A decadência comercial dos EUA e a ascensão da China

Estimulado pelo parasitismo e o desenvolvimento desigual das nações, o declínio da liderança econômica dos EUA no mundo é um processo histórico que tem múltiplas faces. Desdobra-se, por exemplo, na decomposição do padrão dólar, que origina a instabilidade

A decadência comercial constitui uma das formas mais relevantes do fenômeno. Ela nos é indicada pelas estatísticas da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre a participação relativa das nações no valor das exportações mundiais. Em 2005, os Estados Unidos perderam o primeiro lugar neste ranking para a Alemanha, que respondeu por 9,3% das vendas no mercado mundial contra 8,7% da potência hegemônica.


 



Desenvolvimento desigual


 



Quando imaginamos as perspectivas históricas da evolução do comércio mundial, o que mais chama a atenção não é o desempenho da Alemanha ou mesmo o declínio americano, mas a extraordinária ascensão da China. Conforme a economista Lia V. Pereira (em artigo publicado na revista “Conjuntura Econômica” de maio deste ano), “em 1988, a participação das exportações chinesas no comércio mundial era de 3,3%, correspondendo à décima posição na lista dos principais exportadores mundiais. O primeiro lugar era dos Estados Unidos, com participação de 12,6%, seguido da Alemanha (9,4%)”. Em 2005, “a China ocupou o terceiro lugar”, com 7,3%.


 



Notemos que a participação relativa da Alemanha, embora alcançando o primeiro lugar em 2005, recuou ligeiramente no período – de 9,4% para 9,3%. Já os EUA “perderam 3,9 pontos percentuais na participação das exportações mundiais. Parte dessa perda é atribuída ao deslocamento das empresas estadunidense para o território chinês e à desvalorização ´artificial´ da moeda chinesa em relação ao dólar”, salienta Lia Pereira.


 


 
O avanço da China no comércio exterior é deveras mais impressionante que o crescimento ininterrupto do seu PIB num ritmo próximo a 10% ao ano. De acordo com o jornal “Valor” (12-6), em maio deste ano as exportações chinesas tiveram um crescimento de 28,7% em comparação com o mesmo mês de 2006, perfazendo US$ 94 bilhões. Pelo andar das carruagens em breve teremos a notícia de que a próspera e populosa nação asiática transformou-se na maior potência comercial do planeta.


 


Ressalve-se que, se o critério for o valor total do comércio exterior (exportações mais importações) o posto ainda pertence aos EUA exclusivamente em função do aberrante déficit comercial, que traduz um excesso de mais de 800 bilhões de dólares em importações (2006) e reflete um crescente e assombroso parasitismo.


 



Teoricamente, podemos dizer que os números do comércio refletem a ação da lei do desenvolvimento desigual das nações no mercado único mundial e revelam que a teoria leninista do imperialismo ainda pode ser considerada um guia seguro e imprescindível para a compreensão da realidade internacional. As estatísticas também sinalizam que mudanças dramáticas na geografia econômica internacional estão em curso, com o deslocamento do eixo industrial e comercial do globo para a Ásia.


 



Contradições


 



A ascensão chinesa é um movimento dialético que promove reações e efeitos contraditórios. Diversos economistas têm sublinhado que a relativa estabilidade e o crescimento da economia brasileira, bem como de outras nações periféricas ao longo dos últimos anos, deve muito ao crescimento das importações chinesas, que propiciou uma inédita recuperação dos preços das matérias-primas e uma mudança nos termos de troca a favor dos países que o FMI apelidou de “emergentes”.


 



Nosso superávit comercial não resistiria à forte valorização do real se os preços das exportações não tivessem reagido e estaríamos, hoje, muito provavelmente às voltas com crise cambial, inflação em alta, juros mais elevados e estagnação econômica. O pagamento da dívida externa seria bem mais penoso e salgado.


 


 
Sabe-se também que a China anistiou generosamente dívidas externas e, usando parte das reservas de 1,2 trilhão de dólares, está realizando grandes investimentos na África, favorecendo o crescimento econômico e o combate à miséria e à fome nos países do continente, sem impor, como contrapartida, as condições neocoloniais, draconianas, recomendadas pelo FMI, EUA e Clube de Paris. Isto, a meu ver, configura um exemplo concreto de que a China (ao contrário, por exemplo, da Alemanha e do Japão) não emerge na economia mundial como potência imperialista e nem se comporta como tal, por conseqüência não deve ser vista como inimiga dos povos e dos trabalhadores, como sugerem os ideólogos da direita e da social-democracia. 


 


 
De outro lado, é inegável que a enxurrada de mercadorias chinesas a preços baixos nos mercados globalizados, deslocando concorrentes locais, desperta fortes sentimentos protecionistas e enseja conflitos de interesses com outros países. Isto é visível em alguns ramos da indústria nacional, como têxtil, vestuário, calçados e brinquedos. Segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a concorrência chinesa afeta uma em cada quatro empresas industriais instaladas em nosso país. A direita explora essas e outras contradições com o propósito de envenenar as relações econômicas e políticas entre as duas nações, o que deve ser rechaçado pelas forças progressistas e antiimperialistas. De resto, não se trata de um problema exclusivo do Brasil.


 



“De acordo com a OMC”, observa Lia Pereira, “no período de janeiro de 1995 a junho de 2006 foi registrada a abertura de 2.938 investigações sobre dumping. No total de 150 países membros da OMC, 97 foram alvo de investigações e 41 as iniciaram. A China lidera as listas de investigações (500 processos, 17% do total), seguida pela Coréia do Sul (223 representando 7,6%)”.


 



Pressão imperialista


 



Os EUA, que ao lado da Índia são os campeões das reclamações na OMC, pressionam também por outros meios. Exigem a adoção do câmbio flutuante e parecem estar a caminho de deflagrar uma guerra comercial contra a nova potência asiática. O Senado norte-americano está examinando um projeto que eleva as tarifas aduaneiras e impõe pesadas restrições às importações chinesas, a pretexto de combater o déficit comercial bilateral, que em 2006 somou US$ 232,5 bilhões.


 



Desde que a China flexibilizou sua política cambial, abrindo mão da cotação fixa iuane-dólar em 2005, a moeda chinesa já acumulou uma valorização de 8% em relação ao dólar, porém o governo Bush e os congressistas (democratas e republicano) ainda não estão satisfeitos e a contenda entre as duas potências promete novos lances e desdobramentos. Convém notar que a interdependência econômica sino-americana é grande e não aconselha radicalismos.


 


 
O fato é que, na esfera da geopolítica, a ascensão da China é um contraponto progressista ao unilateralismo imperial do Tio Sam e constitui, portanto, uma notícia alvissareira para os povos e nações oprimidas que lutam contra o sistema imperialista.


 


 
É preciso entender que a decadência comercial dos EUA e o desequilíbrio global gerado pelo rombo comercial estão interligados à instabilidade monetária internacional e à fragilidade do padrão dólar. São fenômenos que não podem ser abordados isoladamente. Num próximo artigo pretendo abordar a relação entre o comércio, e em especial o déficit de mercadorias dos EUA, e o processo de acumulação, concentração e expansão do capital no interior do sistema imperialista.

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