A Alca vem na bagagem de Bush

Em poucas palavras, o embaixador norte-americano no Brasil, Clifford Sobel, explicou a missão de George W. Bush em seu périplo pela América Latina. “Nosso foco para a América Latina está em nossos amigos. A agenda com Brasil, Argentina, Peru e outros país

Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, em sua edição do dia 26 passado, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos prepara uma ofensiva diplomática para eliminar barreiras burocráticas às empresas norte-americanas que atuam na América Latina. “Nossos objetivos em relação à criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) ainda são claros. Mas sabemos que no momento não há como ter negociações. Ao contrário do que se disse, não ignoramos a região. As relações com o Brasil estão em um momento extremamente positivo, mas todos temos consciência de que o fluxo de importações e exportações poderia ser bem maior”, disse o vice-presidente de Comércio dos Estados Unidos, Walter Bastian.


 


Opinião é opinião — cada um tem o direito de ter a sua. Entender de fato o que está se passando é outra questão. A verdade é que os motivos norte-americanos para essa nova ofensiva vão além do comércio. São objetivos de Estado. De um lado, está um Estado imperialista, com interesses específicos consolidados politicamente. De outro, estão Estados comandados por forças populares que tentam consolidar políticas soberanas que defendam seus interesses. São água e óleo. Essa nova estratégia norte-americana faz parte de uma espécie de redivisão internacional do trabalho, pela qual a produção ficaria para os malaios, os indonésios, os mexicanos, os brasileiros. O “Primeiro Mundo” se limitaria a produzir idéias, modelos, campanhas de marketing, logística, sites, comunicação visual, administração, finanças e desenvolvimento tecnológico.


 


As empresas norte-americanas fora dos Estados Unidos já vendem algo próximo de 1 trilhão de dólares por ano. Isso é quatro vezes mais que toda a receita de exportação dos Estados Unidos e sete vezes mais que todo o déficit comercial norte-americano. A América Latina sob a égide da Alca seria o paraíso para essas empresas. Eis a tradução límpida do que Bastian quis dizer com sua crítica aos limites ao fluxo de importações e exportações entre Brasil e Estados Unidos. Quando Luis Inácio Lula da Silva chegou à Presidência da República, uma de suas primeiras ações foi a de desmontar a trama criada pelo governo anterior para a adoção da Alca. Esse é um dos principais motivos do fel que os conservadores destilam contra as atuais lideranças do Itamaraty.


 


Nó da política comercial brasileira


 


Mas para quem vê as coisas com os pés na realidade o cenário é outro. Os fatos mostram que durante a “era FHC” exportar era uma das coisas que o Brasil não fazia bem. Se fizesse, não haveria tanta gente — Apex, Camex, Decex, Funcex, CCEX, Secex, Cacex — rimando e remando para fazer do Brasil um exportador medíocre. Quando FHC deixou Brasília, o Brasil respondia por apenas 18% das exportações latino-americanas. Outro exemplo da debilidade brasileira à época: em 1997, o país exportou 109 milhões de dólares em frutas — só 0,43% das vendas internacionais do produto no período, que foram de 25 bilhões. (Pior: o Brasil comprou 237 milhões de dólares em frutas naquele ano, amargando, numa categoria em que teria significativas vantagens competitivas, um déficit de 128 milhões.)


 


O Brasil era, enfim, um exportador acanhado. Várias vezes, e em muitos aspectos, canhestro. Eis a questão: por quê? A análise deve partir da natureza econômica daquele governo. No imaginário daquela gente existe a idéia de que o mercado externo se reduz aos Estados Unidos e à Europa. Empresa brasileira molhando os pés em águas internacionais do Sul do planeta era uma imagem que jamais freqüentou o pensamento daquela “era”. Para eles, a idéia de que o Brasil deveria fincar sua bandeira em outras terras soava exótica. Quando a política externa do governo Lula chegou, o Brasil logo mostrou como desataria o nó da política comercial brasileira, responsável por seguidos déficits desde a implantação do “Plano Real”: o governo sairia pelo mundo, disputando terreno em vários mercados. Para os novos líderes do Itamaraty, eventuais perdas em uma trincheira mundo afora poderiam ser compensadas por ganhos em outra.


 


Escandalosos subsídios agrícolas


 


Em agosto de 2002, Lula, ainda candidato à Presidência da República, entregou uma carta a FHC, durante o encontro com os candidatos no Palácio do Planalto, em Brasília, na qual disse que era urgente “gerar um elevado superávit comercial, fundado no aumento expressivo das exportações, de modo a diminuir a vulnerabilidade do país com relação à volátil liqüidez internacional”. “Isso requer, de imediato, uma ampla ofensiva diplomática, que mobilize todas as embaixadas e consulados brasileiros para apoiar o esforço exportador do Brasil. Exige, além do mais, uma ação decidida nas frentes de negociação internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), contra o protecionismo injustificado e os subsídios indevidos dos países ricos que prejudicam as vendas de nossos produtos, como o suco de laranja, o açúcar, a soja e o aço, entre outros”, dizia a carta.


