“A Fronteira da Alvorada”: Amor em tempos de fuga
Retrato das relações fugazes da modernidade, filme do francês Philippe Garrel usa realismo e expressionismo para contar o caso da paixão doentia de uma estrela de cinema por um fotografo na Paris de hoje
Publicado 09/01/2009 10:14
É possível que ao deixar o cinema, após assistir ao último filme do diretor francês Philippe Garrel, “A Fronteira da Alvorada”, o espectador se pergunte por que produzir ainda hoje filmes em preto e branco? Ele mesmo poderá responder: e por que não, se ele atende às perspectivas estéticas e conteudísticas a que o autor pretende; de acordo com o que a história exige. Logo, as nuances, o claro/escuro, as sombras e o clima advindo daí, só contribuem para que ele atinja seus objetivos e o espectador tenha a compreensão de que, ao atender às exigências mercadológicas, sua obra perderia a força emanada, sem dúvida, do preto e branco. Não apenas na primeira parte, quando Garrel fixa os contornos da narrativa, para, quando na segunda parte, elas, ao se fundirem, se autoexpliquem. E, a partir do comportamento do fotógrafo François (Louis Garrel), se entenda, afinal, porque Carole (Laura Smet) foi levada à exasperação amorosa.
O preto e branco, desta forma, realça os estados de espírito dos personagens, que, num filme colorido, chamaria atenção para aspectos secundários de suas ações e, inclusive, para o entorno, muitas vezes pouco importantes para a narrativa. Não se trata, é claro, de execrar os aspectos cromáticos ou não de uma obra, questão já por demais debatida; sim de atestar o quanto é necessário ter a correta noção estética para transmitir ao espectador o que se deseja. Utilização que hoje escapa à maioria dos diretores e diretores de fotografia, em que a cor, como a música, está ali principalmente por questão mercadológica. “A Fronteira da Alvorada” seria outro filme, caso atendesse a esta exigência. Nas primeiras cenas, Garrel joga com os personagens, fixando-se em Carole, deslocando-se para François, isolando-os dos demais personagens, de quem se ouve frases, como se a dizer que se interessa pelo que acontecerá apenas com os dois.
Diretor isola personagens dos espaços realistas
Esta fixação em Carole, com Françóis surgindo em plano quase secundário, delimita a função de ambos na narrativa. A primeira parte pertence a ela, jovem estrela de cinema, largada em Paris pelo marido que se encontra em Hollywood a trabalho. Ela e François encontram-se na casa dela, a propósito de uma sessão de fotos e daí enveredam para uma relação que passa da normalidade para o apego doentio. Garrel os mantém juntos, isolando-os do mundo ao redor, como se contasse para eles, apenas o momento a dois. Carole, no entanto, conserva os preceitos do amor e da paixão, o de estar junto, de afagar, de prometer amor eterno, enquanto François é fugidio, descompromissado, mais afeito ao espírito moderno do “ficar”. Ela, pelo contrário, o quer de um modo que ele não entende nem quer. Quando cede, em alguns momentos, eles se encontram em espaços tomados pelas sombras, com partes de seus corpos à mostra.
A câmera de Garrel, em esplendida fotografia de Willian Lubtchansky , nestes instantes se fixa nela, Carole; em seu belo rosto, em seus aflitivos movimentos. Seus olhares denotam carência, uma angústia que vai, aos poucos, se transformando numa dor que a jovem atriz Laura Smet consegue passar ao espectador, com toda a fragilidade que o papel exige. É a chamada solidão de quem busca correspondência, mas que só encontra a negação. Por mais que tente fazer Françóis a ela se apegar, mais ele lhe escapa. Ela o compreende e não o aceita. Quando o testa, ele se vai e não lhe responde. Foge a seu controle. Poucas armas tem para prendê-lo. Passa a oscilar entre a paixão doentia, a demência e a amargura. Garrel constrói estes momentos com diálogo interior, cartas, bilhetes, como se Carole fosse uma heroína romântica, cujo amado está por chegar e se delata. Numa das mais belas do cinema deste milênio, ele a põe num espaço quase vazio, em sutis movimentos, com iluminação que realça os contornos de seu corpo, traduzindo sua agonia, sua esperança que se esvai porque François não lhe responde.
