"360": Em lugar nenhum
A mundialização mercadológica e a frieza das relações afetivas são abordadas neste filme do diretor brasileiro Fernando Meirelles
Publicado 30/08/2012 15:14
Nas cinco histórias entrelaçadas pelo brasileiro Fernando Meirelles em “360”, os personagens transitam por aeroportos, hotéis, bares e lanchonetes, configurando o lugar nenhum desta época de mundialização capitalista. Pois circular fora de seu eixo principal: residência, trabalho, cidade, significa não estar preso a espaço algum. Todas as raízes são, assim, estilhaçadas. Surge daí, a esquizofrenia, o desapego ao outro, o individualismo, submetendo as camadas sociais às imposições mercadológicas, ou seja, ao produto que circula sem ter um só ponto de fabricação. E o ser humano repete deste modo a produção de mercadoria ao não fixar em lugar algum.
A começar pelo executivo Michael (Jude Law), que ao término de suas exaustivas reuniões, entrincheira-se no bar do hotel à espera da sexprof (profissional do sexo), para relaxar. Mesmo neste instante não consegue se livrar do concorrente alemão (Moritz Bleibtreu), disposto a absorver sua empresa. Em qualquer situação, as teias do mercado mundializado o agarram. É o risco de circular por ambientes congestionados de pessoas, sem estar a elas vinculado. Nenhum espaço sintetiza isto melhor do que o aeroporto.
Ele dá a impressão de unir os viajantes mundializados. Nada mais enganoso. O inglês (Anthony Hopkins), que se encontra com a brasileira Laura (Maria Flor), é o ser mais deslocado desta Babel, onde as pessoas mais se distanciam do que se juntam. E quando o fazem é de maneira fugaz. Como Tyler (Bem Forster), o traficante em liberdade condicional, que se une a Laura. Eles estão ali de passagem, uma vez no avião suas vidas assumem outro caráter. Não são diferentes das irmãs eslovacas, Mirka (Lucia Siposová) e Anna (Gabriela Marcinkova), em sua tentativa de dar-se bem fora de seu país.
À sexprof Mirka, codinome Blanka, só interessa o dinheiro. Não lhe interessa a quem se vende; se a Michael ou ao traficante internacional (Karl Markovics), desde que a remunere. É um negócio como qualquer outro, fechado via celular, outro lugar nenhum. As histórias destes personagens, montadas pelo roteirista Peter Morgan (“A Rainha, 2006”), a partir da peça “La Ronde”, 1896/97, do austríaco Arthur Schnitzler, se entrelaçam, formando uma teia, cujos fios atestam o alheamento destes tempos de crise capitalista.
Personagens são apenas arquétipos
A relação de Michael com a companheira Rose (Raquel Weisz), mãe de sua filha, é tão distante quanto é estreita com o mundo dos negócios. Isto dá liberdade a ela para ligar-se ao fotografo brasileiro (Juliano Cazarré), sem pensar em traição. Quando ela e Michael se reencontram é como se nada ocorresse: cada um tem a sua vida e entre eles está a filha. O mesmo se dá com Laura ao vingar-se do namorado, o fotografo brasileiro, tendo um caso com Tayler. Ou de Blanka tentando conquistar a sonhada independência financeira. Em nenhum desses casos entra a afetividade.
O caso mais emblemático é o do argelino (Jamel Debbouze). Muçulmano, em crise conjugal, ele sai à procura da ajuda de sua igreja e da psicanalista para decidir se fica ou não com a amante, também casada. Ele está ali para compor o mosaico mundializado, só isto. Traduz o subtexto do filme que trata de fragmentadas relações amorosas, de solidão driblada com sexprof, de medo do futuro, caso das irmãs eslovacas, de retorno às raízes, exemplo de Laura, e de culpa pelo mau relacionamento com a filha, caso do inglês. Enfim, bons temas.
Contraditoriamente, estes subtextos terminam por expor as fragilidades do filme. Os personagens são arquétipos, suas “histórias” não configuram situações que envolvam o espectador. São fios. O eixo central, a mundialização, é tênue. Não existem ações de fato que o concretize. Aeroporto, bar e quarto de hotel são como shopping. São todos iguais. Pouco importa se a ação se passe em Nova York, Berlim, Londres, Paris, Rio de Janeiro, elas jamais aparecem, nem ganham vida. A câmera de Meirelles não se abre para situá-las e aos personagens. Pouco importa a língua que eles falem.
Salvo na história melhor resolvida, a das irmãs eslovacas, há clara tipificação do fluxo urbano, das intenções e dos obstáculos impostos a elas. E, sobretudo, há humor em seu desfecho. É um belo achado, elas ganharem a liberdade em cima do tráfico. Mostra que é possível sobreviver às armadilhas da megalópole e ser mais esperto do que os traficantes. O riso de Blanka e a alegria de Anna são contagiantes. Fora isto, é um filme fechado em si mesmo.
Há mais preocupação com seu ritmo, o vai-e-vem dos personagens, a ação que não se conclui (e não é elipse). Segue a tendência hollywoodiana de o movimento ditar a estética, a narrativa, sem tempos mortos, preparações, identificação com o personagem. O filme acaba por perder a alma, a emoção. Interligar as histórias é insuficiente. Robert Altman, em seus belos mosaicos (“Nashville”,1975), consegue manter de pé a narrativa, dar vida aos personagens, tipificar o ambiente e desconsertar. É uma lição que parece esquecida.
“360”.
Drama. França/Reino Unido/Áustria/Brasil.
2011. 115 minutos.
Fotografia: Adriano Goldman.
Música: Orin Beaton.
Roteiro: Peter Morgan, baseado na obra “La Ronde”, de Arthur Schnitzler.
Direção: Fernando Meirelles.
Elenco: Anthony Hopkins, Jude Law, Raquel Weisz, Maria Flor, Juliano Cazarré, Lucia Siposová.