Publicado 25/08/2020 12:16
Do lado de cá, os tempos continuam difíceis, ainda que os números oficiais e os decretos governamentais os têm amenizado. A economia precisa seguir; os pais precisam trabalhar e, nessa lógica, precisam dividir a criação dos filhos com professores e avós; as pessoas precisam se encontrar porque nascemos para o encontro – “embora haja tanto desencontro pela vida”, não é, Vinicius? Para uma cidade ou para alguém, o mar e o abraço fazem falta – eu sei, eu também sinto.
São muitas precisões, tantas e tantas. Por essas e outras, é que eu ainda escrevo que os tempos continuam difíceis, do lado de cá. Especialmente, em um país como o Brasil (onde nasci e moro), desigual e desleal na distribuição de bens e de poderes e no acesso à educação e à saúde – e que tem retrocedido mais e mais. Os tempos continuam difíceis, do lado de cá. Especialmente, em quem tem o cuidado por uma mãe, um pai, uma fragilidade.
A pandemia de Covid-19 não deu trégua aos sentimentos. O novo coronavírus está no mundo, nas mãos, no meio do caminho, nos medos. Entre nós. Invisível, por mais que a ciência já o tenha reconhecido, segue atacando e matando. Surpreendendo. O que se sabe sobre o vírus e a doença é o que se sabe sobre um inimigo na guerra: que ele existe, ataca e mata. Mas, como? Quais são as estratégias do vírus, da doença e da morte?
O conhecimento capaz de responder todas as perguntas, feito arma contrária, não temos ainda. E eu só posso desejar que, no dia em que ele houver, que seja universal. Que seja também – e urgentemente – para os pobres, para a minha mãe, para minha irmã, para meus amigos, para meus conhecidos, para os seus, para toda vida.
Por esses dias, quando os números oficiais e os decretos governamentais amenizam os tempos que continuam difíceis, eu lido com a escolha de abrir a porta da gaiola, ou não. Minha mãe, de 79 anos, gosta do mundo da rua. Minha mãe é uma pessoa que tem medo de dormir e não acordar, tem medo de perder tempo. Sempre gostou da festa que é o presente, que é a própria vida severina. Agora – “presa” em casa há cinco, seis meses – mais do que nunca.
Acontece que familiares e amigas dela andam se libertando por conta própria, criando verdades para suas consciências e para acreditar que tudo já está passando, que não é mais preciso ficar em casa, que basta usar máscara e não tocar nos olhos ou em ninguém, que o álcool em gel na bolsa é o suficiente. E, um dos mais fortes argumentos: que basta, para não enlouquecer.
Eu queria que fosse assim, sinceramente, porque a tristeza e a solidão também são invisíveis, adoecem e matam. Mas eu ainda desconfio que não seja assim. Coisa de jornalista, misturada com coisa de filha.
Minha mãe tem autonomia e as filhas criadas, graças a Deus. É viúva e pode escolher por si. Nós é quem trancamos a gaiola, ainda que ela fique no jardim, na varanda e nas janelas. Acontece que eu já não sei se devo manter minha mãe na gaiola, enquanto os pares arriscam voos em plena guerra. Entre mais de 110 mil mortos (em cinco meses) pela Covid-19, no Brasil, e a vida que segue (a todo custo), eu mesma já não sei o que é estar a salvo.
Hoje, minha mãe amanheceu contando que sonhou com as amigas do crochê. “Com todo mundo”, citou uma por uma, igual criança quando conta da volta às aulas depois das férias mais longas. Eu não disse nada, apenas cirandamos juntas com as palavras dela.
Minha mãe não pede para sair, na pandemia é mais obediente do que desobediente (amém!), mas eu sei que ela quer; a liberdade é uma fome. Nesta manhã, olhando minha mãe sonhar aos 79 anos, igual criança de 7, 9 anos, eu vi o quanto de vida ela tem (ou temos, cada ser vivo) – sem “ainda”; apenas, se tem. Enquanto se vive é desmensurado.
Olhando para minha mãe, pela brecha do sonho, eu me lembrei de uma frase antiga que escrevi, logo nas primeiras crônicas para jornal e que, vez em quando, cruza comigo: é por amar demais o passarinho que, um dia, abrimos a porta da gaiola. Será que esse dia é hoje? Ou amanhã? Ou depois? Algumas vezes, eu queria que a vida tivesse um manual de instruções.
Mas, porque não tem, vou descobrindo e refazendo a manufatura de cada dia. Errando, acertando, tentando. Neste post, publico mais uma parte do inventário particular das horas, que eu tenho feito nesta quarentena. É um pouco do mundo de casa, registrado no Instagram @anadossuspiros. Cartões-postais desse tempo tão difícil quanto significativo, anotações para eu ler nas travessias. Um pouco de tudo.
Fonte: Blog Ana dos Suspiros