Carole, embora romântica, reflete sobre a modernidade
Um tipo de paixão que trai o espírito desta época fria, voltada para o consumismo e dominada pelo hedonismo exacerbado. Carole parece, à primeira vista, deslocada das lutas de gênero, destituída de vontade e amor próprio, vivendo em função da fugacidade de Françóis. Engano. Num de seus instantes de reflexão, ela tece ousados pensamentos sobre a liberdade, a revolução e o encontro pacífico entre os homens. E não poderia ser diferente, dado que o cinema de Garrel vem da Nouvelle Vague, tendo encontrado seu espaço junto ao espectador brasileiro apenas nos últimos anos. Principalmente, a partir de “Amantes Constantes”, em que analisa o comportamento da juventude dos anos 60. E, não por acaso, rodado em preto e branco, para melhor transmitir o ebulitivo clima daquela década.
Carole, portanto, é uma variante daquele movimento, pois dotada da capacidade de se envolver amorosamente. Ela domina todas as sequencias desta primeira parte de tal maneira que Françóis é tão só um coadjuvante. Não só pela força do personagem, por demais intenso para não atrair o espectador, fazê-lo sentir suas dores, notadamente pela interpretação de Smet, com seu jeito frágil, tragado para situações das quais não tem controle algum. Seu contraponto é o jovem François, com seu rosto de galã do cinema mudo, lábios marcados e olhar deslocado. E seu comportamento reflete a ação intercalada, momentânea de sua profissão de fotógrafo. É só o instante, depois parte para outra empreitada e outra, com as demais ficando para trás. Como acontece a Carole, logo substituída por Eve (Clémentine Poidatz). E aqui entendemos a maneira como Garrel a introduz.
Primeira parte é o calvário da estrela
Em princípio, Eve é apenas uma indicação, alguém com quem ele, François se encontra, para depois ter presença constante. Carole deixou de ser com quem ele se encontrava; a vez agora é desta burguesa, que o atrai com frases seguras, sem românticos jogos amorosos, comportamento de mulher que busca companhia. Eve quer mais, luta por isto de forma adversa de Carole, enquanto ele, Françóis, quer persistir em seu jogo moderno, de pouco compromisso. Para ele, Carole ficou para trás, Eve é a mulher da vez. E Garrel agarra o espectador que, envolvido com a paixão doentia de Carole, não percebe aonde ele quer chegar. Se a primeira parte é o calvário da estrela, ele faz com que a segunda o seja de Françóis. Em momento algum, ele se deu conta da real paixão dela por ele. Agora, diante de Eve, cheia de armadilhas, entende o que ela queria dizer, quando o chamava desesperadamente.
Ele, profissional do momento, da fugacidade, está no centro da modernidade, do desapego ao amor, do desinteresse pelo sentimento do outro. Mas começa a atentar para o que Carole poderia estar querendo lhe dizer; do quanto precisa dele e do quanto ele poderia amá-la. E ele só o percebe pelo contraponto permitido pela relação com Eve. Esta exige dele algo mais, presença e compromisso, não apenas com ela, sua família também entra nesta relação. É chamado a assumir sua parte na relação a dois; coisa a que não estava acostumado. Tem inclusive uma conversa com o pai de Eve, obrigado a lhe revelar facetas da filha, para que possa melhor compreendê-la. É então que as rememorações sobre sua relação com Carole vêm à tona: ele com seu descompromisso levou-a à fatalidade. Passa a ter alucinações, a culpa o toma em cheio, a dúvida predomina. Tem-se a impressão de que Garrel irá impregnar o filme de psicologismos, de explicações freudianas, para moldar a visão do espectador quanto ao comportamento do personagem, porquanto Françóis seja verdugo de Carole devido a seu comportamento hesitante.
