A cristalização de uma transição?

Não se trata de replicar a propalada que alude a existência de condições reais de retomada do crescimento por conta de uma suposta “arrumação da casa”. Não, não se trata disso. Estou tratando de condições objetivas que foram criadas à retomada do projeto

Se fosse seguir a voga que nos invadiu – via ciência econômica – na década de 1990, poderia geometrizar um modelo puro à transição que serviria à complicar para logo em seguida abandonar o enunciado. Ou então, construiria modelagens econométricas bem “científicas”, que no fundo serviria somente – nas palavras de Ignácio Rangel – pour épater le bourgeois. Digo tal para demonstrar que a atividade econômica atual é – e muito – baseada nesta trapaça aplicada de mil maneiras, como pressuposto à generalização do objeto, seja da economia, seja de outros campos de atividade científica.


 



Condições criadas



Analisar as possíveis conseqüencias do segundo mandato do presidente Lula, exige um caminho muito mais tortuoso, porém muito mais honesto. Este caminho dá muito menos trabalho à matemática e infinitamente, mais emprego à história e também à filosofia. Desculpem se estou sendo prolixo, mas se no segundo turno das eleições foi marcado pela demarcação de territórios, já é hora, também de demarcar territórios no campo do método científico.


 


Substanciando, as chamadas condições criadas à retomada do novo projeto se baseia, no campo da política, em alguns elementos: nitidez maior de propostas , ênfase dada a centralidade do crescimento mais acelerado como meio de alcançar objetivos sociais, diminuição da bancada do campo conservador na Câmara dos Deputados, derrotas do latifúndio feudal pró-imperialista em estados como a Bahia, início de contestações mais duras à política monetária e o mais importante sob o ponto de vista mais estratégico: o nacionalismo ressurgiu com força, como por exemplo, no caso das denúncias das privatizações na era FHC.


 


A adormecida subjetividade popular foi sacudida tanto pelo sucesso dos programas sociais do governo. Isto redundou na elevação do presidente Lula à mesma condição que ocupa Getúlio Vargas: um líder nacional e popular, reserva de valores que vão desde a sensibilidade social à encarnação de um patriotismo alojado na mente do povo em detrimento aos próceres do capital financeiro, sediado historicamente em São Paulo outrora berço dos comerciantes de importação e exportação derrotados na Revolução de 1930.


 


A correlação de forças



O ponto nevrálgico à cristalização da transição por nos desejada encontra-se na correlação de forças assentada em nossa sociedade. O leitor poderá fazer objeções afirmando que os dois principais estados da federação, mais o Rio Grande do Sul, elegeu governadores ligados ao principal partido da oposição.


 


Sim tem razão, mas não podemos perder de vista que a grandeza do país e a complexidade de nossa formação social é espelhada nas diferentes matizes que um determinado partido político venha a ter. Desta forma, digamos claramente e corajosamente que tanto Serra, quanto Aécio Neves não são a mesma coisa que FHC e Alckmin. São políticos muito mais alhieios à uma consertação nacional, a um pacto político pelo desenvolvimento.


 



De forma generalizada, o caso do Rio Grande do Sul também dá margem de manobra à um acordo pelo simples fato de o endividamento do RS tornar impossível e inviável sua governança sem uma relação estreita com o governo federal.



Outro elemento atenuante do quadro da correlação de forças encontra-se justamente na retumbante vitória do presidente Lula e seus mais de 20 milhões de votos de distância ante seu oponente. Isto não é desprezível e sinaliza que um novo elemento entrou nesta jogada: as classes D e E. Seria superficial afirmar que os programas sociais do governo é por si só o responsável por isso.



Não, neste caso a própria crueldade com que foi aplicado o programa neoliberal no Brasil também tem culpa no cartório desta ascensão. Outro fator que se relaciona com isto foi o positivo papel dos movimentos sociais na mobilização destas parcelas do povo na resistência.


 


O papel histórico do PT e a mídia


 


E por que não atribuirmos à própria natureza do PT seu histórico papel no alavancamento das classes D e E ao centro do cenário político nacional?


