O roqueiro reaça ataca novamente: as polêmicas envolvendo a banda Ira!

Apesar da postura e posicionamento de algumas bandas, não se pode negar o caráter reacionário de boa parte dos fãs de rock

Banda Ira! | Foto: Ana Karina Zaratin

Na última semana uma produtora teve um post viralizado no qual comunicava o cancelamento de quatro shows da banda Ira! no Sul do Brasil. Era mais um episódio da polêmica recente envolvendo o grupo que surgiu nos anos de 1980 e faz parte de uma geração que marcou a história do rock nacional, junto com Titãs, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Capital Inicial, Barão Vermelho e tantas outras bandas.

Quem acompanha a trajetória do Ira! sabe que a banda tem um histórico de polêmicas e de posicionamentos firmes, em relação à política e à indústria musical. De acordo com os jornalistas e pesquisadores musicais Arthur Dapieve e Luiz Henrique Romanholli (2000), dentre os artistas do rock 80, o Ira!, juntamente com a Legião Urbana, foi a banda a segurar com mais firmeza a bandeira da ética.

Os shows foram cancelados nas cidades de Jaraguá do Sul (SC), Blumenau (SC), Caxias do Sul (RS) e Pelotas (RS). Os cancelamentos, segundo a produtora, foram resultados do abandono de patrocinadores e devolução de ingressos. Tudo porque em um show em Contagem (MG), dias antes, o vocalista Nasi gritou “sem anistia”, como forma de pedir punição aos golpistas do 8 de janeiro. Ele recebeu aplausos de parte do público, mas também algumas vaias, vindas de uma dúzia de Zé Golpinhos. Às vaias, o vocalista respondeu:

“Pra vocês que estão vaiando, eu vou falar uma coisa: tem gente que acompanha o Ira!, mas nunca entendeu o Ira! Nunca entendeu o Ira! Tem gente que acompanha a gente e é reacionário, tem gente que acompanha o Ira! e é bolsonarista, isso não tem nada a ver, gente! Por favor, vão embora! Vão embora da nossa vida! Vão embora e não apareçam mais em shows, não comprem nossos discos, não apareçam mais. É um pedido que eu faço”.

Talvez as palavras não tenham sido bem escolhidas. O problema desse discurso, feito no calor das emoções, é que ele lança luz em uma polarização entre esquerda e extrema direita, quando, nesse caso bem específico, a polarização é entre defensores da democracia e defensores do golpe. Nem todos os simpatizantes da direita ou que votaram em Bolsonaro necessariamente defendem golpe de estado.

Portanto, a ira de Nasi foi contra os golpistas. E golpe é crime! Quem defende golpe publicamente está defendendo crime publicamente. Golpe é crime previsto em nossa legislação assim como estupro e homicídio. E o fato de você simpatizar com um golpista não faz com que um golpe de estado deixe de ser crime. Do mesmo modo, simpatizar com um estuprador não faz o estupro deixar de ser crime.

Logo, não deveria ser razoável pedir aos artistas ou a quem quer que seja isenção e imparcialidade quando se está diante de uma polarização na qual há democracia de um lado e golpismo de outro. Golpe é crime e não se pode ser isento quanto a isso. Aqueles que vaiaram Nasi por causa de seu grito de “sem anistia” acham que o voto deles vale mais do que o dos outros. São pessoas que talvez, quando crianças, quando estavam perdendo o jogo de futebol ou de queimada, furavam a bola e acabavam com o jogo. Mas não é assim que nossa complexa sociedade e seu sistema político funcionam. Quem perde nas urnas deve esperar a próxima eleição.

O discurso de Nasi em Contagem levanta também uma questão: a dissonância entre a obra de um artista e a compreensão da obra por parte de seu público. Não é de hoje que o problema aparece. Em uma das vindas de Roger Waters ao Brasil, alguns fãs (bolsonaristas) ficaram indignados com os posicionamentos políticos do lendário vocalista do Pink Floyd em suas apresentações. Mas, convenhamos: para quem acompanha a carreira e as letras do artista isso não deveria ser surpresa nenhuma.

Da mesma forma, sobre o Ira!, a jornalista Mariliz Pereira Jorge chama a atenção para essa dissonância:

“Será que as pessoas que estavam no show em Contagem e vaiaram compraram ingresso e nunca prestaram atenção nas letras das músicas da banda? Nunca pensaram em que contexto histórico não só o Ira!, mas muitas bandas de rock nasceram? Para e pensa na letra de ‘Núcleo Base’, do Ira!, que é de 1985: ‘Eu tentei fugir / Não queria me alistar / Eu quero lutar / Mas não com essa farda’” [1].

A jornalista destaca que o Ira! é uma daquelas bandas surgidas no início dos anos 1980, nos últimos anos da ditadura empresarial civil-militar que cerceou direitos políticos e liberdades individuais, que censurou artistas e a imprensa. Foi nesse contexto e contra esse estado de coisas que o Ira!, os Titãs e tantas outras bandas influenciadas por um punk rock mais à esquerda eclodiram na cena musical do Brasil. 