Sobrenatural exerce o papel de transcendência
A exemplo de Hitchcock, em “Psicose”, Garrel chega a fazê-lo, com efeito, pouco eficaz. Explicações àquela altura pouco valeriam. A fantasmagoria multiplica-se de tal maneira que o espectador a aceita. É o espírito atormentado de Carole que insiste em tê-lo ao lado dela. O sobrenatural exerce um papel de transcendência em “A Fronteira da Alvorada”: ele é que explica a necessidade de convivência entre dois seres; um que se foi, virou energia pura, e o outro que permanece, enquanto ser material. E o estado psíquico de Françóis, aos frangalhos, passa a admitir, depois de muito hesitar, que os tormentos de Carole têm relação com o modo como a tratou. E Garrel usa espelhos e sonhos para ligá-los. O imaginário traduz o mal feito à amada; o sobrenatural, a culpa por não tê-la, com Françóis percebendo agora seu papel na relação com Carole. Desta forma, ambos ficam no mesmo nível de relação amorosa: de juras de eternidade.
Nada mais metafísico do que isto. Se na primeira parte, os estados de espírito eram de Carole, na segunda são de Françóis. Transita com Eve por espaços abertos, pelo campo, por cômodos reais, com móveis, adega, cama, que se percebem enquanto objetos com os quais os personagens se relacionam. Enquanto que ao estar com Carole, os espaços sumiam, havia apenas ela e sua paixão, tomadas pelas sombras. Ao contrário do que ocorre com Eve, em que ele se move pela cidade à procura dos amigos para atenuar seus tormentos. Chega, inclusive, a ter uma estranha conversa com um anti-semita num bar. Este lhe diz que vive para odiar os judeus, quanto mais o faz, mais atinge seus objetivos. Ao que François lhe responde: “eu sou judeu”. São sequencias em que Garrel põe o personagem em contato com o mundo real, fora das ações metafísicas, tomadas pelo subconsciente. Mostra que a narrativa se dá no mundo atual, cheio de contradições iguais à do anti-semita. Fato por si irrelevante, porquanto o sentimento hoje é contra o Estado Israelense, a política de sua classe dominante e a forma como negam aos palestinos um espaço geográfico onde possa exercer a sua cidadania, não contra o povo judeu.
Françóis não atenta para dores causadas a Carole
Ao inserir temas semelhantes, Garrel tira seu filme da leitura linear, cerebrista, dominada pelo psicologismo e a fantasmagoria, criticando o comportamento ausente do parceiro de gênero, que, dominado pela fugacidade da relação moderna, não atenta para as feridas provocadas na parceira. Usa para isto, uma estética à altura do tema tratado: o da relação a dois no Terceiro Milênio, com uso do preto e branco, que melhor traduz sua intenção. Serve, por outro lado, para fixar uma narrativa cinematográfica que mescla o realismo ao expressionismo, inserindo seus personagens em ambos os seguimentos sem pender para um lado ou outro. Contribui assim para escapar à armadilha do cinema atual, que usa e abusa de situações reais, eivadas de clichês, que mostram a confusa que domina a cinematografia atual. Serve, além disso, para usar o velho clichê, de que soma das partes que é mais do que o todo. Ou seja, para apreender as nuances do filme e suas intenções enquanto diretor é necessário usar as várias tendências e gêneros que melhor atendam a seus propósitos. Não era outro o comportamento dos grandes diretores ao criarem suas obras-primas. Buñuel que o diga!
“A Fronteira da Alvorada” (“La Frontiére de L´Aube”). França. 2008. 1h46 minutos. Fotografia: Willian Lubtchansky. Roteiro: Philippe Garrel, Marc Cholodenko, Arlette Langmann. Diretor: Philippe Garrel. Louis Garrel, Laura Smet, Clémentine Poidatz.