Carnaval, religião e laicidade: a necessidade do respeito na democracia

“É importante lembrarmos que os fenômenos sociais não devem ser reduzidos a julgamentos morais ou dogmáticos, mas analisados em seus contextos culturais e históricos.”

Alegoria da Unidos de Padre Miguel contou a história da fundadora do primeiro terreiro de Candomblé do Brasil Foto: Tânia Rego / Agência Brasil

O Carnaval é uma das nossas manifestações culturais mais tradicionais, sendo amplamente celebrado de Norte a Sul do país. Entretanto, alguns líderes religiosos e seus seguidores frequentemente classificam a festividade como pagã e pecaminosa, associando-a a valores contrários à moral religiosa. Tal visão, contudo, revela uma compreensão limitada tanto do seu significado histórico, quanto dos princípios de uma sociedade laica e democrática.

Antes de mais nada, é importante lembrarmos que os fenômenos sociais não devem ser reduzidos a julgamentos morais ou dogmáticos, mas analisados em seus contextos culturais e históricos. O Carnaval tem suas raízes em festividades europeias que combinavam elementos cristãos e pós-cristãos, como o entrudo português e as Saturnálias romanas. Em nossas terras, tornou-se uma expressão da identidade popular, marcada pela diversidade e pela capacidade de integrar elementos culturais diversos.

A influência da religião sobre a moralidade social é um fenômeno histórico, mas em um Estado laico, como o nosso, é fundamental que haja distinção entre crenças individuais e políticas públicas. Tendo em vista que o respeito à diversidade é uma condição essencial para a convivência harmoniosa em sociedades plurais, isso significa que independente de um grupo religioso considerar esta festa popular inadequada para seus membros, não lhes dá o direito de impor essa visão (preconceituosa, inclusive) ao restante da população.

A liberdade religiosa é um direito garantido desde a década de 1940, sendo reiterada pela Constituição Federal de 1988, mas deve ser compreendida em seu duplo sentido: tanto a liberdade de professar uma fé quanto o direito de não ser coagido por princípios religiosos alheios.

A classificação do Carnaval como “pecaminoso” é, portanto, um juízo que cabe à esfera privada de algumas igrejas, mas não deve ser tomado como critério para a regulação da vida social. Segundo Durkheim (1996), a religião exerce uma função de coesão social, mas sua interferência excessiva nas normas seculares pode gerar conflitos desnecessários e, até mesmo, ameaçar a convivência pacífica.

Ademais, a festa momesca também é um acontecimento de grande impacto econômico e cultural. Diversos estudos na área da economia criativa destacam que eventos culturais de larga escala promovem desenvolvimento, turismo e inclusão social. A tentativa de sua deslegitimação com base em argumentos preconceituosos ignora sua importância para a indústria cultural brasileira e para o bem-estar da população.

O Brasil é um país caracterizado pela diversidade religiosa, o que exige a construção de um ambiente de respeito mútuo entre diferentes crenças. Como defende Habermas (1997), o discurso público deve estar fundamentado em razões compartilháveis por todos, e não apenas em dogmas particulares. Isso significa que, ainda que algumas tradições morais condenem determinadas práticas, isso não deve se traduzir em uma imposição social generalizada.

A pluralidade de opiniões e práticas é a essência de uma democracia verdadeira. Esta festa, longe de ser apenas um evento de entretenimento, simboliza essa diversidade, bem como a capacidade do nosso povo celebrar sua própria identidade de forma livre e espontânea. Tentativas de censurar essa expressão cultural a partir de argumentos místicos podem ser vistas como um atentado à liberdade individual e à própria democracia.

Diante disso, é fundamental que lideranças religiosas e seus seguidores compreendam a distinção entre suas convicções e a realidade de uma sociedade plural. Como mostra Popper (2013), uma sociedade aberta é aquela que permite a coexistência de diferentes formas de pensar, garantindo o direito à dissidência e à liberdade de expressão.

O respeito às diferenças é, portanto, um princípio básico para a manutenção da harmonia social. Mesmo que alguns grupos vejam o cortejo do Rei Momo como impróprio, isso não lhes confere o direito de desqualificá-lo ou de exigir sua restrição com base em preceitos dogmáticos de cunho místico. A separação entre Estado e igrejas é um pilar essencial para que todos possam viver de acordo com suas convicções, independente do que pensa o outro.

Assim, o debate sobre o Carnaval e a religião deve ser pautado pelo reconhecimento da laicidade do Estado e pela valorização da liberdade de expressão. Um país democrático é aquele que acolhe diferentes tradições e visões de mundo, garantindo que cada indivíduo possa celebrar sua cultura sem medo de repressão ou julgamento indevido.

Referências

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

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