Anatel reage para asfixiar internet do crime organizado
Nova exigência de outorga para pequenos provedores busca enfrentar informalidade, fortalecer a regulação e combater controle de facções criminosas e milícias
Publicado 10/07/2025 14:36 | Editado 10/07/2025 18:35

Nos últimos anos, a prestação de serviços de internet em áreas periféricas e de baixa atratividade comercial passou a ser dominada por pequenos provedores. Muitos deles foram responsáveis por ampliar a conectividade onde grandes operadoras não viam interesse. No entanto, brechas regulatórias também criaram espaço para a infiltração de organizações criminosas no setor, em especial no Rio de Janeiro, onde o tráfico de drogas e as milícias encontraram na internet uma nova e rentável frente de negócios.
Diante da gravidade do cenário, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) decidiu suspender a norma que dispensava a outorga para empresas com até 5 mil acessos. A partir de agora, todas as operadoras, inclusive as de pequeno porte (PPPs), deverão solicitar autorização formal até 25 de outubro de 2025. Caso contrário, os cadastros serão extintos e o sinal interrompido.
A medida tem impacto direto sobre a informalidade, a segurança pública e a qualidade do serviço.
Internet nas mãos do crime: dados alarmantes do RJ
Segundo levantamento da Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, 80% das empresas de internet que operam em favelas da capital fluminense estão sob controle ou são associadas ao crime organizado. O estudo cruzou dados da Anatel com denúncias do Disque-Denúncia e da Ouvidoria da SSP e revelou que em 813 comunidades, o domínio de milícias e facções como o Comando Vermelho (CV) e o Terceiro Comando Puro (TCP) é quase total no setor de telecomunicações.
Essas organizações usam provedores clandestinos como fachada para lavar dinheiro, exercer controle territorial e extorquir moradores, ao mesmo tempo em que promovem a vandalização das redes legais, forçando consumidores a migrar para seus serviços.
A dispensa que virou brecha para o crime
A regra que isenta de autorização empresas com até 5 mil acessos nasceu com um objetivo legítimo: democratizar a internet e fomentar sua expansão em áreas remotas ou de baixo interesse comercial. No entanto, como aponta a própria Anatel, a realidade mudou.
“A informalidade e a ausência de controle efetivo comprometem a sustentabilidade da prestação do serviço e favorecem práticas irregulares e criminosas”, afirmou o presidente da agência, Carlos Baigorri.
Entre as 1.734 prestadoras registradas no estado do Rio de Janeiro, 912 atuavam com dispensa de outorga, e muitas delas não prestavam informações obrigatórias sobre acessos ou faturamento, dificultando a fiscalização e fomentando a concorrência desleal.
Um plano abrangente para reordenar o setor
A decisão da Anatel está inserida no Plano de Ação para Regularização da Prestação do Serviço de Banda Larga Fixa, que combina medidas técnicas, regulatórias e de fiscalização, articuladas com órgãos de segurança pública e agências fiscais.
Entre as principais medidas estão:
- Obrigatoriedade de outorga para todas as prestadoras – inclusive as que antes operavam sob dispensa;
- Cancelamento de cadastros após 120 dias para empresas que não solicitarem autorização;
- Bloqueio do acesso à infraestrutura por provedores clandestinos, a partir de dados cruzados com fornecedores;
- Criação de um selo de regularidade para identificar empresas legais;
- Fortalecimento dos canais de denúncia e campanhas educativas;
- Revisão das regras de outorga para evitar novas brechas;
- Ações de fiscalização conjunta com forças policiais e fazendárias.
A supervisão contínua e o uso de tecnologia para rastrear equipamentos ilegais e monitorar contratos com operadoras de backbone também fazem parte do esforço.
Crime usa a rede como nova fronteira econômica
De acordo com investigações da SSP-RJ, o mercado ilegal de internet se tornou mais lucrativo do que o próprio tráfico de drogas em algumas comunidades. As facções chegaram ao ponto de ameaçar com armas equipes técnicas de grandes operadoras e danificar seus cabos para forçar a adesão a seus serviços.
Com a concentração de empresas ilegais em áreas de baixo IDH, essas redes criminosas passaram a desempenhar o papel de “monopólio forçado” do acesso digital. Muitos moradores não sabem que estão contratando empresas irregulares ou, em alguns casos, não têm opção.
O desafio de equilibrar inclusão digital e controle legal
Embora as prestadoras de pequeno porte (PPPs) tenham sido essenciais para expandir a internet — respondendo por mais de 53% dos acessos em 2023 — a falta de transparência e controle regulatório criou um cenário preocupante.
A Anatel reconhece esse desafio: como garantir conectividade em regiões pobres sem abrir espaço para o crime? A resposta, segundo a agência, é fortalecer o monitoramento, exigir regularidade e apoiar quem cumpre a lei.
“Essa disparidade penaliza as empresas corretas, inibe investimentos e prejudica o consumidor final”, afirmou Baigorri.
O que muda para as empresas e os consumidores?
- Empresas pequenas devem entrar com pedido de outorga até 25/10/2025;
- Quem não fizer será retirado do cadastro e terá os serviços interrompidos;
- Consumidores devem verificar a regularidade dos provedores, especialmente em áreas com histórico de atuação criminosa;
- Fornecedores de infraestrutura serão corresponsáveis por manter parcerias com empresas não outorgadas;
- A fiscalização será reforçada, com prioridade para áreas mapeadas como de risco.
Por um mercado mais justo e transparente
A decisão da Anatel, embora tardia, marca um avanço importante na tentativa de devolver o controle da conectividade à legalidade. Ao exigir que todos os provedores de internet operem com transparência, autorização e prestação de contas, a agência cria as bases para um setor mais equilibrado, competitivo e seguro.
Mais do que uma ação regulatória, trata-se de um gesto político e institucional contra o avanço das organizações criminosas sobre a infraestrutura digital do país. Se bem executado, o plano pode inspirar políticas públicas em outras áreas igualmente capturadas por estruturas informais — da energia à água, do transporte à segurança.