Faz sentido gostar de uma artista, gostar de sua obra, mas discordar do conteúdo do ponto de vista político? Entendo que sim. A arte é livre e o público também. Mas isso é sempre uma pena, pois quando isso acontece deixa claro que algo está se perdendo na fruição da obra. Algo está se perdendo na comunicação entre artista e público. E também não dá para demonstrar muita surpresa quando o vocalista de uma banda como o Ira!, surgida no contexto em que surgiu, pede punição a gente que queria uma nova intervenção militar no país, influenciada pelo golpe de 64, e forçou uma barra para isso por meio de atos violentos. Sem contar que, no fundo, o texto da anistia visa proteger principalmente os idealizadores do golpe: políticos e militares de alto escalão que não tiveram coragem de dar as caras na Praça dos Três Poderes naquele 8 de janeiro.

A história da banda

Formada em São Paulo, em 1981, com forte influência do punk rock e também da estética mod e de bandas como o The Jam, a formação clássica do Ira! conta com Nasi (voz), André Jung (bateria), Ricardo Gaspa (baixo) e o lendário guitarrista Edgard Scandurra, considerado um dos melhores daquela geração anos 1980, com uma técnica peculiar de tocar: canhoto, ele toca com a guitarra invertida (feita para destro), mas sem alterar as cordas.

Desde o início de carreira a banda insurgiu contra gravadoras e as máfias de rádios FM, que exigiam grana (o famoso “jabá”) e a participação em shows gratuitos promocionais para tocar as músicas dos artistas. O mesmo acontecia no famoso Programa do Chacrinha, na Rede Globo. Foi nos bastidores do Chacrinha que ocorreu uma das tretas mais famosas do Ira! Em uma apresentação especial de Natal, a produção do programa exigiu que os diversos artistas entrassem no palco do estúdio com gorro de Papai Noel. O Ira!, que já não curtia fazer playback, não queria usar o gorro e não gostou da forma impositiva como a produção do programa agiu, ameaçando-os inclusive de nunca mais se apresentarem na Globo caso se negassem a usar o adereço. Resultado: na hora H os integrantes da banda largaram o gorro e saíram fora do estúdio. Apesar do boicote, ainda assim depois disso eles emplacaram a canção “Flores em você” na abertura da novela das oito “O outro” na emissora. Nada mal.

Mas nem tudo são flores na história do Ira! Um dos primeiros sucessos da banda, a canção “Pobre paulista” é considerada xenófoba e preconceituosa contra imigrantes nordestinos. Críticas que a banda sempre rebateu alegando que a letra era coisa de garotos que não sabiam bem o que estavam dizendo. Isso aliás é algo que deve ser destacado quando falamos sobre posicionamentos políticos de roqueiros. Normalmente os artistas de rock fazem sucesso muito jovens e por isso, por mais contraditório que isso possa soar em relação a este texto, é complicado esperar coesão plena desses músicos quando se trata de política. São artistas e não cientistas políticos (Tom Morello, ex-guitarrista do Rage Against the Machine e do Audioslave, é também cientista político formado por Harvard. Mas ele é exceção).

Nasi (cujo nome verdadeiro é Marcos Valadão) recebeu esse apelido no tempo da escola por ser muito encrenqueiro. A polêmica canção “Pobre paulista” e o apelido do vocalista (que ele faz questão de grafar com S e não com Z, para se dissociar da extrema direita) foram motivos para que, no início de carreira, o Ira! fosse associado por alguns críticos e produtores ao nazifascismo. Associação que não se sustentou ao longo da história da banda. Essas e outras confusões da banda são lembradas pelo crítico Júlio Ettori, para quem o Ira! é “a banda mais rebelde e maldita do rock nacional” [2].  

Claro que a postura do grupo gerou problemas para seus integrantes ao longo da carreira. Então esses cancelamentos de shows no Sul do Brasil não chegam a ser novidade na história do Ira!. No mesacast Inteligência Ltda, Nasi explica porque o Ira! não fez tanto sucesso comercial quanto outras bandas daquela geração, como Titãs e Legião Urbana:

“Eu vejo várias matérias: ‘Ah, o Ira, banda injustiçada’, realmente. Mas eu falo com muito orgulho, o Ira fez a sua escolha. Eu não lamento não ter vendido tantos discos como os Titãs, como Legião, mas entendo que foi uma escolha nossa. Algumas coisas, se eu voltasse no tempo eu repensaria, mas a touquinha não!” [3], disse o vocalista, ressaltando que rock, para ele, tem a ver com indisciplina, e relembrando o caso da imposição do gorro de Papai Noel no Programa do Chacrinha. “Imagina botar fogo numa touquinha?”, complementa Nasi, para as risadas no estúdio do mesacast.

O roqueiro reaça

O cancelamento dos shows da banda em cidades sulistas levantou mais uma vez a polêmica sobre a figura do roqueiro reaça. Esses fãs golpistas que supostamente devolveram os ingressos. Apesar da postura do Ira!, roqueiro reaça é uma figura comum que a essa altura não deveria causar muita surpresa. Falamos sobre isso ao comentarmos a posição negacionista do cantor Marcelo Nova (Camisa de Vênus) na ocasião da pandemia [4].

