A falácia do déficit zero

“Sempre que alguém anunciar acabar com a “gastança” e liminar os dispêndios “ineficientes”, certeza de que a meta é promover a redução dos gastos “primários”

Câmara dos Deputados | Foto: Aquiles Lins

Em primeiro lugar, convém esclarecermos alguns entendimentos básicos relativos aos conceitos que transitam no debate atual que os grandes meios de comunicação, e mesmo os representantes do governo, promovem a respeito da política fiscal. Na verdade, a grande imprensa permanece com a mesma postura conhecida de defesa intransigente dos interesses do financismo. Assim, abrem suas páginas e telas para criticar a postura do Presidente Lula e para elogiar a conduta conservadora de seu Ministro da Fazenda.

            Ora, é forçoso reconhecer que a expressão “déficit zero” é uma contradição em termos. Caso estejamos tratando da questão fiscal e de um eventual resultado das contas públicas, só existem 3 cenários possíveis. São eles: i) déficit, quando as despesas são maiores que as receitas; ii) superávit, quando as receitas superam as despesas; iii) equilíbrio, quando receitas e despesas se equivalem e, aí sim, o balanço é igual a zero. É interessante observar que a expressão utilizada não seja “superávit zero”. Na verdade, rata-se de mais etapa na eterna cruzada do financismo contra qualquer tipo de déficit. Mas, enfim, ambas expressões incorrem em erro conceitual e certamente receberiam pontuações negativas caso fossem utilizadas por estudantes na prova do ENEM.

            Em segundo lugar, é fundamental relembrar que a utilização dos conceitos de déficit fiscal e superávit fiscal vem geralmente acompanhada de um adjetivo muito especial e particular – primário. No entanto, esta singela palavrinha que acompanha a expressão carrega um significado fundamental e quase nunca explicitado. Afinal, por que não se busca simplesmente o “superávit fiscal” e sim o “superávit fiscal primário”? Esta é uma malandragem que data de mais de 4 décadas, quando os países do Terceiro Mundo estavam envolvidos com uma de suas recorrentes crises no Balanço de Pagamentos e não conseguiam cumprir com as obrigações de suas respectivas dívidas externas.

Austeridade fiscal e superávit primário: origens da malandragem.

            Naquele processo de renegociação das dívidas contraídas pelos governos junto aos bancos internacionais privados, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e demais organizações multilaterais intervieram. Os compromissos junto à banca privada foram assegurados e novas dívidas foram restabelecidas. Porém, a partir daí houve a exigência de contrapartidas por parte dos governos, com o lançamento dos planos de ajuste estrutural, que depois ficaram conhecidos como as diretrizes do “Consenso de Washington”. Estavam no nascedouro as políticas de privatização, de liberalização e de austeridade fiscal.

            Para o que nos interessa no momento, surgem ali as cláusulas de obtenção de superávit primário nas contas da política fiscal por parte dos governos. Mas por que tal exigência? Tratava-se de introduzir uma artimanha na contabilidade pública, de forma que por essa nova definição as “despesas primárias” seriam todos os gastos públicos com exceção dos dispêndios financeiros. Assim, ao exigir superávit primário nas contas públicas, o resultado seria a obtenção de um saldo positivo entre receitas e despesas não-financeiras. Por meio deste artifício, os governos estavam assegurando à comunidade financeira internacional o seu compromisso expresso de que haveria recursos sobrantes para honrar as obrigações com os juros da dívida pública externa. Segundo os termos do economês, não haveria mais risco de “default” do serviço do endividamento.

            Pois o fato concreto é que este raciocínio e essa terminologia terminaram por serem incorporados à legislação brasileira, bem como às práticas da tecnocracia que se ocupava de tais assuntos no interior da máquina pública. Um exemplo bem objetivo foi a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal, tal como ficou conhecida a Lei Complementar nº 101, de 2000. O governo brasileiro, à época da Presidência de Fernando Henrique Cardoso, cumpriu com seu “dever de casa” e introduziu em nossa estrutura legislativa o espírito da austeridade fiscal. Além disso, por meio de tal mudança também passou a criminalizar tudo aquilo que não fosse considerado como ato integrante das boas práticas da “responsabilidade” no trato das contas públicas.

Despesas financeiras sem controle nem teto: acumulado de R$ 9 trilhões.

