir das sequências em belos travellings/movimentos tornam o filme ágil e leve (Veja os da chegada de Carmencita à Fazenda Monte Esquecido e os das touradas). Berger, com isto, tirou a fumaça dos contos de fadas.
“Branca de Neve” (“Blancanieves”). Drama. Espanha. 2012. 104 minutos. Fotografia: Kiko de la Rica. Música: Alfonso de Vilallonga. Roteiro/direção: Pablo Berger. Elenco: Meribel Verdú, Sofia Oria, Macarena Garcia, Daniel Giménez Cacho, Angela Molina.
(1) Bettelheim, Bruno, A Psicanálise dos Contos de Fadas, Paz e Terra, 1980, pág. 144.