Vez ou outra, por conta de alguma declaração política feita por algum músico – ou como no caso do Ira! por conta da reação do público – surge no debate público falas a respeito do roqueiro reaça, sempre carregadas com um certo tom de indignação e surpresa, vindas de gente que se diz espantada com o fato de um roqueiro ser reacionário, de extrema direita ou conservador. Muita gente que se entende de esquerda ou progressista fala em decepção por causa de velhos roqueiros como Eric Clapton, Morrissey, Marcelo Nova, Lobão, Digão (da banda Raimundos) e Roger Moreira (Ultraje a Rigor), que adotaram posições reacionárias e até negacionistas (principalmente no período pandêmico).

Mas a figura do roqueiro reaça não deveria impressionar tanto, não deveria ser vista como um exemplo de pessoa contraditória. Por várias razões. Primeiro, porque quem se espanta com o roqueiro reaça, achando-o contraditório, é porque (1) não conhece a história do rock e não sabe que desde sua popularização, na década de 1950, o gênero sempre esteve vinculado a uma classe média branca (apesar das raízes negras), ou (2) bota muita fé no “progressismo” das classes médias brancas no Brasil e no mundo.

A classe média branca tem um potencial para o reacionarismo mais do que comprovado. Movimentos como o fascismo e o nazismo foram disseminados e consolidados em grande medida com base na força da classe média branca europeia. Nos Estados Unidos, onde o rock surgiu, mesmo bebendo da fonte da música negra e de artistas negros, logo em seu nascedouro esse gênero musical foi rapidamente embranquecido, e a indústria musical elegeu Elvis Presley, um branco, como o “rei do rock”. Não cabe aqui nenhuma crítica a Elvis como artista, muito menos uma acusação de que ele próprio seria racista. Não é isso! Aliás, Elvis chegou a abrir espaço para artistas negros em sua carreira e, de seu modo, se contrapôs ao conservadorismo da época. A questão é o que a escolha de um artista branco como ídolo maior de um estilo musical de origem negra revela sobre a indústria e, principalmente, sobre a sociedade e aquela audiência da época.

Mas isso foi na década de 1950. De lá para cá muita coisa mudou, certo? Mais ou menos. Basta ver o hall da fama do rock ao longo de sua história. Quantos ídolos do gênero são negros, pardos ou mulheres? São poucos os exemplos. A grande maioria é homem branco mesmo.

Também não estou afirmando que a classe média branca é necessariamente reacionária, mas que é preciso cautela quanto às expectativas políticas progressistas depositadas sobre ela. Se rappers como Emicida, MV Bill ou Mano Brown se tornarem reacionários no futuro, eu até ficaria um pouco surpreso, já que há anos o rap/hip-hop possui forte identificação com as periferias, onde está a grande maioria da classe proletária. Mas esse já não é mais o caso do rock, tão assimilado pela classe média branca e aos poucos distanciado da periferia (de onde veio o Ira!).

O reacionarismo de roqueiros não deveria mais causar espanto em tanta gente. Sobre o modo como o rock foi sendo aos poucos assimilado pelo mainstream e perdendo sua aura contestadora, vale a pena conferir uma série de videoensaios do canal Normose [5].

Em resposta à produtora que cancelou os shows do Ira!, uma outra produtora dos shows da banda fez uma postagem em tom de deboche, usando a mesma letra e visual da mensagem da produtora anterior, confirmando que o show em Porto Alegre está de pé:

“Informamos que devido aos últimos acontecimentos envolvendo a banda Ira!, não temos outra alternativa a não ser comunicar que o show ‘Ira! Acústico 20 Anos’, que estava programado para o dia 8 de novembro, sábado, no Auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre, irá ocorrer normalmente (e a previsão é de casa cheia, viu?)”. [6]

Enfim, mais uma treta na história do Ira!, a banda mais maldita da geração roqueira oitentista. Nada que eles não estejam acostumados. Vida que segue. Viva o Ira! Golpistas na cadeia!

Referências:

DAPIEVE, Arthur; ROMANHOLLI, Luiz Henrique. Guia de Rock em CD: uma discoteca básica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

[1] A direita cancela o Ira! | De Tédio a Gente Não Morre

[2] O IRA! ERA UMA BANDA MALDITA – E ESTA É A HISTÓRIA PROIBIDA DE TRETAS, SEXO E DR*OGAS

[3] POR QUE a BANDA IRA! NÃO VENDEU TANTOS DISCOS QUANTO TITÃS e LEGIÃO URBANA? – NASI e REGIS TADEU

[4] Dia Mundial do Rock: roqueiros reaças, falácias e negacionismo <https://apatria.org/politica/dia-mundial-do-rock-roqueiros-reacas-falacias-e-negacionismo/>

[5] Por que o ROCK virou coisa de reaça? (partes 1, 2 e 3)

[6] A mensagem debochada de produtora de Porto Alegre, que manteve show do Ira! <https://igormiranda.com.br/2025/04/ira-mensagem-produtora-porto-alegre-mantem-show/>

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