80 Anos do IDORT*

Mundo afora, um dos debates que mais se aprofundou no período pré-1930 foi o da racionalização do trabalho. Ele ganhou organização material após a tomada de poder pelas dissidências oligárquicas do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba, em outubro de 1930. Em São Paulo, estado então de maior crescimento industrial, criou-se o Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), em 23 de junho de 1931.

No discurso de fundação, Aldo Mário de Azevedo salientou que com o endurecimento da luta de classe e o acirramento da concorrência intercapitalista, em um período de crise e revolução, a racionalização do processo de trabalho tinha o significado de procurar “resolver o ‘aparente paradoxo’ das intenções de melhorar a qualidade da produção e baratear seus custos, aumentando a remuneração do operário e elevando o seu padrão de vida”.[1]

As publicações do IDORT tornaram-se referência nacional para o debate e a implementação de técnicas “científicas” de organização do trabalho. À frente do Instituto, o engenheiro Armando de Salles Oliveira, futuro interventor e governador de São Paulo, além de candidato à Presidência da República, em 1937. Como diretor-técnico, Roberto Simonsen, uma das maiores lideranças empresariais do estado. Seguia-se o modelo de nova relação entre o capital e o trabalho, a partir do modelo do Instituto Internacional de Organização Científica do Trabalho, com sede em Genebra, Suíça.

Por trás da organização racional das empresas e do trabalho, os princípios do taylorismo e a preocupação com as consequências sociais das medidas que preconizavam orientações sobre higiene das oficinas e dos trabalhadores, ao tratamento com o pessoal, o lazer e a família do operário. No fundo, a busca da harmonia, a solidariedade e a cooperação entre o capital e o trabalho.

Barbara Weinstein demonstra que, em contrapartida às visões arbitrárias dos fazendeiros e usineiros antigos, os novos gerentes-industriais passaram a definir os mais variados problemas relacionados à organização da produção no trabalho, e mesmo fora das fábricas, como sendo questões puramente técnicas, e não questões sociais, as quais deveriam “ser resolvidas sistematicamente, de forma científica”. Uma abordagem que não iria apenas “aumentar a produtividade, mas também promover a paz social”.[2]

Procurava-se, então, deslocar a “questão social” do espaço politicamente construído pela consciência de classe dos trabalhadores para o espaço no qual a política não deveria existir, sendo um problema a ser administrado apenas tecnicamente. A estratégia era sair da arena da luta de classes dos trabalhadores para o espaço do consenso social. [3]

Em janeiro de 1932, saiu o primeiro boletim do IDORT de São Paulo. No 7º, argumentava-se que “a racionalização da atividade técnica e econômica do mundo” trouxera resultados não mais restritos “ao campo da maquinaria e de sua melhoria da produção a um melhor mercado”, mas sim, uma colaboração estreita dos problemas industriais, econômicos e sociais”. Os problemas sociais do trabalho, segundo essa visão, não poderiam ser resolvidos fora da organização científica e racional.[4]

Em outra edição, o IDORT apresentou vários argumentos a favor da racionalização. Destacava-se a possibilidade da elevação do padrão de vida de operários e capitalistas, trazendo melhor cooperação entre eles, esclarecendo os seus mútuos fins e os passos para chegar a eles. Além disso, era defendida a remoção dos obstáculos de classe, buscando as promoções sobre a qualidade e a quantidade do trabalho individual, abrindo assim oportunidades de carreira que as distinções de classe quase tornaram impossível no passado.[5]

A argumentação da harmonização capital-trabalho aparecia em diversos boletins. Quanto mais avançavam os conflitos sociais, mais o IDORT dizia que esse binômio servia de campo de manobra para as “reivindicações das doutrinas extremistas”, sendo mencionada freqüentemente pelos líderes das “lutas de classes”, os quais o associavam sempre aos “problemas econômico-sociais da produção e da distribuição”, tornando-se generalizada a crença de que capital e trabalho podiam existir separados, como inimigos irreconciliáveis, em posições antagônicas. Para o Instituto, todos os que trabalhavam e produziam eram “ora trabalhadores, ora capitalistas, conforme as circunstâncias do momento”.[6]

Esse argumento foi desenvolvido por Aldo Mário de Azevedo, em palestra realizada no Rotary Clube de São Paulo, em 14 de setembro de 1934, justamente quando os ânimos estavam acirrados e os conflitos sociais aumentavam no período imediatamente pós-Constituinte.