 


Ora, o grande mérito do PT na história política brasileira reside justamente na articulação, via igreja, de todo esse povo, quase lúmpen, em torno de justas bandeiras como as questões social e democrática. Aliás o PT, em suas virtudes, é expressão desta esquerda latino-americana criada na esteira da Teologia da Libertação com a finalidade de politizar o povo pobre e oprimido e sensibiizar acerca de sua potencial força política.


 


Neste caso, cabe a nós, do campo patriótico, fazer a contenda tentando alçar essa consciência política criada ao longo dos anos a um outro patamar. Ao patamar da luta que envolve o projeto nacional em contraponto ao imperialismo, não deixando espaços para que este mesmo imperialismo não se utilize esse pressuposto de diferenças em pról de seus desejos. Exemplo da ação do imperialismo está na falsa dicotomia – que se transformou em senso comum na esquerda brasileira – existente entre a grande produção agrícola (agronegócio) e a chamada “agricultura familiar”, ou melhor dizendo, pequena produção de alimentos.


 


A própria ascenção destas camadas do povo ao centro do processo é força a se considerar ente o próprio papel que a mídia tem cumprido no Brasil desde a década de 1990. A pressão que a mídia exerce hoje, após a retumbante vitória de Lula, está concentrada na manutenção da atual orientação econômica. É a tal da história de se entregar os anéis para não entregar os dedos. Em simplesmente todos os cadernos de economia de todos os jornais a principal pauta é a necessidade de se manter o “ajuste fiscal”, o “combate à inflação” e o câmbio flutuante (isto é, um dólar auferido ao  gosto de interesses de outrem).



Transição ao novo modelo



Trabalho com a hipótese de o (s) governo (s) Lula ser uma espécie de transição no rumo do novo projeto nacional de desenvolvimento. Ou, nas palavras de Ignácio Rangel, à 4º Dualidade marcada pela ascenção ao poder de novas classes interessadas no aprofundamento da revolução burguesa no Brasil. Este aprofundamento da revolução burguesa em nosso país é caracterizada, em Rangel, no redirecionamento de nosso comércio exterior, dos EUA, aos países socialistas e da periferia do sistema e internamente na consecução do chamado capitalismo financeiro brasileiro, que daria condições ao nosso capital bancário de suprir recursos à reprodução industrial e ao desatamento dos nós-de-estrangulamento verificado nas infra-estruturas.


 


Olhando de forma mais historicizada: se a Revolução de 1930 marcou o rompimento do nascente capital industrial brasileiro com o capital industrial inglês, hoje o aparelhamento e a viabilização de nosso capital financeiro viabilizaria as condições para a nossa libertação externa. Trata-se da vitória definitiva do projeto nacional brasileiro em detrimento do imperialismo. Para termos mais clareza, a luta por uma taxa de juros atraente ao crédito no Brasil é parte desta luta em torno do aparelhamento de nosso sistema financeiro consonante aos interesses nacionais. Daí a necessidade de nossa política monetária estar sob o controle de nacionalistas.


 


Retornando, essa transição à chamada 4° Dualidade foi dificultada por motivos óbvios: multiplicação do poder de fogo do imperialismo após o fim da URSS. A hegemonia global exercida pelos EUA serviu para impor uma agenda estranha às necessidades brasileiras e para isto contou com a parcimonia da mídia e intelectualidade, além de tomada de postos chaves de nossa gestão econômica. Ouso afirmar que da mesma forma que a transição capitalismo-socialismo é muito mais demorada que às anteriores transições, a transição ao novo projeto nacional é também muito difícil e tortuosa.


 


O socialismo é a primeira proposta de sociedade onde se vislumbra o fim da exploração do homem pelo próprio homem em um mundo marcado por séculos por dita exploração, logo é muito mais difícil sua consecução. Da mesma forma que o Brasil que trocou a hegemonia portuguesa pela inglesa em 1822 e novamente substituiu a dominação inglesa pela norte-americana em 1930. Ou seja, gravitamos – mesmo em grau diferente no que cerne o desenvolvimento de nossas forças produtivas – em torno de potências capitalistas. Atualmente nosso objetivo é o de deixar de ser um gravitador, para sermos o dono de nosso próprio destino.



