A fatura da pandemia

É deveras impressionante como Bolsonaro consegue criar situações difíceis para si mesmo e se coloca em conflitos desnecessários por uma crença de ataque proeminente.

O coronavírus afastou Madetta de Bolsonaro l Foto: Carolina Antunes/PR

O presidente da República tomou uma decisão crucial na última quinta-feira e será lembrado por isso quando formos contar, daqui a dez, quinze, cinquenta anos, a história do Brasil e a pandemia do coronavírus. Teve fim a novela protagonizada por Jair Bolsonaro e seu então ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta. A demissão foi anunciada pelo Twitter de Mandetta e depois, oficializada pelo presidente em pronunciamento. Os atritos entre os dois tiveram como vetores a discordância quanto ao modo de enfrentar a pandemia e o consequente protagonismo do ministro versus a queda de popularidade do presidente.  

Ao demitir o Mandetta, o chefe do executivo chamou para si a fatura desta conta, que ainda não está fechada e já é altíssima. Ainda que alguns analistas políticos, remunerados ou não, façam explicações em defesa da tecnicidade das estratégias do Ministério da Saúde para o combate ao vírus, precisamos deixar bem claro: as decisões são políticas, o cálculo é essencialmente político e o saldo é político.

E Bolsonaro trocou o comando da saúde por uma questão política. A condução de Mandetta, por mais que tivesse seus equívocos procedimentais, tinha um direcionamento. E isto não se dissocia dos atributos do ex-ministro que o levaram àquele posto. Em favor dos planos privados de saúde, em desfavor do Programa Mais Médicos, mas tudo isso ficou de lado, ainda que momentaneamente, porque o vírus atravessou os planos do governo federal para o desmonte do SUS. E enquanto Mandetta crescia ao projetar a imagem de médico com colete azul, o presidente diminuía em suas dificuldades de lidar com os jogos nos quais não é o dono da bola. 

É deveras impressionante como Bolsonaro consegue criar situações difíceis para si mesmo e se coloca em conflitos desnecessários por uma crença de ataque proeminente, o presidente  é guiado por uma obsessão de que existem planos de conspiração contra seu mandato e se perde nessas lutas imaginárias, quando poderia estar capitalizando politicamente. O próprio Mandetta fez isso. 

Ele entrou no governo federal como um deputado de baixo clero, desconhecido, longe dos holofotes ministeriais (como Sergio Moro e Paulo Guedes) e deixou a pasta com a popularidade em alta e ditando as regras do jogo, pautando as respostas e posicionamentos do Palácio do Planalto. Bolsonaro poderia, se tivesse condições para tal, ter figurado como líder nacional, seguindo, como todos os demais chefes de Estado (inclusive seu ídolo Donald Trump dos EUA), as orientações da Organização Mundial da Saúde. Poderia ter conduzido as discussões e a implementação de medidas de amortecimento do impacto econômico do isolamento social. 

Mas o capitão opta sempre pelo caminho mais tortuoso. Escolheu abrir fogo contra seu próprio ministro e não recuou diante da desaprovação pública, das pesquisas de opinião sinalizando os receios da população. Foi preciso que a ala militar do governo, fiadora de sua permanência no poder, atuasse de modo a constrangê-lo. Então o presidente discursou em tom mais moderado numa noite e na manhã seguinte divulgou fake news sobre desabastecimento em Belo Horizonte. Mandetta ganhou fôlego com o apoio dos militares e teve uma sobrevida pelas panelas que bateram quando da primeira ameaça de demissão. 

Entretanto, ao que parece, a entrevista que concedeu ao Fantástico no domingo 12 de abril era sua indicação de que aceitava a demissão, mas que sairia dessa história politicamente fortalecido. Mandetta se antecipou e fez o movimento correto, quer concordemos ou discordemos das suas motivações para fazê-lo. Entrega a pasta da saúde antes que o sistema como um todo entre em colapso, comunicou bem as razões por trás da sua saída e deixou a fatura para o sucessor. Enquanto isso Bolsonaro acumula mais este peso sobre os ombros.

Interessante pensar que as crises, as guerras, as adversidades, fazem brotar lideranças que agregam a sociedade e dizem qual o melhor caminho a seguir. Mas estas situações também revelam, e o termo apropriado poderia ser “escancaram”, a inabilidade política daqueles que, no momento mais difícil, no momento mais agudo, se apequenam diante do tsunami. Se dissemos aqui, um ano atrás, que o presidente não conseguia controlar o seu ambiente familiar mais restrito, se não conseguiu gerenciar a capacidade dos próprios filhos em interferir nas decisões rotineiras do executivo, o coronavírus explicita a repleta ausência de virtude e manejo político.

O mantra político da vez, repetido aos meios de comunicação e endereçado ao parlamento, é de que ele é o chefe, tem o poder da caneta, a atribuição e responsabilidade é dele. Ora, autoridade não se negocia, isto Max Weber já nos ensinou no começo do Século XX. A necessidade de reafirmar a autoridade é o sintoma mais evidente de que ela está em falta. Ou como cantou Baden Powell e Vinícius de Moraes em Canto de Ossanha: o homem que diz sou, não é!

Artigo elaborado em coautoria com a cientista política e colunista do portal Vermelho, Ananda Beatriz Marques

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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