Em 19 de outubro de 1936, o governo federal, através do decreto assinado pelo presidente Getúlio Vargas e pelo ministro da Justiça Vicente Ráo, reconheceu o IDORT como instituição de utilidade pública em razão dos serviços prestados a São Paulo e ao Brasil.

Passados 80 anos, em tempos de toyotismo (e suas características como a flexibilização da produção, a automatização, o controle da qualidade total, o trabalho em equipe, o Kanban e o Just in Time, etc.), quando novos discursos defendem o fim da luta de classes e do proletariado, justificados pela incidência da robótica, da microeletrônbica e da informática, continua um desafio aos trabalhadores conhecer e dominar as formas de racionalização técnica do trabalho.

Sobretudo para a contraposição ao domínio ideológico e político das diferentes frações de classe da burguesia e de seus intelectuais orgânicos, os quais têm atualizado ao longo do tempo os argumentos iniciados pelo IDORT.

Especialmente, no que tange ao domínio das novas tecnologias e seus respectivos argumentos em torno das novas formas de educação que visam à formação para o trabalho, fundamentando teoricamente as estratégias discursivas do “fim do mundo do trabalho” e a reverberação sobre supostas sociedades pós-capitalistas, conceituadas ardilosa e ideologicamente de Era da Informação ou Sociedade do Conhecimento.

Notas
* Este artigo apresenta algumas observações desenvolvidas na tese O fantasma do medo: o Rio Grande do Sul, a repressão policial e os movimentos sócio-políticos (1930-1937), defendida na área de História Social do Trabalho, na UNICAMP, em 2004, p. 103-106, orientada pelo Prof. Dr. Michael MacDonald Hall.
[1] Apud ANTONACCI, Maria Antonieta M. A vitória da razão (?). O IDORT e a sociedade paulista. São Paulo: Marco Zero/CNPq, 1993, p. 116-7.
[2] WEINSTEIN, Bárbara. (Re) Formação da classe trabalhadora no Brasil (1920-1964). São Paulo: Cortez, CDAPH-IFAN, Universidade de São Francisco, 2000, p. 21. Sobre a questão envolvendo o Estado e a racionalização, ver especialmente o cap. 2 de TENCA, Álvaro. Razão e vontade política. O IDORT e a grande indústria nos anos 30. Dissertação de Mestrado, Campinas: IFCH-UNICAMP, 1987, p. 77-82. Sobre expansão econômica e racionalização do trabalho, ver também WOLFE, Joel. Working women, working men. São Paulo and the rise of Brazil’s Industrial working class, 1900-1955. Durham/London: Duke University Press, 1993, p. 42-6.
[3] Esse tipo de deslocamento, como explica Vera da Silva Telles, interessa, “porque é nele que se evidencia a lógica de destituição de direitos por via do esvaziamento ou neutralização dos espaços de conflitos, de representação, de negociação e ação”, uma espécie de “redefinição conservadora das relações entre Estado e sociedade”. Cf. A “nova questão social” brasileira: ou como as figuras de osso atraso viraram símbolo da nossa modernidade. In. Cadernos CRH. Salvador: FFCH/UFBA, n. 30-1, jan./dez. 1999, p. 85.
[4] Esse artigo era uma tradução do artigo “L’Organizzazione scientifica del lavoro”, publicado em Roma, pelo governo fascista de Benito Mussolini, em janeiro de 1932. Cf. A organização racional do trabalho – Do problema técnico ao problema social. In. IDORT, n. 7, ano I, julho de 1932, p. 3. Arquivo Edgard Leuenroth/UNICAMP, Coleção Revistas Brasileiras. Durante a década de 1930, muitos políticos e participantes do governo Vargas, integrantes do clero e da imprensa, utilizaram o modelo italiano de relação entre o capital e o trabalho para a defesa de implementação das reformas sociais e trabalhistas no Brasil. Em outro número da revista do IDORT, em seu editorial, escreveu-se que alguns supõem que “racionalização é um processo de trabalho originário do bolchevismo ou pelo menos com grande afinidade com esse sistema social”, porém, “nada mais errado” seria pensar isso. Cf. a revista n. 10-11-12, out./nov./dez. de 1932, p. 1.
[5] Ver: Nove argumentos a favor da racionalização. In. IDORT, n. 15, ano II, março de 1933, p. 1.
[6] Cf. O capital e o trabalho: um equívoco fundamental. In. IDORT, n. 33, ano III, setembro de 1934, p. 193-7.

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