Fica uma questão: se a solução da questão nacional na periferia se relaciona dirtamento com a transição ao socialismo, como podemos achar que este processo (no Brasil) se dará de forma tranquila e serena, quando no âmbito mundial, a libertação do Brasil significa um passo gigantesco da humanidade no rumo ao socialismo?


 


É neste nível de análise que devemos situar o papel de transição que se deve conferir ao (s) governo (s) Lula. Vale sempe lembrar que nossas vontades não devem estar acima das leis da natureza.


 



Os passos já dados



É bom assentar que a década de 1990 marcou a imposição de um processo de apostasia, ou seja, de regressão em relação à performance nacional e econômica brasileira entre os anos de 1930 e 1990. Do ponto de vista política a negação à Era Vargas foram expressões tanto da manutenção já decrépito pacto de poder de 1930, com o agravante histórico de a década de 1990 ter sido marcada pela benefício econômico concedido aos comerciantes de importação e exportação. Ou seja, a destruição de nosso parque produtivo fez ressurgir no cenário as classes derrotadas pela própria revolução capitaneada por Vargas. Agrega-se a este fato o poder incontestável em todos os terrenos exercido pelo imperialismo.


 


Ora, com uma herança desta, Lula governou mediando uma luta interna entre nacionalistas e entreguistas expressadas na convivência no mesmo governo de representantes do sistema financeiro e de figuras como Ciro Gomes e partidos como o noso PCdoB. O fato de haver esta divisão interna no poder já é um sinal que indica que uma transição está por vir. Divisão esta quase inexistente nos governos Collor e FHC.


 


Concretamente e apesar da manutenção do controle externo sob a política monetaria, os passos no rumo à transição ao novo modelo podem ser tirados da ampliação do crédito aos setores mais baixos da sociedade, a elevação real do salário mínimo jamais visto na história recente. A nossa política externa seguiu os rumos apontados por Rangel expressada na existência real de uma planificação e reorientação do comércio exterior (face externa da Questão Nacional) e os oligopsônios/monopsônios rurais (responsáveis pelo monopólio dos preços agrícols) foram desbaratados sob a pressão das grandes redes de supermercados e os créditos rurais maciços (outra receita apontada por Rangel ainda na década de 1960).


 


A democracia foi ampliada, um novo ar se respira no Brasil hoje onde catadores de papelão passaram a ter direito de serem recebidos no gabinete da presidência da República e as anomalias (concentração de renda) criadas por uma industrialização sem prévia reforma agrária passaram a ser, mesmo que de forma tímida, solucionadas. E assim por diante.


 


O feitiço se virando contra o próprio feiticeiro
Mas o leitor mais radical pode colocar em questão minha argumentação perguntando sob como que fica essa história de altas taxas de juros, dólar barato, etc.


 


Respondo pedindo para que observe o quão decrépito são os setores do governo e sociedade que sustentam este modelo. A dialética é tão precisa. Basta sentirmos que a sociedade e até mesmo a oposição estão saindo da toca para denunciar a falta de crescimento do Brasil. Ou melhor, a nossa vergonhosa peformance econômica.


 


Toda esta pressão serviu para Lula começar a falar em crescimento de 5% a 6% como uma necessidade do Brasil. E como não dá para fazer omeletes sem quebrar os ovos, é impossível que nossa performance econômica melhore sem “mexer” em elementos da política monetária, principalmente o câmbio e os juros. O feitiço se vira contra o próprio feiticeiro.Mas o leitor pode inquirir, dizendo que este crescimento é pouco. Vou concordar plenamente com ele. Mas aí me sinto no direito de colocar história na conversa e lembrar que 5% de crescimento é simplesmente o dobro da média que o Brasil tem crescido desde 1980.


 


Precisamos crescer mais, claro. Mas é bom lembrar que – na minha modesta opinião – Lula ainda não é expressão de um novo pacto de poder político no Brasil. Lula é simplesmente o elemento que nos fará transitar no rumo de uma nova realidade.


 


E o sucesso desta contenda de dimensões históricas não ocorrerá sem luta política concreta e sem paciência histórica. Para o atual momento histórico que vivemos fico com Lênin e sua célebre observação onde recomendava “coração quente e cabeça fria”.

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