 


Na sua posse, Lula disse que, “em relação à Alca, nos entendimentos entre o Mercosul e a União Européia, na OMC o Brasil combaterá o protecionismo, lutará pela sua eliminação e tratará de obter regras mais justas e adequadas à nossa condição de país em desenvolvimento”. “Buscaremos eliminar os escandalosos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos que prejudicam os nossos produtores privando-os de suas vantagens comparativas. Com igual empenho, esforçaremo-nos para remover os injustificáveis obstáculos às exportações de produtos industriais. Essencial em todos esses foros é preservar os espaços de flexibilidade para nossas políticas de desenvolvimento nos campos social e regional, de meio ambiente, agrícola, industrial e tecnológico”, afirmou.


 


Preceitos democráticos


 


Lula disse ainda que a grande prioridade da política externa do seu governo seria “a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social”. “Para isso é essencial uma ação decidida de revitalização do Mercosul, enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas do significado da integração. O Mercosul, assim como a integração da América do Sul em seu conjunto, é sobretudo um projeto político. Mas esse projeto repousa em alicerces econômico-comerciais que precisam ser urgentemente reparados e reforçados”, disse o presidente.


 


Lula disse com palavras claras que priorizaria as relações com os países vizinhos. “Cuidaremos também das dimensões social, cultural e científico-tecnológica do processo de integração. Estimularemos empreendimentos conjuntos e fomentaremos um vivo intercâmbio intelectual e artístico entre os países sul-americanos. Apoiaremos os arranjos institucionais necessários, para que possa florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul. Vários dos nossos vizinhos vivem hoje situações difíceis. Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas possibilidades, para encontrar soluções pacíficas para tais crises, com base no diálogo, nos preceitos democráticos e nas normas constitucionais de cada país”, afirmou.


 


Novas relações internacionais


 


O presidente também falou das relações de seu governo com os Estados Unidos e a União Européia. “Procuraremos ter com os Estados Unidos da América uma parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo. Trataremos de fortalecer o entendimento e a cooperação com a União Européia e os seus Estados-Membros, bem como com outros importantes países desenvolvidos, a exemplo do Japão”, disse. Mas ressaltou que não deixaria de dar atenção a outras regiões do planeta. “Aprofundaremos as relações com grandes nações em desenvolvimento: a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul, entre outros. Reafirmamos os laços profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa disposição de contribuir ativamente para que ele desenvolva as suas enormes potencialidades”, afirmou Lula.


 


O discurso reforçou o aspecto político das novas relações internacionais do Brasil. “Visamos não só a explorar os benefícios potenciais de um maior intercâmbio econômico e de uma presença maior do Brasil no mercado internacional, mas também a estimular os incipientes elementos de multipolaridade da vida internacional contemporânea. A democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer espécie é tão importante para o futuro da humanidade quanto a consolidação e o desenvolvimento da democracia no interior de cada Estado”, disse o presidente.


 


Verdadeira marca da maldade


 


Com essa política, o Brasil ajudou a despachar o conservadorismo sul-americano, no que diz respeito a políticas externas — com expressões de pesar e desapontamento manifestadas pela mídia —, para a vala comum onde jazem as carcomidas idéias neoliberais que no passado recente floresceram na região. Por aqui, a maior parte do encanto com o neoliberalismo já se desfez há tempos, moído por índices vergonhosos de injustiças sociais, pela violência, pela inépcia geral da administração e pelo que existe de pior na política. Com o tenebroso desfile público das práticas de gangsterismo que se sucederam em volta desses governos, os povos da região deram demonstrações de não querem mais ver seus países no balaio geral de roubalheira, irresponsabilidade e primitivismo que marcaram as políticas neoliberais. São práticas que fizeram seus defensores perderem o odor de santidade com o qual se apresentavam ao público.


 


Mas a verdadeira marca da maldade está impressa no DNA dessa gente. Infelizmente, a democracia do jeito que ela é entendida e praticada atualmente em boa parte do mundo abre as portas para todo tipo de aventureiro, impostor ou gângster que queira se aproveitar dela para impor seus desatinos. O resultado de tantas deformações é que essa gente acha que a vida pública deve ser uma vasta operação comercial. É o sistema que gera essa gente, da mesma maneira que a água parada gera o mosquito da dengue. Lutemos, portanto, contra esse sistema dizendo, em alto e bom som, ao presidente norte-americano quando ele tocar em qualquer parte do solo latino-americano: Fora, Bush!


 


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Itamaraty: uma fortaleza de Lula contra Alckmin e Bush


http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=1147


 


 


 


 

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