            De lá para cá, o dogma da austeridade fiscal se consolidou como regra de todos os governos, independentemente de sua orientação político-ideológica. Desde que a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) passou a divulgar suas estatísticas oficiais regulares a esse respeito, os valores destinados ao pagamento dos juros da dívida pública cresceram de forma exponencial. Entre janeiro de 1997 e setembro do presente ano, por exemplo, o montante acumulado atinge a cifra de R$ 8,8 trilhões. Uma loucura! Mas ao longo do mesmo período não se viu, em um único momento sequer, a ponderação de que talvez o montante de recursos para despesas com juros fosse elevado e quiçá fosse necessário contingenciar seus valores, renegociar prazos de pagamento ou mesmo estabelecer um teto para esse tipo de gastos. Nunca! Essa atitude seria considerada uma heresia. Afinal, governos responsáveis não poderiam promover uma ruptura de contratos, quebra de confiança nas regras de mercado e blá-blá-blá.

            Desta forma, sempre que alguém anunciar sua disposição em acabar com a “gastança” e em liminar os dispêndios “ineficientes”, podemos ter a certeza de que a meta sub-reptícia é promover a redução dos gastos “primários” apenas. E dá-lhe as políticas de contenção dos orçamentos para saúde, assistência social, educação, previdência social, salários de funcionários públicos, segurança pública, infraestrutura e investimentos públicos de forma geral. Mas não se ouve uma única palavra a respeito dos R$ 700 bilhões que o Estado brasileiro destinou ao longo dos últimos 12 meses às contas dos detentores de títulos da dívida pública.

            Isto posto, voltemos ao debate atual relativo à proposta que Fernando Haddad vinha lardeando desde o inicio do terceiro mandato de Lula. Sua estratégia foi por abandonar a ideia de simplesmente promover a revogação do famigerado teto de gastos da época de Temer e Meirelles, em 2016. O ministro propôs a substituição daquela regra por outra, um pouco mais suave, mas ainda fundamentada em princípios da austeridade – o Novo Arcabouço Fiscal. Pois agora insiste, quase messianicamente, em que o resultado fiscal primário (sempre o adjetivo mágico) para 2024 deva ser igual a zero.

Haddad em busca do zero messiânico.

            Como se sabe, trata-se de uma abordagem ultrapassada. Afinal, até mesmo o establishment das organizações multilaterais sabe disso. Vejam o que publicou recentemente o renomeado economista francês Olivier Blanchard, que ocupou o estratégico cargo de economista chefe do FMI entre 2008 e 2015:

(…) “Hoje, a maioria dos países avançados registra déficits primários. Eliminá-los seria provavelmente catastrófico, pois levaria a graves recessões e provavelmente à ascensão de partidos populistas. Assim, o plano deve ser fazê-lo lentamente, mas de forma constante e com credibilidade.” (…) [GN]

            Ora, não faz sentido esse compromisso desnecessário com uma meta fiscal que até mesmo os adversários políticos do governo, alinhados com o campo conservador, consideram inatingível. Além de ser equivocada politicamente, a obstinação com essa busca do zero revela-se como um grande erro de avaliação de estratégia econômica para dar início à hercúlea tarefa de solucionar os principais problemas do País. A reconstrução do verdadeiro desastre que foram os seis anos de entre Temer e Bolsonaro exigem um grande esforço de recuperação do protagonismo do Estado. Além disso, está na ordem do dia das prioridades de Lula o restabelecimento das políticas públicas que foram desmanteladas pela sanha neoliberal e privatista daquele período.

            Isso tudo somado significa que o governo, ao contrário do que sugere Haddad, precisa aumentar de forma considerável o investimento público e as despesas governamentais nas áreas sociais. A urgência em elaborar e colocar em prática um Plano Nacional de Desenvolvimento não será cumprida apenas com a panaceia das Parcerias Público Privadas (PPP) que o professor do INSPER tanto menciona. Não! Sem uma presença forte do Estado neste novo desenho, as coisas permanecerão na base do nosso conhecido “mais do mesmo”.

            Lula sabe de tais riscos. E, ao que tudo indica, ele decidiu por intervir no debate e apontar aquilo que o Presidente da República pensa a esse respeito. Ao soltar frases como “dificilmente a meta de zero será atingida em 2024” ou que “dinheiro bom é dinheiro transformado em obras”, o chefe de Haddad deixa claro que o Projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias para o ano que vem deve ser alterado, para evitar especulações e saias justas desnecessários durante o próximo exercício. Afinal, existe um amplo consenso de que o resultado fiscal primário será negativo. E, ao contrário do que apregoam os arautos do financismo neoliberal, isso não se caracteriza como um problema. Pelo contrário, trata-se de uma solução para o Brasil se reencontrar com a trilha do crescimento e do desenvolvimento.

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